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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.14 no.1 Ribeirão Preto  2013

 

ARTIGOS

 

"Quem assume a função do pai?": discussões sobre a separação conjugal

 

"Who assumes the role of the father?": discussion on marriage separation

 

"¿Quién asume el papel de padre?": debate sobre la separación de la unión

 

 

Ana Paula Medeiros 1; Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes 2; Leandro Soares da Silva 3; Valéria Barbieri 4

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A literatura enfatiza a importância da família para o desenvolvimento emocional da criança. Este estudo objetivou demonstrar como a psicoterapia pode ser buscada para diminuir as responsabilidades dos pais no cuidado do filho. A mãe procurou atendimento psicológico alegando que o filho, de oito anos, sofria a ausência do pai após o divórcio do casal. Percebeu-se que a criança procurava ocupar o espaço do pai, amadurecendo precocemente. A mãe sentia-se a única responsável pelo cuidado do filho. A tentativa era que o terapeuta pudesse dividir com ela as responsabilidades, de forma que ela se sentisse menos culpada por eventuais prejuízos do filho. Há necessidade da família em encontrar uma figura paterna. Outros estudos devem ser realizados para aprofundar a discussão.

Palavras-chave: Familia; Psicoterapia; Desenvolvimento infantil; Separação conjugal.


ABSTRACT

The literature emphasizes the importance of the family for the child's emotional development. This work aims to demonstrate how psychotherapy may be sought to diminish parental responsibilities. The mother sought psychotherapy claiming that the eight-year-old child suffered the father absence after their divorce. It was noticed that the child tried to take the father's role, with early maturation. The mother felt as the only person responsible for raising the child. The attempt was that the therapist could share the responsibilities with her, so that she would feel less guilty for any harm to her son. It is needed the family finds a father figure. Further studies should be conducted to further the discussion.

Keywords: Family; Psychotherapy; Child development; Marital separation.


RESUMEN

La literatura hace hincapié en la importancia de la familia para el desarrollo emocional del niño. Este trabajo tiene como objetivo, demostrar cómo la psicoterapia puede ser buscada para disminuir las responsabilidades de los padres en el cuidado del niño. La madre buscó atendimiento psicológico visto que su hijo de, ocho años, sufre la ausencia del padre después del divorcio de la pareja. Se observó que el niño trató de ocupar el espacio del padre, por medio de una maduración temprana. La madre se sentía la única responsable por el cuidado del niño, temiendo que este se viera perjudicado. El intento era que el terapeuta pudiese compartir las responsabilidades con ella, así ella se sentiría menos culpable por cualquier prejuicio de su hijo. Existe la necesidad de la familia encontrar una figura paterna. Nuevos estudios deben llevarse a cabo para avanzar en la discusión.

Palabras clave: Familia; Psicoterapia; Desarrollo del niño; La separación matrimonial.


 

 

 

IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA PARA O DESENVOLVIMENTO INFANTIL

A literatura psicológica enfatiza a importância dos diversos aspectos que podem influenciar o desenvolvimento emocional saudável de uma criança. Dentre eles, o papel da família é um dos que merece maior destaque: para Bowlby (1995/2006), a ausência de um ou de ambos os pais ou a incapacidade destes em cuidar do filho, resultará em um processo de privação, que poderá acarretar em consequências negativas à criança, sendo que esse prejuízo pode, inclusive, prejudicar todo o seu processo desenvolvimental.

De acordo com Passos (2009), as funções da família têm se modificado ao longo do tempo e dependem da forma como esta é constituída e do contexto sociocultural em que está inserida. Apesar destas mudanças, para Soifer (1982), os pais devem continuar a serem responsáveis por ensinar a seus filhos o cuidado físico, as relações familiares, a atividade produtiva e recreativa, relações sociais, inserção profissional e relações sentimentais. Para a mesma autora, as figuras parentais podem ser responsáveis por comprometer o bom desenvolvimento da criança se não desempenharem satisfatoriamente os papéis que envolvem cuidado e orientação.

Para Dessen e Polonia (2007), a criança aprenderá primeiramente a intermediar suas relações dentro do ambiente familiar. Assim, ela compreenderá como expressar seus sentimentos, controlar suas emoções e lidar com seus conflitos a partir da relação com seus pais e irmãos. Quanto mais satisfatórias forem essas relações, mais facilidade a criança terá para transpor o que aprendeu a outros contextos, favorecendo a capacidade de vincular a outros.

