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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.14 no.1 Ribeirão Preto  2013

 

ARTIGOS

 

Uso de mitos gregos em um grupo psicanalítico com adolescentes

 

Use of greek myths in a psychoanalytic group with teenagers

 

El uso de los mitos griegos en un grupo psicoanalítico con adolescentes

 

 

Cybele Carolina Moretto 1; Antonios Terzis 2

Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi investigar e descrever alguns processos psíquicos produzidos por um grupo de adolescentes, a partir do aporte teórico-metodológico da psicanálise aplicada aos grupos, analisando a estrutura e o funcionamento psíquico do grupo. Foi formado um grupo com oito adolescentes, de ambos os sexos, entre 14 e 16 anos, em um Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência, em uma cidade do estado de São Paulo. Foi utilizado fundamento técnico da associação livre, sendo disponibilizado aos adolescentes narrativas míticas como um recurso para facilitar o processo associativo. O material foi analisado qualitativamente, a partir da técnica da interpretação dos sonhos. Concluímos que o grupo se constituiu um dispositivo terapêutico pertinente para a promoção de autoconhecimento, proporcionando compreensão e alívio emocional aos seus participantes; foi um espaço para a realização dos desejos reprimidos e de manifestação do inconsciente dos participantes. Finalmente, as narrativas míticas facilitaram aos adolescentes a se identificar com os heróis míticos, a expressar seus sentimentos, desejos e fantasias, desencadeando o processo transferencial e a intersubjetividade no grupo.

Palavras-chave: Adolescência; Psicanálise; Psicoterapia de grupo; Saúde mental; Mitos gregos.


ABSTRACT

This article aims to investigate, analyse and understand some psychic formations produced during a work with a group of teenagers, as part of the results of a Thesis in Psychology defended by the Post-graduate studies at the Pontifical Catholic University of Campinas (PUC-Campinas). The study was based on the theoretical and methodological framework of psychoanalysis applied to groups. A group with eight adolescents was formed. It included both sexes, between 14 and 16 years, in a Psychosocial Care Center for Children and Adolescents, a city in the state of São Paulo. The free association technique was used, making available mythical narratives as a resource to facilitate the associative process amongst the teenagers. The material was analysed qualitatively by the use of dream interpretation technique. It was concluded that the group has been a relevant therapeutic tool, which promotes self-knowledge, understanding and provides emotional relief to its participants. In addition, it was a space for the realization of repressed desires and unconscious manifestation of the participants. Finally, the mythical narratives facilitated adolescents to identify with the mythical heroes and express their feelings.

Keywords: Adolescence; Psychoanalysis; Group psychotherapy; Mental health; Greek myths.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo investigar, analizar y comprender algunas formaciones psíquicas producidas en el aquí y ahora de un grupo de adolescentes, siendo parte de los resultados de una tesis en Psicología defendida por los estudios de postgrado en la Universidad Católica de Campinas. El estudio se ha basado en el marco teórico y metodológico del psicoanálisis aplicado a grupos. Se formó un grupo de ocho adolescentes de ambos sexos, entre 14 y 16 años, en un Centro de Atención Psicosocial de la Niñez y la Adolescencia, una ciudad en el estado de São Paulo. Se utilizó el fundamento técnico de libre asociación, poniendo a disposición de las narraciones míticas adolescentes como un recurso para facilitar el proceso asociativo. El material se analizó cualitativamente mediante la técnica de la interpretación de los sueños. Llegamos a la conclusión de que el grupo ha sido un dispositivo terapéutico relevante para la promoción del auto-conocimiento, la comprensión y el alivio emocional a sus participantes, fue un espacio para la realización de los deseos reprimidos y la manifestación inconsciente de los participantes. Por último, las narraciones míticas facilitaron a los adolescentes identificarse con los héroes míticos y expresar sus sentimientos, deseos y fantasías, lo que provocó procesos de transferencia y la intersubjetividad en el grupo.

Palabras clave: Adolescencia; Psicoanálisis; Psicoterapia de grupo; Salud mental; Mitos griegos.