De acordo com Winnicott (1956/1993), a família é responsável por auxiliar no amadurecimento emocional dos filhos, sendo que a mãe precisa estar preparada para ajudar a criança a crescer, precisando, para isso, sentir-se aceita na sociedade e no círculo familiar. Neste sentido, o pai deve atuar a fim de auxiliar a relação mãe-filho, contribuindo para que o ambiente e suas condições sejam satisfatórios para o desenvolvimento afetivo infantil.

Ainda segundo as ideias de Winnicott (1956/1993), logo após o nascimento, o bebê se encontra em um estágio de dependência absoluta, ou seja, precisa de cuidados integrais da mãe. Para isso, é fundamental que ela esteja disposta a identificar e responder às necessidades do filho, para que ele consiga se constituir como uma unidade e se integrar. Se a mãe não conseguir corresponder a esse papel, o desenvolvimento do filho ficará comprometido, assim como seus estágios subsequentes: a dependência relativa e autonomia relativa. Se esta etapa da vida da criança é prejudicada, ela sentir-se-á apenas como um corpo com partes soltas, podendo acarretar o surgimento de patologias mentais. Dessa forma, o amadurecimento da criança fica prejudicado quando os pais não conseguem satisfazer as necessidades de seus filhos o que acaba influenciando negativamente também o desenvolvimento da família (Arruda & Andrieto, 2009).

Segundo Spitz (1945), os pais não só devem atender aos filhos em suas necessidades físicas, como também relacionar-se afetivamente com eles, para que estes não percam o interesse pelo relacionamento interpessoal. Nesse sentido, é possível compreender que ao cuidar e estar atento às necessidades do filho, os pais funcionam como ambiente facilitador, favorecendo que a criança sinta confiança em relação ao meio externo, entendendo que este é capaz de responder às suas necessidades físicas e emocionais. Desta forma, a criança sentirá segurança para assumir funções em seu desenvolvimento, conseguindo atingir a relativa independência.

Diante disso, é fundamental entender como as novas configurações, resultantes de modificações nos estilos de vida, da inserção da mulher no mercado de trabalho e do aumento de divórcios (Guimarães & Petean, 2012), influenciam desenvolvimento infantil, o âmbito familiar e o social. Uma das estratégias possíveis para se compreender essas modificações refere-se à reflexão acerca da busca dos pais por atendimento psicoterápico para os filhos. Neste ato, os pais buscam auxílio terapêutico não apenas para cuidar de um sintoma da criança, mas também para que eles sejam auxiliados a exercer melhor suas funções (OCampo et al., 1979/2009). Além disso, os pais podem procurar a psicoterapia para diminuir suas responsabilidades e o sentimento de culpa por sentirem que não estão cuidando da criança como deveriam: nestes casos, algumas funções parentais chegam a ser delegados ao terapeuta (Zanetti & Gomes, 2011).

Nesse sentido, ao compreender melhor as motivações dos pais para procurar ajuda, é possível entender os sintomas da criança, que podem, inclusive, ser reflexo de uma patologia familiar (Pichon-Rivière, 1982/1994; Finkel, 2009). Destaca-se, então, a importância de se realizar um processo inicial de triagem, antes do início da psicoterapia, que investigue profundamente a dinâmica familiar, auxiliando na compreensão da queixa e nos motivos manifestos e latentes que levaram os pais a procurar atendimento (OCampo et al., 1979/2009), proporcionando, assim, um melhor atendimento da demanda familiar.

A partir das questões apresentadas, o presente estudo baseia-se em um caso clínico de uma criança de oito anos, com nome fictício de Daniel, que passou pelo processo de triagem interventiva, com a finalidade de aprofundar o conhecimento a respeito da criança e de sua família, proporcionando um melhor atendimento a sua demanda. Esta triagem é realizada em cinco sessões, a saber: entrevista com os pais ou responsáveis pela criança; sessão lúdica com a criança; sessão familiar; devolutiva com os pais e devolutiva com a criança. Entende-se a importância de se realizar um trabalho estendido e interventivo para que o contrato de trabalho seja feito com toda a família, envolvendo todos no processo, além de possibilitar um contato aprofundado com eles, de forma a compreender melhor o sintoma da criança, a organização familiar, suas fantasias, suas relações e as motivações para procurar atendimento (Scaglia, Mishima, & Barbieri, 2011).