 

 

 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a adolescência compreende a faixa etária entre 10 e 19 anos de idade. Já de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei nº 8.069 de 13/07/90), é considerado adolescente o indivíduo entre 12 e 18 anos de idade. Uma grande parcela da população que procura atendimento, sendo um grupo identificado como vulnerável e de risco, é composta por adolescentes. Para dimensionar a magnitude e a necessidade de pesquisas e de atenção a esta fase da vida, constatamos no último Censo Demográfico Brasileiro, realizado em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de mais de 34 milhões de adolescentes, ou 18% da população brasileira, entre 10 e 19 anos. Além disso, de acordo com a OMS (2003), os transtornos mentais são comuns durante a infância e adolescência, em termos de prevalência, em torno de 20% sofrem de algum distúrbio. Também são preocupantes os dados estatísticos do Ministério da Saúde, conforme estudo de Souza, Minayo e Malaquias (2002), sobre as causas de morte da população entre 14 e 24 anos; constatou-se que o número de suicídios nessa faixa etária cresceu 43% entre os anos estudados. Ramires et al. (2009) afirmam que o suicídio é a terceira causa de morte entre os adolescentes. Segundo Braga (2009), os adolescentes estão morrendo muito mais devido às causas emocionais do que por motivos biológicos ou sociais.

Baseado nesses dados e em nossas observações clínicas, a preocupação com a adolescência se refere a um conjunto de manifestações, as quais se apresentam com uma frequência cada vez maior, como a agressividade exacerbada, depressão, transtornos de alimentação, dificuldade de relacionamento com os pais, problemas escolares, alcoolismo, fumo, drogas, gravidez, aborto e doenças sexualmente transmitidas. Por isso, justificam-se as angústias daqueles que estão em contato direto com o adolescente, como a família, os educadores e os profissionais da saúde.

 

A QUESTÃO DO GRUPO NA PSICANÁLISE

Nesta seção temos o objetivo de introduzir a questão do grupo na psicanálise, apoiando-se por um lado, nos trabalhos de Bion (1961), e por outro lado, nos estudos desenvolvidos pelos psicanalistas Pontalis (1963), Anzieu (1966) e Kaës (1976/1997), sobre o método e a clínica da psicanálise de grupos.

Bion (1975) apresentou relevante contribuição para o estudo dos grupos humanos em um momento de significativas transformações sociais, econômicas e políticas. Dentre seus principais conceitos, assinalamos o de supostos básicos. Bion (1961) explica que os participantes do grupo entram em um processo de regressão, cuja característica principal é a de colocar em primeiro plano, os aspectos mais primitivos do funcionamento mental. O autor descreve três classes principais de fantasias que caracterizam os pressupostos básicos da mentalidade grupal: (1) dependência: nesse caso, o grupo está convencido, inconscientemente, de que se reuniu na expectativa de que o líder irá satisfazer todas as suas necessidades e desejos; (2) luta e fuga: para manter a existência, o grupo age como se tivesse necessidade de escapar, e ao mesmo tempo, atacar, qualquer coisa ou pessoa; (3) acasalamento: existe a crença coletiva inconsciente de que, quaisquer que sejam os problemas e necessidades atuais do grupo estes serão resolvidos por um acontecimento agradável no futuro como, por exemplo, o nascimento de um filho, ainda não concebido, que será o salvador do grupo.

A partir da década de 1960, autores como Pontalis (1963), Anzieu (1966) e Kaës (1976/1997) trouxeram contribuições para o estudo psicanalítico dos grupos. Kaës (1976/1997) propõe que as pessoas se dirigem ao grupo para sentirem um corpo imaginário onde possam ser amadas buscando uma unidade perdida no nascimento e, procuram reviver no grupo a experiência de se fundirem ao corpo materno. Para este autor, assim como para Anzieu (1966), o grupo é um lugar para a manifestação de desejos reprimidos e é a representação da imagem de um corpo, o corpo materno. Segundo Kaës (1976/1997), o grupo detém um espaço, um lugar que permite a manifestação do desejo, como ocorre nos sonhos. Desta forma, as pessoas se dirigem aos grupos para realizarem o desejo de se fundirem novamente ao corpo materno, no qual possuíam todo o conforto e proteção. Portanto, Anzieu e Kaës nos mostram que um grupo é a representação da imagem de um corpo, mais especificamente, do corpo materno. As pessoas fazem uma busca do objeto perdido na infância através do objeto grupo.