Este modelo de triagem realizado, possibilita maior compreensão do caso a ser discutido, de forma que, com a análise dos dados obtidos durante o processo, pretende-se investigar como a psicoterapia pode ser um espaço buscado pelos pais para diminuir as suas responsabilidades na educação do filho, sobretudo quando um dos pais está ausente.

O processo de triagem, neste caso, ocorreu da seguinte forma: entrevista inicial com a mãe de Daniel, sessão lúdica com a criança, sessão familiar com a presença da mãe e da criança, e sessão devolutiva para ambos, realizada separadamente. A triagem foi realizada por um estagiário do último ano do curso de Psicologia, com supervisão das coordenadoras responsáveis pelo serviço infantil da clínica escola.

Na entrevista inicial a mãe de Daniel assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que autorizava a utilização dos dados obtidos para a realização de estudos científicos. É importante ressaltar que todos os nomes utilizados neste estudo são fictícios, a fim de respeitar a identidade dos participantes.

 

CASO CLÍNICO

Marcela inscreveu seu filho Daniel para atendimento em uma clínica-escola de Psicologia alegando que este sofria com a ausência do pai. Deve-se destacar, que já no momento da inscrição, Marcela pediu que o filho fosse atendido por um estagiário do sexo masculino. Durante a entrevista inicial, Marcela forneceu muitos dados a respeito de seu filho e de sua família, sendo que foram necessários três encontros para a realização de toda a anamnese, totalizando 5 horas de duração. Marcela explicou que procurou atendimento porque a criança sentia muita falta do pai e que, por isso, ficava muito irritada e nervosa quando sofria frustrações. Com relação ao desenvolvimento do filho, ela disse que a gestação havia ocorrido em um momento conturbado do relacionamento entre ela e o marido, além de não ter sido planejada. Até o momento, o desenvolvimento da criança ocorria normalmente.

A mãe de Daniel mostrava-se preocupada quanto aos relacionamentos do filho com colegas. Ela relatou que, embora preferisse brincar acompanhado e fizesse amizades com facilidade, ele pedia para que ela o ajudasse a se aproximar de outras crianças. Além disso, Marcela relatou que o filho tinha dificuldade para perceber quando estava sendo inconveniente ou quando incomodava, além de ficar frequentemente irritado quando percebia alguma frustração. Embora apresentasse essas preocupações, em alguns momentos, Marcela se questionava se o filho realmente precisava de atendimento psicológico. Ela contou ainda que a criança apresentava boa saúde, relatando que Edson, pai de Daniel, havia tido episódios de alcoolismo, sobretudo quando tinha problemas no trabalho.

Ao final, contou que o pai não via a criança fazia muito tempo, apesar de todo esforço da mãe para que isso acontecesse, sendo que tal fato havia feito com que ela apelasse para a presença paterna, enviando ao pai um vídeo em que mostrava o desenvolvimento do filho e o quanto o pai estava perdendo por estar longe deles. Mesmo tal acontecimento, segundo Marcela, não havia sensibilizado Edson, que continuava apenas com as obrigações legais referente ao pagamento da pensão alimentícia.

A partir dos dados obtidos ao longo da entrevista, pode-se perceber que Marcela mostrou-se disposta e colaborativa. No entanto, notou-se que são poucas as informações trazidas a respeito do desenvolvimento e da problemática de Daniel, justificado pelos momentos em que a mãe se questionava se havia necessidade de procurar atendimento para o filho. Quando interrogada sobre a queixa principal, a falta que sente do pai, Marcela não soube se aprofundar na problemática, dispensando tempo para relatar sobre seus sentimentos em relação à separação. Percebe-se, então, uma confusão entre as necessidades da criança e da mãe, fazendo entender que o motivo latente da procura por psicoterapia para o filho pode representar uma percepção da mãe que precisava ser ouvida, podendo elaborar a sua separação.

Após a etapa de anamnese, foi realizada a sessão lúdica com Daniel. A criança chegou com a mãe, com poucos minutos de atraso. Ele estava com uma mochila nas costas e usava um boné. Ao entrar na sala de atendimento, colocou a mochila sobre a mesa e vasculhou brevemente a caixa de brinquedos, sentando-se posteriormente em uma pequena cadeira.