Enfatizamos a importância de que todos esses conceitos psicanalíticos tornam possível o conhecimento de uma parte importante da realidade psíquica do inconsciente e das subjetividades que mal seriam acessíveis de outra forma. Ainda, esses conceitos podem gerar novas pesquisas, como esta, por exemplo, que utiliza a psicanálise aplicada a um grupo de adolescentes.

 

OS MITOS GREGOS: INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA

O objetivo deste tópico é desenvolver algumas noções sobre o mito grego e a sua importância. Os mitos ocupam um lugar privilegiado na psicanálise. A teoria freudiana considera, tanto o sonho como o mito, expressões codificadas do inconsciente, só que os mitos são partilhados em público e ao serem compreendidos, podem fornecer acesso à mente humana. Na obra "A Interpretação dos Sonhos", Freud (1900) descreve o funcionamento dos sonhos e compara o seu mecanismo com o dos mitos. Considerando que o material dos sonhos reaparece igualmente nos mitos, nas lendas, assim como nas anedotas da vida cotidiana (Freud, 1900), o funcionamento do mito reside na representação consciente dos medos e desejos reprimidos inconscientes, no nível social e coletivo, de modo semelhante ao do sonho. No plano pessoal, o sujeito sonha para se aliviar da tensão provocada por pensamentos perigosos. No nível social, os membros de toda uma comunidade tentam reconciliar ilusões e situações inconscientes que se ligam a ações proibidas. Tanto nos mitos, como nos sonhos, a censura jamais é suprimida completamente, por isso a manifestação é dissimulada para escapar a seu reconhecimento consciente.

Segundo Terzis (2008), os mitos têm a função de representar os sentimentos, desejos e conflitos do ser humano; podem auxiliá-lo a procurar, dentro de si próprio, o sentido para as diversas experiências da vida, para que estas entrem em consonância com sua vida interior, auxiliando no processo de autoconhecimento.

A partir dessas idéias, elaboramos a hipótese de que as histórias míticas poderiam sensibilizar o grupo de adolescentes e facilitar o processo associativo. Dentre os mitos gregos, escolhemos aqueles que apresentam mais características da adolescência, como: a busca de identidade, enfrentamento e coragem, agressividade e vingança, arrogância e vaidade, atitudes impulsivas, busca do prazer, liberdade e independência, tendência grupal e socialização (Morgado, 2004). Além disso, por serem mitos clássicos e mais conhecidos do público, conforme temos observado, nos últimos anos, em filmes no cinema e literatura infanto-juvenil que tratam de mitologia grega.

A partir dessas considerações, o objetivo deste estudo foi investigar e descrever alguns processos psíquicos produzidos por um grupo de adolescentes, a partir do aporte teórico-metodológico da psicanálise aplicada aos grupos, analisando a estrutura e o funcionamento psíquico do grupo. Além disso, objetivou-se compreender se o grupo de adolescentes se constitui em dispositivo terapêutico, sensibilizando os participantes aos fenômenos do grupo.

 

MÉTODO

Participantes

Foi formado um grupo com oito adolescentes, de ambos os sexos, com idade entre 14 e 16 anos, em um Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência - CAPS/IA. Nenhum adolescente se conhecia até o momento do início do grupo de pesquisa, eram provenientes de classe social baixa e frequentavam escolas públicas. De acordo com os dados obtidos dos prontuários da instituição, os adolescentes apresentavam queixas manifestas, como: baixa autoestima, dificuldades de aprendizagem escolar, timidez excessiva, ansiedade, insegurança, tristeza constante, problemas de relacionamento social e alguns também haviam sofrido agressão física e sexual.

A seleção dos participantes teve a finalidade de compor o grupo evitando contraindicações (que poderiam introduzir outras variáveis), a exemplo de alguns estudos com grupos de crianças e adolescentes (Carvalho, 2008; Porta, 2006; Terzis, 1997). Dentre os critérios de exclusão, definimos a deficiência intelectual, os transtornos psicóticos, ou uma percepção insuficiente da realidade e os distúrbios sociais ou condutas antissociais.

Campo de pesquisa

A pesquisa com o grupo de adolescentes foi realizada em um Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência (CAPS/IA), em uma cidade da região centro-oeste do estado de São Paulo. O serviço foi criado em 2002, após a regulamentação dos CAPS, no território nacional, pelo Ministério da Saúde (MS), por meio da portaria MS 336/02 de 19 de fevereiro de 2002. Recebe verba para realizar seus atendimentos por meio de convênio firmado com o Sistema Único de Saúde (SUS) pela Prefeitura Municipal. O tratamento visa a reinserção social de crianças e adolescentes, na faixa etária de 5 a 16 anos, e seus familiares, portadores de diversos tipos de transtornos psíquicos, priorizando os casos de alta e media gravidade. Todas as patologias são atendidas, com exceção dos quadros de deficiência mental grave ou profunda e os quadros de drogadicção.

Instrumento

As sessões grupais foram orientadas pela concepção de Grupo de Diagnóstico desenvolvido por Anzieu e Kaës (1989). Para estes autores, o grupo permite que se coloque em evidencia a significação inconsciente das palavras, das ações e das produções imaginárias de uma pessoa. Além disso, o grupo de diagnóstico tem recursos e conflitos que devem ser estudados e considerados pelo próprio grupo à medida que vão aparecendo, e examinados em função dos objetivos propostos.

Desse modo, empregamos esse dispositivo para investigação e compreensão das produções do inconsciente dos adolescentes do grupo. Consideramos, assim, que o grupo possibilitaria a seus integrantes uma experiência de grupo e permitiria que compreendessem seu funcionamento, seu próprio modo de ser em grupo, assim como o do outro.

Ao grupo de adolescentes, aplicamos as seguintes regras características do método psicanalítico de grupos e que foram propostas por Anzieu e Kaës (1989). As regras, em psicanálise, cumprem mais do que organizar o trabalho, "as regras são objeto de investimentos fantasmáticos e de contrainvestimentos defensivos, que podem ser interpretados" (Anzieu, 1966, p. 3): (a) regra da associação livre de grupo – os adolescentes tinham a liberdade de falarem entre si seus sentimentos, pensamentos e fantasias produzidas e reativadas no grupo; (b) a abstinência – regra para os participantes não manterem convívio social ou envolvimento fora do grupo; (c) a restituição – conversas em relação aos acontecimentos do grupo que ocorram fora das sessões, sejam levadas para o grupo no encontro seguinte.

Ainda, como parte do enquadre do grupo, foram necessárias algumas regras complementares, tais como: (a) unidade de lugar – os encontros grupais ocorreram sempre na mesma sala da Instituição, sem predeterminação dos assentos; (b) unidade de tempo – seguiu, rigorosamente, o tempo de noventa minutos previsto para cada sessão; (c) unidade de ação – manteve do início ao fim, a concentração em um tipo de atividade e condução do grupo.

Definimos que o grupo seria fechado, com os participantes previamente determinados e sem a possibilidade de entrada de novos membros depois de iniciado o processo. O grupo se reuniu uma vez por semana, durante doze sessões. Os participantes foram tratados pelo primeiro nome, podendo favorecer a proximidade afetiva.

Na sala de atendimento constavam materiais escritos sobre alguns mitos gregos, que disponibilizamos aos adolescentes como um recurso para facilitar o processo associativo grupal. Em cada sessão, os adolescentes escolhiam espontaneamente um mito e liam juntos a história, alternando um parágrafo cada um, de forma sucessiva, com cada participante imprimindo uma característica própria em sua leitura.

Procedimento

Inicialmente, o projeto desta pesquisa foi avaliado e, posteriormente, aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, protocolo nº 0187/11. Em seguida, foi solicitada permissão à direção do CAPS/IA para a participação de adolescentes interessados em colaborar com este estudo. Selecionamos os adolescentes para compor o grupo por meio da análise dos prontuários da instituição, a partir da ordem de espera destes na instituição ou por encaminhamento dos técnicos do CAPS/IA. Nos prontuários constavam dados do relato da entrevista de triagem, anamnese e projeto terapêutico da equipe para cada adolescente. Alguns prontuários também continham relatórios de psicodiagnósticos e avaliações médicas.