Daniel passou a conversar com o terapeuta, fazendo perguntas sobre o curso de Psicologia e sobre a universidade, dizendo que pretendia ser aluno da mesma no futuro. Em uma tentativa de conhecer melhor a criança, foi perguntado o que ele gostaria de estudar, ao que este respondeu que gostava muito de insetos, contando que os colecionava. Após isso, a criança relatou que passou um dia em um sítio de um amigo e que estes procuraram aranhas. Foi-lhe perguntado, então, sobre suas amizades, e Daniel respondeu que tinha "dois melhores amigos" (sic). Além disso, contou que é maltratado por outras crianças, que brigavam e jogavam areia nele, completando que se comportava da mesma forma para se defender. Em outro momento da sessão, Daniel disse que os colegas da escola tinham medo dele e que corriam quando o viam, por temerem que ele jogasse areia.

Daniel não utilizou os brinquedos da caixa lúdica durante a sessão, permanecendo o tempo todo conversando. Em um determinado momento, a criança disse que gostou muito do terapeuta, terminando por convidá-lo a ir até a sua casa para visitá-lo. Além disso, ele retirou cereais da bolsa, oferecendo ao terapeuta, mas sem comê-los. Ao final da sessão, retirou seu videogame de futebol da mochila e mostrou uma jogada que havia feito e gravado em outro momento. Encerrada a sessão, antes de se despedirem, Daniel refez o convite para que o terapeuta o visitasse em sua casa.

A partir do relato desta sessão, foi possível perceber que a criança possuía capacidade intelectual preservada e bons recursos para comunicação verbal (a todo momento apresentou fala correta, sem cometer erros). Contudo, o contato verbal da criança pareceu um esforço para se apresentar como alguém maduro, capaz de se cuidar sozinho e não precisar depender de ninguém, o que acabava resultando em uma sensação de desconforto. Além disso, a ausência de brincadeiras lúdicas pode representar supressão da criatividade e da espontaneidade, o que pode dificultar a expressão de um self verdadeiro, de suas dificuldades, potencialidades e fantasias com relação à psicoterapia (Winnicott, 1971/1975).

Daniel evidenciou, em alguns momentos, o interesse pelo cuidado com o outro, demonstrado principalmente na tentativa de agradar o terapeuta, ao conversar sobre assuntos que, segundo sua compreensão, seriam mais interessantes para um adulto. Além disso, a criança ofereceu alimento ao terapeuta e o convidou para ir a sua casa, podendo esta atitude ser entendida como uma tentativa de ter um homem adulto no ambiente familiar: não sendo criança, Daniel não precisaria de alguém que exercesse o papel de pai para ele, além de poder, quem sabe, exercer a função de esposo para sua mãe (Sganzerla & Levandowski, 2011).

Apesar de ter sido capaz de estabelecer bom contato com o terapeuta, Daniel evidenciou sua dificuldade em se relacionar com outras crianças, quando relatou que gostava dos amigos, mas que eles tinham medo dele, além de fazer deboches. Esta dificuldade no contato interpessoal pode ser resultante da sua relação com a figura presente no ambiente familiar, no caso a mãe, que relatou que conversava com o filho como se este fosse um amigo seu, além de demonstrar interesse em que a criança parecesse mais adulta do que era. Assim, foi possível destacar que Daniel demonstrou não haver espaço para o lado infantil, para o brincar, mas que precisava se mostrar independente, cuidador e até provedor de afeto.

Posterior à realização da sessão lúdica, foi feita a sessão familiar, que contou com a presença da criança e de sua mãe. O terapeuta lhes informou que teriam cinquenta minutos para utilizar como quisessem. Então, Marcela pediu que o filho guardasse o livro que segurava aberto, ao que ele obedeceu. Após isso, mãe e filho, que pareciam confusos, sentaram-se em uma mesa infantil disposta na sala e vasculharam a caixa. Enquanto isso, Marcela relatava que havia muito tempo que não brincava com o filho, fato que logo foi consentido por Daniel, que se mostrou insatisfeito com esta realidade de não poder dispor de um tempo com sua mãe.

Marcela ordenou, então, que o filho fizesse um desenho para sua madrinha, a fim de retribuir um desenho que ele havia ganhado dela. A criança pareceu contrariada, mas deu início à tarefa. Daniel não sabia o que desenhar e então passou a realizar a atividade a partir das orientações da mãe que, enquanto isso, brincava com blocos, formando prédios. Marcela apressou o filho, dizendo que era para ele finalizar logo o desenho para poderem brincar juntos.