Os adolescentes selecionados foram convidados para uma entrevista individual inicial, na qual a pesquisadora esclareceu que este trabalho pretendia oferecer uma escuta e compreensão emocional aos adolescentes, além de fornecer subsídios às pessoas que lidam com a adolescência. Foi dito que para isso, o grupo se reuniria uma vez por semana, durante doze sessões, com a duração de noventa minutos cada, sempre no mesmo horário. Orientamos que os adolescentes poderiam se recusar a participar ou solicitar a retirada de seu consentimento a qualquer momento ao longo do processo, sem que isso lhe causasse qualquer prejuízo. Informamos, ainda, que seria necessária a gravação dos encontros grupais e garantimos que seria mantido o sigilo quanto aos dados de identificação dos participantes. Depois, os participantes e seus pais assinaram, voluntariamente, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O estudo foi dirigido pela própria psicóloga-pesquisadora, sendo a única integrante com papel antecipadamente definido. A função da pesquisadora pautou-se pela disposição afetiva, atenção flutuante, empatia e experiência na coordenação de grupos terapêuticos; o que permitiu colaborar para o grupo compreender emocionalmente o seu processo. Todos os encontros grupais foram audiogravados.

Análise do material

O material registrado foi analisado qualitativamente, a partir da técnica da interpretação dos sonhos (Freud, 1900), visando, assim, ultrapassar a mera descrição do conteúdo explícito das falas apresentadas pelos adolescentes, incluindo as comunicações não-verbais e buscando desvelar significados simbólicos. A análise interpretativa dos conteúdos foi realizada concomitantemente pela primeira autora e pelo segundo autor, utilizando como aporte teórico os conhecimentos da psicanálise e da grupanálise. As leituras dos encontros permitiram descrever em detalhes, os fenômenos recorrentes, que apareceram na situação do grupo, resultantes do processo psíquico.

As análises foram feitas de forma vertical, das primeiras sessões às últimas, a partir da qual cada sessão foi lida e analisada várias vezes. Levando em consideração a densidade e riqueza do material, escolhemos por apresentar, neste estudo, seis sessões na íntegra, decisão que também foi tomada por acreditarmos que essas seriam suficientes para responder aos objetivos do estudo. Para demonstração do processo grupal, apresentamos: a primeira e a terceira sessão; a quinta que representou praticamente o meio do processo; a oitava, a décima e a última sessão – o que possibilitou acompanhar a trajetória percorrida pelo grupo.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Apresentaremos, a seguir, alguns fragmentos do material clínico de seis sessões do grupo de adolescentes, o qual foi analisado e interpretado a partir do aporte teórico-metodológico da psicanálise aplicada aos grupos. Os adolescentes não foram identificados pelos seus nomes reais, sendo omitida qualquer informação capaz de propiciar a identificação dos mesmos.

Primeira sessão

Ao longo da primeira sessão, observamos em vários momentos o silêncio no grupo. Os adolescentes esboçavam leves sorrisos, evitavam trocas de olhares e olhavam bastante para a terapeuta. O início do grupo é propício a formações regredidas uma vez que costuma ser um momento ansiogênico (Bion, 1961). O grupo demonstra silêncios frequentes e dificuldade em estabelecer um processo associativo, se organizando de acordo com o pressuposto de dependência de Bion (1961), cuja suposição básica é de que existiria um líder, no caso a psicóloga, que teria a função de dirigir e orientar os participantes do grupo.

Sobre a narrativa do mito de Ícaro:

Laura: Gostei da parte em que ele voa.
Os demais concordam com ela.
Cleiton: acho que não pode ser orgulhoso, precisa ter limites.
Débora: é bom ter limites, nas palavras, tem gente que exige que o outro escute o que está falando, e o outro exige que tem que falar, não respeita...

Observamos uma resistência do grupo, os participantes demonstram preocupação com a atitude de Ícaro não respeitar os limites e voar acima do permitido, e não trazem possíveis sentimentos que podem ter sido despertados a partir do mito. Neste momento, o grupo trabalhou sobre o processo secundário e o princípio de realidade. Segundo Freud (1900) - o contato com aspectos inconscientes do indivíduo pode se dar em face de uma resistência, de maneira que tal processo geralmente se encontra associado ao desprazer, fazendo com que ele o rejeite repetidas vezes.

Terceira sessão

A partir da narrativa do mito de Perseu:

Laura: (...) meu pai tem esquizofrenia, mora com a minha vó, a cada quinze dias a gente vai pra lá, mas eu não tenho vontade de ir, não gosto de ver ele assim...Meu padrasto é mais pai do que ele, dá mais carinho. O médico falou que ele pode até matar a gente...
Ângela: É difícil ficar sozinho... não poder ajudar..., quando o pai briga com a mãe, está tudo a sua volta...
Julia: Ouvi falar que cada vez tem mais pessoas no mundo, mas as pessoas se sentem sozinhas... por mais que o mundo exploda de gente. Frequentemente, eu pensava que as pessoas não gostavam de mim, que eu não tinha ajuda, me sentia cada vez mais sozinha, me sentia inferior, agora estou pensando diferente...

Observamos o fenômeno da ressonância no qual a fala de Laura fez sentido a outros adolescentes, deflagrando a cadeia associativa grupal. A ressonância ocorre a partir de um determinado tema, fantasia ou sentimento comum no grupo (Anzieu, 1966), nesse caso, temas como briga com os pais, rejeição, solidão e loucura.

Quinta sessão

Nesta sessão, selecionou-se o trecho em que Laura, Ângela e Débora falam sobre o sentimento de traição a partir dos mitos gregos.

Laura: Acho que (o mito de Héracles) é um tema atual, porque ele traiu. Zeus traiu a Hera com a Alcmena. E também a parte em que Dejanira faz de tudo pra segurar Héracles, acho que isso acontece. Tem pessoas que fazem de tudo para segurar os outros, e pode acabar prejudicando ela mesma e aos outros. Tem mulher que faz de tudo pra segurar o marido...
Ângela: Acho que no namoro também (pode haver traição).
Laura: Na família, primo, pai, mãe...
Ângela: Pode ter na amizade também, no sentido de trair a confiança.
Débora: Pode ter se você conta alguma coisa pra alguém, aí ela vai lá e trai sua confiança.
Laura: É difícil se sentir traído. Eu confiei e fui traída, gostava e depois fiquei com raiva... às vezes as pessoas ficam com ódio.
Ângela: É ruim, porque a pessoa que você mais gosta e confiava e contava tudo pra ela, te traiu e falou coisas que não eram verdade, espalhou e contou tudo..., depois não consegue ficar, confiar em outra pessoa, contam mentira, fofoca...

O grupo mostra-se concentrado nos sentimentos de traição, desamparo e insegurança dos vínculos. A partir do conteúdo mítico e das faltas de alguns adolescentes nesta sessão, consideramos que foram reativadas experiências emocionais persecutórias no aqui-agora do grupo. Ocorre uma fantasia inconsciente grupal de luta-fuga (Bion, 1961) – desconfiança e ataque ao grupo e à terapeuta, e ao mesmo tempo uma maneira de fuga, evitando o contato com as angústias e conflitos. As mudanças no enquadre podem mobilizar angústias persecutórias.

Oitava sessão

Em relação à introdução da narrativa mítica no grupo, nos fragmentos seguintes observamos que foram bem aceitas pelos adolescentes e que demonstraram prazer em ouvir as histórias. Os personagens míticos funcionaram como objetos de identificação e facilitaram o processo associativo grupal. A partir da leitura do mito de Dioniso, os adolescentes falam sobre suas experiências com o álcool:

Ângela: Na primeira vez que experimentei tinha seis anos de idade, foi meu pai quem me deu.
Leandro: Eu adoro o cheiro do vinho e quando tomo é melhor ainda.
Maurício: Já bebi de tudo, conhaque...
Leandro: Também tem a parte que ela mata os filhos.
Julia: As mulheres que matavam os filhos ficavam loucas, como eles (os deuses) enlouqueciam as mulheres?
Leandro: Vai que elas bebiam também, né?! Não sei se a bebida faz chegar a isso, a ponto de matar...
Laura: Tira a pessoa de si!
Ângela: Tiro isso pelo meu pai, quando bebe ele briga, bate, coloca toda a culpa na bebida, eu acho que não é tanto a bebida que faz isso com ele, é ele que quer fazer isso e não tem coragem de falar isso pra gente. O meu pai é alcoólatra.

Décima sessão

A partir da narrativa do mito de Jasão:

Leandro: Às vezes, dá vontade de voltar a ser criança..., aperto a campainha dos vizinhos e saio correndo.
Laura: Eu brinco, às vezes, na balança do parquinho perto de casa.
Roberto:Tenho vontade de voltar a brincar de atacar manga, guerrinha de manga, era legal.
Leandro: Eu vou falar por mim, eu não tenho pressa de crescer não.
Julia: Eu também não! Nossa, daqui a pouco já vou fazer 18 anos!
Laura: Ah, eu quero fazer logo sim, poder fazer as minhas coisas, queria que fosse logo...
Julia: Eu sinto saudades, sinto falta...
Roberto: Eu queria voltar também... pra infância.
Leandro: Às vezes, fico lembrando o que eu fazia, falava quando criança, e sinto vergonha, bobo, era meio bobo.