Assim que terminou o desenho, Daniel passou a brincar com a mãe, que o elogiou pela maneira como ele montou os telhados dos prédios. Quando terminou esta atividade, o menino foi capaz de expressar sua criatividade mais livremente, ao utilizar as peças do jogo para criar figuras mais originais, como um macaco e um peixe. Após a realização desta atividade, a sessão foi encerrada.

A partir do relato da sessão familiar ficou evidente a pouca interação lúdica entre mãe e filho, sendo que esta interação baseia-se mais na comunicação verbal e nos pedidos solicitados ao filho, evidenciado pelo momento em que Marcela o mandou desenhar, mesmo ele não demonstrando interesse nesta atividade. Dessa forma, Daniel não consegue expressar a sua criatividade e espontaneidade, sendo influenciado, mais uma vez, pelo contato com um adulto, buscando corresponder às expectativas deste, assim como aconteceu na sessão lúdica, no contato com o terapeuta. Apesar disto, a criança conseguiu se expressar livremente ao final da sessão, o que é representativo de preservada capacidade interna, uma vez que, mesmo inserido em uma atividade imposta pela mãe, ele foi capaz de realizá-la e, depois, de se expressar por meio do gesto espontâneo (Winnicott, 1971/1975).

É importante ressaltar que a criança e o terapeuta pouco conversaram durante a sessão, uma vez que a mãe intermediava a relação entre os dois o tempo todo, principalmente utilizando a sua fala para exaltar a capacidade intelectual de seu filho. Assim, pode-se perceber que, ao se comportar desta forma, Marcela evitou uma aproximação afetiva entre Daniel e o psicólogo e, possivelmente, uma expressão mais livre de seu filho, que poderia mostrar suas dificuldades, e, consequentemente, déficits na relação mãe-filho.

Além disso, é sabido que uma das funções da figura materna é fazer a intermediação da relação entre o pai e seu filho (Cia, Williams, & Aiello, 2005). É possível inferir que Marcela estava intermediando a relação de Daniel com o terapeuta neste sentido, ou seja, percebendo o terapeuta como aquele que poderia ocupar o lugar de pai da criança. Diante deste quadro, o psicólogo exercendo a função paterna, teria a incumbência de cuidar, orientar e educar Daniel, diminuindo assim a responsabilidade da mãe e dividindo com alguém a culpa que ela pode sentir por algum prejuízo no desenvolvimento do filho.

Como última etapa do processo de triagem, foi realizada a sessão de devolutiva com Marcela e Daniel, separadamente. Na devolutiva com a mãe, foram apontadas as percepções realizadas a partir do processo de triagem. Dentre estas, foi dito que a queixa principal, a ausência do pai, parecia ser mais uma questão preocupante para a mãe do que para a criança, e que, por isso, seria indicado que Marcela também passasse por atendimento psicológico. Além disso, o atendimento poderia propiciar um espaço para que a mãe pudesse trabalhar sua insegurança em relação à educação do filho, principalmente por não ter a figura do pai para dividir esta responsabilidade. Foi indicado também que Daniel passasse por psicoterapia, podendo, assim, usufruir de um espaço para pensar questões referentes à distância do pai e para que pudesse se expressar mais livremente, de forma criativa. Marcela aceitou tudo o que foi dito, inclusive a indicação de ambos para atendimento psicológico na própria clínica-escola.

A devolutiva com Daniel aconteceu no mesmo dia. Inicialmente, a criança não quis entrar na sala de atendimento, mudando de ideia depois, embora parecesse insatisfeito. Ele disse que gostaria de ir até a sala com a sua mãe, para que pudessem brincar juntos. Foi explicado ao paciente que aquele seria um momento dele e do terapeuta e, posteriormente, este apresentou uma estória escrita para a criança. Daniel gostou bastante da estória e demonstrou disposição para iniciar o atendimento, embora tenha ficado decepcionado ao saber que seria acompanhado por outro terapeuta. A criança quis utilizar o seu tempo para brincar com um jogo estruturado trazido por ele para a sessão, o que pode indicar uma necessidade de controle e dificuldade em ser espontâneo, além de ser uma maneira de se mostrar ao terapeuta o que ele possui, tanto de concreto – o jogo, como de subjetivo – a habilidade para fazer uso do brinquedo.

 

DISCUSSÃO

A partir da apresentação do processo de triagem de Daniel pode-se perceber que os sintomas relatados por sua mãe refletem a dificuldade da família, sobretudo de Marcela, com relação à separação do pai da criança. A mãe de Daniel apresentou sentimentos de insegurança e de vazio pela ausência do companheiro. Assim, ela acabava por não se sentir preparada para ficar sozinha e, com isso, ser a figura principal que se responsabilizaria pela educação e pelo cuidado da criança. Dessa maneira, a estratégia utilizada por ela foi a procura por uma figura que pudesse dividir essas responsabilidades (psicólogo) e por um espaço que pudesse conter suas angústias (psicoterapia).

De acordo com Winnicott (1958/2000), o amadurecimento de um indivíduo depende de um ambiente facilitador e da capacidade da criança em se identificar com a sociedade sem sacrificar seus impulsos. Quando a criança precisa ter o amadurecimento antecipado, acontecendo de forma precoce, ela acaba abdicando de suas necessidades e seus impulsos, o que compromete a sua espontaneidade. Nota-se que o caso de Daniel é ilustrativo para essa ideia, uma vez que a criança sentia necessidade de se mostrar amadurecida e parecer mais adulta que uma criança da sua idade. Se comportando desta forma, Daniel precisaria menos dos cuidados de sua mãe e poderia ocupar o lugar do pai que estava ausente, diminuindo, assim, as necessidades afetivas de Marcela.

Apesar desse amadurecimento precoce, o potencial e a presença de recursos egoicos mostraram-se perceptíveis e, aliados à psicoterapia, poderão auxiliá-lo em seu desenvolvimento emocional. Para que isso seja possível, também foi oferecido um espaço terapêutico para a mãe. A psicoterapia para ela poderá ter diversas funções, que auxiliem tanto em seu próprio desenvolvimento, quanto em relação ao amadurecimento emocional do filho. Nesse sentido, ela poderá contar com esse espaço para auxiliar no enfrentamento das dificuldades advindas da separação do marido e, também, para poder repensar as estratégias diante das adversidades, estando mais preparada e sentindo-se mais capaz para cuidar do filho. A procura pelo atendimento psicoterápico da criança pode ser considerada um indicativo de que Marcela se sentia incapaz de lidar com os cuidados de Daniel, buscando dividir esta responsabilidade ou ainda amenizar a angústia advinda de tal limitação.

Conforme descrito por Passos (2009), os pais têm muitas funções quando se trata de cuidado com o filho. Em consequência disso, quando há a separação e apenas uma pessoa fica responsável pela criança (no presente caso, a mãe), é natural que ela se sinta insegura pela responsabilidade e temerosa por não conseguir desempenhar seu papel de maneira satisfatória, o que justifica a procura pela psicoterapia e a sua importância, uma vez que este espaço poderá auxiliá-la nestes aspectos.

Ao longo do relato deste caso, percebeu-se que a mãe procurou, diversas vezes, intermediar a relação do filho com outras pessoas, sendo o fato evidenciado pela forma como ela se colocava entre Daniel e o psicólogo. Essa maneira de se comportar pode ser uma tentativa de incluir o outro na relação da dupla, mas sem permitir que o filho se afaste dela, mantendo-o dependente afetivamente. Entende-se, ainda, que a relação de Marcela com Daniel mostrou-se, muitas vezes, uma relação com características adultas, em que os dois conversam de igual para igual e que o filho deve satisfazer as necessidades da mãe, e não o contrário, aspecto impeditivo de seu crescimento e do aparecimento do gesto espontâneo. Com isso, Daniel sente-se pouco compreendido e atendido em suas necessidades, recorrendo à figura do terapeuta para mostrar essa insatisfação e a exigência que deve cumprir com o ambiente familiar, representado pela figura materna. Consequentemente, tanto Daniel quanto Marcela parecem buscar uma figura que seja capaz de ocupar o lugar do pai ausente, ambos buscam fazê-lo pela necessidade de dividir as exigências e amenizar a busca incessante de afeto pela figura materna.

Nesse mesmo sentido, pode-se pensar que a mãe sente-se protegida quando há perto dela uma figura masculina, o que justifica o fato de ter, na sessão devolutiva, reforçado seu pedido para que o filho fosse atendido por um homem. Deve-se destacar que o fato deste atendimento ter sido realizado por um estagiário do sexo masculino faz com que a repercussão seja diferente, uma vez que os vínculos estabelecidos acabam sendo mais diretamente ligados à figura paterna. Há, mais uma vez, a busca por uma pessoa que possa ocupar o lugar do pai de Daniel, podendo, inclusive, ser uma tentativa de diminuir os prejuízos que ela entende que a criança poderá ter por estar longe do pai.

É importante ressaltar que a ausência de estudos recentes que investigam a mesma temática é um dificultador para que sejam percebidas semelhanças e diferenças com outros casos. No entanto, pode-se, com este estudo, destacar a importância da figura paterna para o desenvolvimento da criança (Winnicott, 1956/1993), bem como a necessidade da família em atender às demandas do filho, para não prejudicá-lo (Sganzerla & Leyandowski, 2011). Além disso, evidencia-se a importância da figura do terapeuta, que precisa estar atento a essas diferentes solicitações, a fim de que elas possam ser trabalhadas de forma satisfatória.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante a apresentação do caso clínico e as discussões apresentadas, é possível perceber que Daniel sofre influências em seu desenvolvimento pela ausência de uma figura paterna, como a percepção de que precisa assumir funções que não são suas. Além disso, a mudança na relação com sua mãe e na forma desta cuidar da criança, cuja relação está permeada pelo medo de errar, também interferem na maneira como Daniel vai vivenciar suas relações e perceber o mundo externo.

Assim, os psicólogos precisam estar preparados para lidar com as diferentes demandas e as diversas formas de organização familiar. As alterações ocorridas na sociedade ultimamente (Guimarães & Petean, 2012) refletem-se também na procura pela psicoterapia, de forma que as queixas e demandas que chegam ao psicólogo são, cada vez mais, diversificadas. Este preparo provém de diferentes instâncias, como a constantes atualização profissional, a realização de estudos e pesquisas, a discussão de casos clínicos e supervisões dos atendimentos (Barreto & Barletta, 2010).

Além do preparo dos profissionais, as próprias famílias, muitas vezes, não sabem como lidar com as dificuldades cotidianas e não têm tempo para se dedicar aos filhos como entendem que deveriam. Nesse sentido, a procura pela psicoterapia acaba ocorrendo como maneira de solicitar ao terapeuta que possa cuidar da família, principalmente das crianças, ocupando o espaço daqueles que estão ou se mostram ausentes.

Como pode-se verificar nesse caso, a psicoterapia para o filho pode ter a função de dividir as preocupações com cuidado e orientação das crianças ao terapeuta, de forma a diminuir o sentimento de culpa caso o filho tenha algum problema ou, ainda, entendendo que a criança terá um desenvolvimento normal, mesmo sem a presença deles. Destaca-se, então, que o psicólogo deverá agir no sentido de mostrar a importância da presença familiar para o desenvolvimento dos filhos, apontando, assim, para qual é o papel da psicoterapia neste contexto e como esses profissionais podem auxiliar, agindo de maneira conjunta aos pais, no desenvolvimento de suas famílias, inseridas em diferentes configurações.

A partir deste caso, pode-se entender a necessidade da realização de outros trabalhos que investiguem a mesma temática, de forma a ampliar as discussões a respeito da prática e da clínica, que devem se adaptar às modificações que ocorrem na sociedade diariamente. Este fato deve-se à ausência de estudos recentes na área que demonstrem estratégias de intervenção com crianças e famílias e que estejam ligadas a essa temática, sendo estes necessários para preparar os diversos profissionais e instituições, como a escola e os serviços de saúde, para lidar com aquilo que é diferente do tradicional e que corresponde a uma nova realidade.

 

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Endereço para correspondência
Ana Paula Medeiros
E-mail: paulla_medeiros@hotmail.com

Recebido em 09/11/2012.
1ª Revisão em 03/01/2013.
Aceite Final em 03/02/2013.

 

 

1 Ana Paula Medeiros é psicóloga e mestranda em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2 Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes é psicóloga, mestre e doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Psicóloga do Centro de Psicologia Aplicada da mesma instituição.
3 Leandro Soares da Silva é psicólogo pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
4 Valéria Barbieri é doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.