Os adolescentes mostram-se inseguros e angustiados diante das exigências da realidade, com uma sobrecarga na estrutura egoica, e expressam o desejo em "voltar para a infância", buscando o princípio do prazer e evitando o desprazer. Regridem a uma fase primitiva do desenvolvimento, buscando no grupo realizar seus desejos, como no sonho (Anzieu, 1966).

Décima segunda sessão

A partir da narrativa do mito de Narciso, próximo ao momento de encerramento do grupo:

Ângela: Eu gostei muito!
Leandro: Ah, pra mim foi ótimo!
Julia: Nossa! me ajudou muito!
Laura: Ver outras experiências, expressar um pouco...
Julia: É, parar pra pensar um pouco, amadurece...
Laura: Tanto que a gente falou da nossa vida!
Julia: Achei muito legal comparar essas histórias de antes, da Grécia, com a nossa vida hoje.
Laura: Tanto que a gente contou sobre nossa vida... eu não conto pra ninguém mais!

O encontro é encerrado com um sentimento positivo, os adolescentes criam a sensação de que formaram um ótimo grupo. Fantasia de ilusão grupal (Anzieu, 1966) - vem responder a um desejo de alívio, segurança e preservação da unidade egoica ameaçada do grupo. Ao mesmo tempo, é uma defesa coletiva contra a ansiedade de separação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados mostraram que o grupo, como objeto de catexias psíquicas e sociais, foi um espaço de confrontos e de laços afetivos, depositário de imagens, emoções e conflitos; um lugar para a realização dos desejos reprimidos e de manifestação do inconsciente dos adolescentes. Os participantes se sensibilizaram aos fenômenos psíquicos do grupo, possibilitando a compreensão do processo de grupo e de seu funcionamento. O estudo comprovou que o grupo se constituiu um dispositivo terapêutico pertinente para a promoção de autoconhecimento, proporcionando compreensão e alívio emocional aos adolescentes.

Em relação à introdução da narrativa mítica no grupo, consideramos que foram bem aceitas pelos adolescentes, tendo a função de identificação destes com os heróis míticos, repletos de aventuras, fracassos, êxitos, paixões, perdas, traições, abandonos e lutas, reativando fantasias e conflitos nos seus psiquismos. Como exemplo, podemos citar as falas dos adolescentes que se referiam à atualidade da narrativa mítica, relacionada a relacionamentos amorosos e relação pais-filhos.

Percebemos que formações psíquicas inconscientes foram projetadas no material mítico, desencadeando a associação livre no grupo, o processo transferencial e a intersubjetividade; serviu como um instrumento de sensibilização e reflexão, facilitando a expressão de seus sentimentos, fantasias e desejos, constituindo-se em uma nova concepção para a investigação e compreensão do funcionamento psíquico do grupo. Assim, acreditamos que a nossa experiência, com a introdução dos recursos míticos, pode servir de referência para o trabalho com adolescentes ou crianças no campo da saúde mental, educação e outras áreas afins, pois além dos benefícios terapêuticos encontrados no presente estudo, as narrativas míticas se constituem uma ferramenta econômica de intervenção.

Concluímos, ainda, que os adolescentes demonstraram prazer em ouvir as histórias míticas e suas imaginações puderam ser manifestadas, através dos personagens míticos. Os mitos, assim como os contos de fadas ou as lendas, por possuírem uma linguagem simples, facilitaram com que o grupo fizesse associações que nos permitiram a realização de análises dos conteúdos inconscientes apontados no decorrer deste estudo.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Cybele Carolina Moretto
E-mail: cybele.moretto@ig.com.br

Recebido em 25/02/2013.
1ª Revisão em 18/04/2013.
2ª Revisão em 10/05/2013.
Aceite Final em 02/06/2013.

 

 

1 Cybele Carolina Moretto é psicóloga, mestre e doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
2 Antonios Terzis é doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e da Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo.