SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 número2Análise qualitativa do uso de manual informativo para familiares em UTIGestão participativa?: Grupos operativos com profissionais da saúde/assistência social de Uberaba índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.14 no.2 Ribeirão Preto  2013

 

ARTIGOS

 

Luto: questões do manejo técnico na clínica psicanalítica

 

Grief: technical management issues in psychoanalytic clinic

 

Luto: cuestiones del manejo técnico en la clínica psicoanalítica

 

 

Renata Cristina Ribeiro Gibran1,I; Rodrigo Sanches Peres2,II

IUniversidade Federal de São Carlos, São Carlos-SP, Brasil
IIUniversidade Federal de Uberlândia, Uberlândia-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo discutir questões do manejo técnico da clínica psicanalítica individual com adultos enlutados. A partir de uma revisão narrativa realizada mediante buscas nas bases de dados SciELO, PePSIC e LILACS, constatou-se que tanto a psicanálise clássica quanto as psicoterapias de orientação psicanalítica são apontadas como potencialmente proveitosas em casos de luto. Embora se considere que os fenômenos transferenciais e contratransferenciais podem assumir características peculiares, não é recomendado um manejo técnico diferenciado, resguardando-se os objetivos táticos próprios de cada uma das práticas que se situam no campo da clínica psicanalítica. Sugere-se a realização de novos estudos, quer sejam empíricos, teóricos ou clínicos, para que certas lacunas ainda existentes na literatura especializada venham a ser preenchidas.

Palavras-chave: luto, clínica psicanalítica, psicanálise, psicoterapia psicanalítica, processos psicoterapêuticos


ABSTRACT

The study aims to discuss technical management issues of individual psychoanalytic clinic involving grieving adults. From a narrative review developed by searches in SciELO, PePSIC, and LILACS databases, it was verified that both classical psychoanalysis and psychoanalytic psychotherapy are indicated as potentially beneficial in cases of grief. Although transferential and countertransferential processes can display particular characteristics, a distinguished technical management is not recommended, thus preserving tactical objectives of each practice in psychoanalytic clinic. Further studies are suggested, whether empirical, theoretical or clinical, in order to expand current specialised literature.

Keywords: grief, psychoanalytic clinic, psychoanalysis, psychoanalytic psychotherapy, psychotherapeutic processes


RESUMEN

La finalidad de este estudio es discutir cuestiones del manejo técnico de la clínica psicoanalítica individual con adultos enlutados. A partir de una revisión narrativa realizada por búsquedas en las bases de datos SciELO, PePSIC y LILACS, se constató que tanto el psicoanálisis clásico como las psicoterapias psicoanalíticas son indicadas como potencialmente provechosas en casos de luto. Aunque se considere que los fenómenos transferenciales y contratransferenciales pueden asumir características peculiares, no se recomienda un manejo técnico diferenciado, resguardándose los objetivos tácticos propios de cada una de las prácticas en el campo de la clínica psicoanalítica. Se sugiere la realización de nuevos estudios, ya sean empíricos, teóricos o clínicos, para que determinadas lagunas que todavía existen en la literatura especializada puedan ser completadas.

Palabras-clave: luto, clínica psicoanalítica, psicoanálisis, psicoterapia psicoanalítica, procesos psicoterapéuticos


 

 

Conforme Ariès (1981), após o genocídio praticado na II Guerra Mundial, o sentimento predominantemente suscitado pela morte passou a ser a ojeriza, e as manifestações do luto, como consequência, foram modificadas de modo radical. O fenômeno designado pelo referido autor como "morte interdita" – ou seja, a morte que deve ocorrer fora do convívio público – tem sido valorizado desde então. Kovács (2003) salienta também que, sobretudo em função de uma série de avanços científicos recentes, os quais tornaram as práticas de saúde essencialmente tecnocêntricas, a morte passou a ser concebida como um fracasso do homem em manter a vida a despeito de todo seu conhecimento. Possivelmente por essas razões, a expressão do luto muitas vezes é repudiada socialmente na atualidade.

Mas como o luto pode ser definido? Parkes (1998) afirma que, genericamente, o luto representa a reação a uma perda significativa. De maneira mais específica, contudo, o referido autor propõe que é possível compreender o luto como a resposta a um acontecimento potencialmente disruptivo que será vivenciado, mais cedo ou mais tarde, por praticamente todos os seres humanos: a morte de um ente querido. E é por esse motivo que o luto, ainda segundo o referido autor, se afigura, em última instância, como o preço que se paga pelo amor (Parkes, 2009). Preliminarmente, faz-se necessário explicitar que, no presente estudo, utilizaremos esta compreensão mais específica a respeito do luto, relacionando-o exclusivamente a perdas por morte.

É preciso esclarecer também que, em que pese as mudanças pelas quais passou recentemente a atitude do homem frente à morte, pesquisas científicas dedicadas ao assunto vêm sendo realizadas com certa regularidade desde o início do século XX (Parkes, 2001). Freud se destaca nesse sentido pela autoria do texto "Luto e melancolia", publicado originalmente em 1917. O referido autor estabelece teoricamente uma correlação entre as condições que constam do título do texto ao apontar que em ambas se observaria um desânimo profundo, um abandono generalizado do interesse pelo mundo externo e uma significativa diminuição das atividades. Porém, uma marcante perturbação da autoestima estaria presente na melancolia, mas não no luto. Para Freud, isso se deve ao fato de que "no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego" (1917/1996, p. 278).

Portanto, seria possível presumir, na melancolia, a ocorrência de um remanejamento para o ego do investimento libidinal anteriormente direcionado a um objeto, isto é, um ente querido, ou ainda alguma abstração que ocupava o lugar de um ente querido. E o aprofundamento dessa linha de raciocínio leva à conclusão de que o melancólico não efetiva o que Freud designou como trabalho de luto. Afinal, tal processo se desdobra em dois movimentos: o primeiro consiste na descatexização do objeto perdido, e o segundo na recatexização de um novo objeto (Freud, 1917/1996). O trabalho de luto, na perspectiva freudiana, fomenta o que se poderia qualificar como luto normal. A melancolia, consequentemente, seria entendida com uma forma de luto patológico. Freud inovou tanto ao estabelecer tal diferenciação quanto ao asseverar que o luto normal envolve a execução de determinadas operações mentais, não se afigurando, assim, como o resultado de uma atenuação espontânea da dor da perda (Gonzaga & Peres, 2012).

Desenvolvimentos conceituais recentes, inclusive no contexto nacional, referendam e ampliam as proposições freudianas sobre o luto, ainda que o relacionando mais especificamente à perda de um ente querido por morte. O estudo teórico de Pinheiro, Quintella e Verztman (2010) é representativo nesse sentido, uma vez que estabelece convergências e divergências entre o luto, a melancolia e a depressão. Em linhas gerais, defende-se que o deprimido, a exemplo do melancólico, se mostra incapaz de levar a termo o trabalho de luto. Logo, ambos, em contraste com o enlutado após o percurso de uma dolorosa trajetória, não conseguem dotar a perda de um arcabouço simbólico. Não obstante, o deprimido se diferencia do melancólico por não se identificar com o ente perdido, posto que reconhece a perda e desenvolve uma narrativa sobre a mesma. Ocorre que tal narrativa se revela insustentável em função de uma crença narcísica que, enquanto defesa perante a experiência da perda, não comporta a ideia de finitude.

Tanto as proposições freudianas quanto os desenvolvimentos conceituais recentes sobre o luto se desdobram em implicações para a clínica psicanalítica. Porém, a partir de consultas prévias à literatura nacional, constatamos que são escassas as publicações brasileiras que abordam diretamente a clínica psicanalítica individual com adultos que vivenciaram a perda de um ente querido. Ressalte-se também que, em um recente editorial da revista Ciência & Saúde Coletiva, Minayo (2013) aponta que os temas "finitude, morte e luto" são frequentemente negligenciados na literatura em saúde de modo geral, tanto nacional quanto internacionalmente, o que constituiu um paradoxo face à provisoriedade que se constitui como marca do ser humano.

Desse modo, o presente estudo tem como objetivo básico discutir questões do manejo técnico da clínica psicanalítica individual com adultos enlutados. Mais especificamente, procuraremos mapear os critérios de indicação preconizados à luz de aportes teóricos psicanalíticos, assim como as características dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais e as intervenções passíveis de utilização frente aos mesmos. A relevância de tal tema se torna patente levando-se em consideração que, conforme Parkes (1998), perdas por morte podem demandar uma abordagem terapêutica devido ao impacto negativo que eventualmente acarretam, nos domínios físicos, psicológicos e sociais, àqueles que as vivenciam.

 

MÉTODO

Tendo em vista o objetivo básico do presente estudo, consideramos apropriado empregar os procedimentos metodológicos característicos das revisões narrativas, as quais, conforme Rother (2007), buscam a operacionalização de uma síntese teórico-analítica da literatura consagrada a um tema abrangente. Desse modo, ainda para a referida autora, as revisões narrativas, em contraste com as revisões sistemáticas, não partem de uma questão norteadora específica e prescindem de estratégias de localização, seleção e avaliação de referências definidas criteriosamente e descritas rigorosamente. Não obstante, é válido salientar que a literatura consultada para os fins do presente estudo foi constituída por publicações nacionais sobre a clínica psicanalítica individual com adultos enlutados veiculadas em um período de duas décadas (1992-2012) em variados formatos (artigos, livros e capítulos) e localizadas a partir de buscas on-line realizadas nas bases de dados SciELO, PePSIC e LILACS, bem como foi complementada por outras referências nacionais sobre o assunto citadas em tais publicações.

Julgamos relevante esclarecer também que empregaremos o termo "clínica psicanalítica" para aludir a um campo no qual se inserem, por um lado, a psicanálise clássica e, por outro, um conjunto de práticas clínicas que guardam maior ou menor proximidade técnica com a mesma em relação a fatores intrínsecos e extrínsecos, porém se assentam nos aportes teóricos psicanalíticos essenciais. Estas são, tipicamente, agrupadas sob a rubrica das psicoterapias de orientação psicanalítica e, em seu desenvolvimento, certos conteúdos do paciente são privilegiados pelo profissional com o intuito de evitar regressões mais profundas, inclusive porque será conferida ênfase à elaboração de seu conflito atual, e não de seu conflito primário (Eizirik & Hauck, 2009).

Por essa razão, segundo Machado e Vasconcellos (1998), intervenções expressivas e integrativas como a interpretação e a confrontação amiúde são preteridas – em contraste com o que se observa na psicanálise clássica – em prol de intervenções suportivas e explicativas, das quais o reasseguramento e o esclarecimento são exemplos. Assim, as psicoterapias de orientação psicanalítica apresentam, de modo geral, maior adaptabilidade face às condições psicológicas do paciente (Schestatsky et al., 2005).

 

RESULTADOS

Optamos por organizar em três segmentos os resultados da apreciação da literatura consultada, buscando, assim, contemplar os objetivos específicos estabelecidos para o presente estudo. No primeiro segmento, portanto, mapearemos as indicações tanto da psicanálise clássica quanto das psicoterapias de orientação psicanalítica na abordagem terapêutica de pacientes que vivenciaram perdas por morte. Já no segundo segmento, colocaremos em relevo as especificidades dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais nos casos de luto. No terceiro segmento, por fim, discutiremos, principalmente, o manejo técnico de tais fenômenos, articulando-o com os objetivos táticos próprios de cada uma das práticas que se situam no campo da clínica psicanalítica. Portanto, a apreciação da literatura consultada será apresentada respeitando-se um critério lógico, e não uma sequência cronológica, com o intuito de viabilizar a operacionalização de uma síntese teórico-analítica.

Psicanálise clássica versus psicoterapias de orientação psicanalítica nos casos de luto

Tomando como ponto de partida as assertivas de Bromberg (2000), podemos concluir que as características das psicoterapias de orientação psicanalítica mencionadas anteriormente assumem grande relevância nos casos de luto. Ocorre que, para a referida autora, o luto gera uma crise, na medida em que implementa uma nova realidade à qual o indivíduo deverá se adaptar. Entretanto, os recursos anteriormente utilizados pelo mesmo em circunstâncias adversas tendem a se revelar insuficientes diante desse desafio, o que enseja, em maior ou menor grau, dificuldades adaptativas, inclusive no luto qualificado como normal. Logo, o momento não seria o mais apropriado para desvelar questões inconscientes, posto que, se o profissional optasse por fazê-lo ao invés de circunscrever o foco à perda propriamente dita, poderia desencadear uma mobilização afetiva potencialmente desestruturante devido à situação de fragilidade em que o enlutado se encontra.

De modo mais explícito, Machado (2009), em um estudo teórico, se posiciona favoravelmente às psicoterapias de orientação psicanalítica na abordagem terapêutica de pacientes enlutados. E o faz a partir de uma aproximação psicodinâmica entre a depressão e o luto, uma vez que sustenta que a diferença entre o normal e o patológico, em ambas as condições, é passível de compreensão a partir dos mesmos marcos conceituais. O referido autor ainda defende que as decisões estratégicas do profissional devem ser pautadas na perspectiva supranosológica que as psicoterapias de orientação psicanalítica herdaram da psicanálise. O manejo técnico, assim, deverá ser norteado essencialmente pelas necessidades do paciente, de forma que poderá, em distintos momentos de um mesmo caso, se situar mais próximo de um ou de outro extremo do continuum expressivo-suportivo empregado para diferenciar, respectivamente, a psicanálise clássica das psicoterapias de orientação psicanalítica.

Ampliando tal linha de raciocínio, Eizirik, Michels e Gazal (1998), também em um estudo teórico, assumem uma postura conciliadora ao asseverar que tanto a psicanálise clássica quanto as psicoterapias de orientação psicanalítica podem se revelar proveitosas na abordagem terapêutica de adultos em situação de luto. Entretanto, é preciso esclarecer que os referidos autores aludem, mais especificamente, aos casos de luto patológico, entendendo-os, em linhas gerais, como aqueles em que traços de personalidade do paciente contribuem para a perpetuação de um quadro depressivo severo associado a um marcante empobrecimento egoico e, como consequência, inviabilizam a elaboração da perda. Afinal, a circunscrição do foco à perda propriamente dita seria, diante do exposto, pouco resolutiva. Consideramos válido propor, portanto, que, nos casos de luto patológico, a indicação de psicoterapia de orientação psicanalítica ou de psicanálise clássica depende essencialmente de um critério que, para Eizirik e Hauck (2009), possui um caráter mais abrangente, ou seja, não se limita às situações de perda por morte: o grau de autonomia do conflito atual em relação ao conflito primário.

Não obstante, quer seja este grau maior ou menor, Eizirik et al. (1998) salientam que os fenômenos transferenciais e contratransferenciais exigirão atenção especial por parte do profissional na clínica psicanalítica individual com adultos enlutados. Ainda que mais indiretamente, Batistelli (2010) contempla tal questão em um estudo clínico ao relatar o caso de um menino de nove anos cujo pai falecera subitamente. A autora aponta que, nas sessões de análise, o setting como um todo auxiliou o paciente a, gradativamente, encontrar caminhos para a elaboração do luto. Para tanto, a profissional se viu diante da necessidade de compartilhar vivências a partir do estabelecimento de uma relação pautada no fluxo transferencial-contratransferencial, buscando possibilitar ao menino experienciar uma dor que, inicialmente, possuía um caráter dilacerante.

Características dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais nos casos de luto

Em se tratando de adultos enlutados, os fenômenos transferenciais e contratransferenciais poderiam assumir características próprias? Tal pergunta emerge a partir do percurso trilhado até aqui e, tomando como base as assertivas de Eizirik et al. (1998), nos parece coerente sustentar que a mesma admite uma resposta afirmativa. Ocorre que, para os referidos autores, em certas situações o enlutado, de modo inconsciente, revive com o profissional sentimentos ambivalentes experimentados anteriormente na relação com o ente perdido. Se não estiver atento a esse movimento transferencial, o profissional tende, contratransferencialmente, a assumir simbolicamente o papel desempenhado pelo ente perdido na vida do paciente, inclusive se empenhando, de diferentes maneiras, em compensá-lo pela perda e em demonstrar-lhe que não lhe faltará.

Ireland (2011), por sua vez, delineou um fenômeno transferencial distinto ao relatar, em um estudo clínico, o caso de uma mulher que perdera sua filha adolescente por suicídio. No entendimento da autora, a paciente, ao menos em um momento inicial da análise, colocava a profissional no lugar simbólico de sua própria mãe, uma vez que seu funcionamento psíquico, devido à perda sofrida, a tornara extremamente dependente de um ambiente facilitador. Diante de um fenômeno regressivo dessa ordem, a profissional julgou necessário assumir uma postura predominantemente apoiadora, mas somente após o término da análise se deu conta de que, muitas vezes, se absteve de apresentar certos questionamentos e interpretações sem ter a devida clareza dos motivos que ensejaram essa conduta.

Em certo sentido, portanto, a manifestação contratransferencial observada no caso em pauta se assemelha àquela que, conforme Eizirik et al. (1998), tende a ser desencadeada quando o paciente transfere para o profissional sentimentos ambivalentes referentes ao ente perdido. Mas é válido acrescentar que os referidos autores ainda descrevem a existência de um outro tipo de fenômeno transferencial, por meio o qual o paciente, durante as sessões, não expressa seus sentimentos acerca da perda, assim como, fora delas, evita entrar em contato com os mesmos. Trata-se de uma tentativa radical de negar a perda, e seu principal resultado é a exclusão do profissional da vida emocional do paciente. Neste tipo de situação, o profissional pode, contratransferencialmente, potencializar sua própria exclusão se, com propósitos defensivos, não se revelar disponível para uma identificação parcial e controlada com o paciente.

Rudge (2008) também fornece elementos teóricos para o mapeamento dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais na clínica psicanalítica individual com adultos enlutados. Porém, a autora o faz um tanto quanto tangencialmente ao discutir fragmentos clínicos de pacientes que haviam vivenciado perdas por morte e, como uma vicissitude do processo analítico, apresentaram atos que foram qualificados como acting-outs. A autora considera o acting-out parte integrante dos fenômenos transferenciais, já que o mesmo se afigura, em linhas gerais, como "efeito da instalação da neurose de transferência" (p. 73). Porém, em adultos enlutados, seu aspecto demonstrativo tende a ser ressaltado, o que possibilita compreendê-lo, mais especificamente, como uma mensagem encenada da dor decorrente da perda.

O manejo da transferência e da contratransferência nos casos de luto

Diante do exposto, impõe-se aqui a seguinte pergunta: já que os fenômenos transferenciais e contratransferenciais podem assumir características peculiares na clínica psicanalítica individual com adultos enlutados, os mesmos demandarão um manejo técnico diferenciado? Em nosso entendimento, tomando como parâmetro as proposições de Machado (2009), caberia uma resposta negativa a essa pergunta. Afinal, como já mencionamos, o referido autor sustenta que a perspectiva supranosológica típica da psicanálise também deve ser adotada nas psicoterapias de orientação psicanalítica. Em ambas, portanto, as decisões estratégicas do profissional não serão determinadas diretamente pela entidade diagnóstica identificada no paciente, mas, sim, pelos objetivos táticos próprios de cada uma delas. E os mesmos, obviamente, são distintos entre si, uma vez que se articulam com critérios de indicação que, como já explicitamos, não coincidem.

Consideramos oportuno esclarecer que, conforme Schestatsky et al. (2005), o objetivo tático das psicoterapias de orientação psicanalítica é, essencialmente, a obtenção de pontos intermediários de estabilidade emocional, de forma que é conferida primazia ao máximo benefício terapêutico. Já na psicanálise clássica, o objetivo tático é a ampla reformulação da personalidade do paciente e, assim, o máximo conhecimento de si mesmo emerge como prioridade. Os referidos autores acrescentam que, para atingir tais objetivos estratégicos, nas psicoterapias de orientação psicanalítica não se propõe o desenvolvimento de uma neurose de transferência regressiva plena, cuja elaboração demandaria uma exploração mais ampla dos conflitos, como, a propósito, tipicamente se faz na psicanálise clássica à custa do recurso sistemático à interpretação. Logo, o profissional, nas psicoterapias de orientação psicanalítica, trabalha com a transferência visando a desvelar conflitos e defesas inconscientes do paciente, porém dentro de setores mais limitados de seu psiquismo.

Apoiando-nos nas proposições de Eizirik et al. (1998), também podemos concluir que os fenômenos transferenciais e contratransferenciais em casos de luto, embora possam assumir características peculiares, não demandam um manejo técnico diferenciado. Os referidos autores explicitam tal posicionamento ao afirmar que, tanto na psicanálise clássica quanto nas psicoterapias de orientação psicanalítica, o luto não deve ser abordado mediante uma técnica específica, mas, sim, juntamente com outros elementos do psiquismo do paciente conforme estes se manifestarem na relação terapêutica. Ou seja: se aplicariam as diretrizes gerais acerca do manejo técnico da transferência e da contratransferência, posto que ambas são elementos determinantes para a relação terapêutica.

Já mencionamos que, na psicanálise clássica, a interpretação é empregada sistematicamente no manejo técnico da transferência e, sobretudo, da neurose de transferência. Desse modo, faz-se necessário acrescentar que, nas psicoterapias de orientação psicanalítica, a interpretação, conforme Tyson e Eizirik (2005), deve necessariamente ser utilizada ao menos em três circunstâncias: (1) quando da eclosão de eventuais ansiedades paranoides no início do tratamento, (2) face à ocorrência de certas resistências inerentes ao processo psicoterapêutico, principalmente quando as mesmas assumem a forma de acting-outs, e (3) para a elaboração das vicissitudes do término do tratamento. Assim, seu emprego tende a ser mais pontual, alternando-se com intervenções suportivas e explicativas, as quais podem ser qualificadas como extratransferenciais por não se dirigirem diretamente à relação terapêutica.

Quanto à contratransferência, consideramos relevante destacar que, de acordo com a literatura consultada para os fins do presente estudo, seu manejo técnico é contemplado de modo superficial pelos autores que se dedicam à clínica psicanalítica individual com adultos enlutados. Isso possivelmente reflete a ausência de consenso a respeito que, conforme Eizirick e Lewkowicz (2005), ainda existe tanto na psicanálise clássica quanto nas psicoterapias de orientação psicanalítica. Não obstante, parece-nos razoável concluir que as manifestações contratransferenciais já mencionadas a partir das descrições de Eizirik et al. (1998) e Ireland (2011) – assim como quaisquer outras que possam vir a ocorrer – tanto são capazes de se tornarem obstáculos intransponíveis para a relação terapêutica quanto ferramentas clínicas valiosas para uma compreensão aprofundada do psiquismo do paciente.

Tal conclusão se alinha à predominância da chamada "concepção totalística", segundo a qual a contratransferência deve ser entendida como um elemento legítimo da relação terapêutica e engloba todos os sentimentos e atitudes, conscientes e inconscientes, do profissional para com o paciente (Eizirik, Liberman, & Costa, 1998). Mas faz-se necessário esclarecer que, em termos práticos, os efeitos da contratransferência poderão ser terapêuticos ou não dependendo da capacidade do profissional reconhecê-la adequadamente. Somente a partir desse reconhecimento o mesmo terá condições de definir o manejo técnico mais apropriado, muito embora, de acordo com Eizirick e Lewkowicz (2005), comumente a comunicação direta da contratransferência seja contra-indicada, salvo nas situações em que não fazê-lo possa representar um ataque à percepção do paciente.

Por fim, há que se salientar que Freitas (2000), a partir de uma pesquisa empírica desenvolvida com mães em situação de luto devido à perda de um filho jovem, reporta a obtenção de resultados positivos com a utilização da psicoterapia breve de orientação psicanalítica. E Bromberg (2000), apoiando-se em uma série de evidências empíricas oriundas de estudos internacionais, também salienta as vantagens de intervenções de duração mais limitada, não se restringindo, inclusive, aos casos de luto materno. Para a referida autora, esse tipo de intervenção tende a permitir que o enlutado expresse suas emoções básicas em relação à perda, ainda que sejam ambivalentes e dolorosas, o que o auxiliaria a se adaptar à nova realidade implementada pela mesma. Além disso, não privilegia o desvelamento de questões inconscientes, o que, como já informamos, é considerado pela referida autora um cuidado a ser observado na abordagem terapêutica de adultos enlutados.

Um detalhamento a respeito das especificidades da psicoterapia breve de orientação psicanalítica foge ao escopo do presente estudo e pode ser encontrado nas valiosas obras de Lowenkron (2006) e Yoshida e Enéas (2013), para citar apenas referências nacionais. Contudo, cabe aqui esclarecer que, conforme Freitas (2000), no desenvolvimento das sessões o profissional deve priorizar o estabelecimento com o paciente de uma relação diádica com componentes afetivos, cognitivos e educativos, conferindo ao processo psicoterapêutico, consequentemente, um caráter não-transferencial e não-regressivo. Em parte devido a essas características, a psicoterapia breve de orientação psicanalítica, ainda para a referida autora, tende a se revelar especialmente proveitosa para pacientes enlutados que apresentam um nível de adaptação prévio aceitável, porque, por um lado, os instrumentaliza para o enfrentamento da crise desencadeada pela perda, assim como, por outro lado, pode prevenir seu agravamento ou cronificação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na apreciação da literatura consultada para os fins do presente estudo, salientamos que tanto a psicanálise clássica quanto as psicoterapias de orientação psicanalítica, inclusive aquelas de duração mais limitada, são apontadas como potencialmente proveitosas na abordagem terapêutica de adultos enlutados. O critério de indicação, basicamente, é o grau de autonomia do conflito atual em relação ao conflito primário, de forma que não é específico para casos de luto. Ademais, embora se considere que os fenômenos transferenciais e contratransferenciais podem assumir características peculiares, não é recomendado um manejo técnico diferenciado, quer seja na psicanálise clássica ou nas psicoterapias de orientação psicanalítica, obviamente resguardando-se os objetivos táticos que são próprios de cada uma delas e determinarão a predominância de intervenções expressivas e integrativas ou suportivas e explicativas.

Diante do exposto, julgamos que o presente estudo atingiu seu objetivo, na medida em que contemplou questões do manejo técnico da clínica psicanalítica individual com adultos enlutados. Contudo, o presente estudo, por se tratar de uma revisão narrativa, possui um alcance determinado pela escassez de publicações nacionais que abordam diretamente o tema, assim como pelo fato de a maioria delas possuir enfoque teórico ou clínico. Justamente por essa razão, consideramos necessário nos reportar pontualmente ao longo do texto também a publicações que tratam da clínica psicanalítica individual em um sentido mais amplo. Assim, recomendamos a realização de pesquisas empíricas voltadas à exploração das possibilidades e limitações tanto da psicanálise clássica quanto das psicoterapias de orientação psicanalítica na abordagem terapêutica de adultos em situação de luto.

Não obstante, entendemos que novos estudos clínicos igualmente são capazes de fornecer elementos para o preenchimento de lacunas ainda existentes na literatura especializada, inclusive porque pesquisas empíricas tipicamente não captam, em pormenores, certas nuances subjetivas da relação terapêutica que ainda não foram suficientemente exploradas no que tange aos casos de luto, como aquelas referentes à contratransferência, por exemplo. Ademais, o presente estudo possui um alcance limitado também pelo fato de privilegiar publicações nacionais. Cotejá-las com a literatura internacional foge ao escopo estabelecido, mas poderia resultar em estudos futuros, com objetivos distintos. Logo, novos estudos de revisão também podem se revelar profícuos para o avanço do conhecimento atualmente disponível sobre o assunto.

Nos parece relevante ainda reforçar que, para Freud (1917/1996), o luto não deve ser considerado uma condição patológica em si, de forma que não demanda, a priori, qualquer abordagem terapêutica. Julgamos que tal proposição se mantém válida, apesar de que, ou talvez principalmente porque, como já mencionamos, atualmente pressões sociais tendem a inibir a expressão do luto. Como consequência, consubstanciamos a opinião de Eizirik et al. (1998), segundo a qual tanto a psicanálise clássica quanto as psicoterapias de orientação psicanalítica podem se revelar proveitosas especificamente nos casos de luto patológico, ou, como preferem outros autores, luto complicado. E cumpre assinalar que, nos casos de luto normal, também podem ocorrer dificuldades adaptativas, como igualmente já mencionamos. Entretanto, entendemos que o suporte social – ou eventualmente modalidades assistenciais que não se afiguram como abordagens terapêuticas propriamente ditas, como o aconselhamento psicológico, por exemplo – tende a ser mais apropriado para o enfrentamento dessas dificuldades. Mas é importante frisar que, com base na literatura consultada para os fins do presente estudo, pudemos constatar que tal questão permanece em aberto.

À guisa de conclusão, consideramos necessário salientar que, de acordo com Bromberg (2000), um dos objetivos da abordagem terapêutica de enlutados – possivelmente o principal objetivo, poderíamos acrescentar – é favorecer o desenvolvimento do trabalho de luto, de modo a auxiliar o paciente a remanejar para um novo objeto os investimentos libidinais antes direcionados ao objeto perdido, ou seja, descatexizar o objeto perdido e recatexizar um novo objeto. E a referida autora não alude a uma abordagem terapêutica em particular. Parece-nos razoável concluir, portanto, que as proposições freudianas sobre o luto não se desdobram em implicações importantes apenas para a clínica psicanalítica individual. Logo, o profissional que se dedica à abordagem terapêutica de enlutados, ainda que adote outro referencial teórico, pode encontrar nos aportes teóricos psicanalíticos subsídios relevantes para seu trabalho.

 

REFERÊNCIAS

Ariès, P. (1981). A história da morte no Ocidente (L. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

Batistelli, F. M. V. (2010). Caminhos na elaboração de um luto. Jornal de Psicanálise, 43(79), 155-162.         [ Links ]

Bromberg, M. H. P. F. (2000). A psicoterapia em situações de perda e luto. Campinas, SP: Livro Pleno.         [ Links ]

Eizirik, C. L., & Hauck, S. (2009). Psicanálise e psicoterapia de orientação analítica. In A. V. Cordioli (Org.), Psicoterapias: Abordagens atuais (3ª ed., pp. 151-166). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Eizirik, C. L., Liberman, Z., & Costa, F. (1998). A relação terapêutica: Transferência, contratransferência e aliança terapêutica. In A. V. Cordioli (Org.), Psicoterapias: Abordagens atuais (2ª ed., pp. 67-75). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Eizirik, C. L., Lewkowicz, S. (2005). Contratransferência. In C. L Eizirik, R. W. Aguiar, & S. Schestatsky (Orgs.), Psicoterapia de orientação analítica: Fundamentos teóricos e clínicos (2ª ed., pp. 300-309). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Eizirik, C. L., Michels, A. M. M. P., & Gazal, C. H. (1998). Psicoterapia do luto normal e patológico. In A. V. Cordioli (Org.), Psicoterapias: Abordagens atuais (2ª ed., pp. 293-299). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Freitas, N. K. (2000). Luto materno e psicoterapia breve. São Paulo: Summus.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Luto e melancolia (T. O. Britto, D. H. Britto, & C. M. Oiticica, Trads.). In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. 14, pp. 275-291). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1917).         [ Links ]

Gonzaga, L. Z. M., & Peres, R. S. (2012). Entre o rompimento concreto e a manutenção simbólica do vínculo: Particularidades do luto de cuidadores familiares de portadores de doenças crônico-degenerativas. Vínculo, 9(1), 10-17.         [ Links ]

Ireland, V. E. (2011). A dor do luto e seu acolhimento psicanalítico. Estudos de Psicanálise, 35, 151-165.         [ Links ]

Kovács, M. J. (2003). Educação para a morte: Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Lowenkron, T. (2006). Psicoterapia psicanalítica breve. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Machado, S. C. E. P. (2009). Psicoterapia psicodinâmica das depressões e do luto normal e patológico. In A. V. Cordioli, (Org.), Psicoterapias: Abordagens atuais (2ª ed., pp. 399-411). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Machado, S. C. E. P., & Vasconcellos, M. C. G. (1998). Psicanálise e psicoterapia de orientação analítica. In A. V. Cordioli, (Org.), Psicoterapias: Abordagens atuais (2ª ed., pp. 137-143). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Minayo, M. C. S. (2013). Cuidar do processo do morrer e do luto. Ciência & Saúde Coletiva, 18(9), 0-0.         [ Links ]

Parkes, C. M. (1998). Luto: Estudos sobre a perda na vida adulta (M. H. P. Franco, Trad.). São Paulo: Summus.         [ Links ]

Parkes, C. M. (2001). A historical overview of the scientific study of bereavement. In M. Stroebe, R. O. Hansson, W. Stroebe, & H. Schut (Orgs.), Handbook of bereavement research: Consequences, coping and care (pp. 25-45). Washington: American Psychological Association.         [ Links ]

Parkes, C. M. (2009). Amor e perda: As raízes do luto e suas complicações (M. H. P. Franco, Trad.). São Paulo: Summus.         [ Links ]

Pinheiro, M. T. S., Quintella, R. R., & Verztman, J. S. (2010). Distinção teórico-clínica entre depressão, luto e melancolia. Psicologia Clínica, 22(2), 147-168.         [ Links ]

Rother, E. T. (2007). Revisão sistemática x revisão narrativa. Acta Paulista de Enfermagem, 20(2), v-vi.         [ Links ]

Rudge, A. M. (2008). Que atos são esses? Luto e acting out. Psychê, 12(22), 67-78.         [ Links ]

Schestatsky, S. S., Eizirik, C. L., Aguiar, R. W., Pires, A. C. J., Zaslavsky, J., Calich, J. et al. (2005). Introdução. In C. L. Eizirik, R. W. Aguiar, & S. S. Schestatsky (Orgs.), Psicoterapia de orientação analítica: Fundamentos teóricos e clínicos (2ª ed., pp. 13-19). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Tyson, R., & Eizirik, C. L. (2005). Transferência. In C. L. Eizirik, R. W. Aguiar, S. S. Schestatsky (Orgs.), Psicoterapia de orientação analítica: Fundamentos teóricos e clínicos (2ª ed., pp. 287-299). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Yoshida, E. M. P., & Enéas, M. L. E. (Orgs.) (2013). Psicoterapias psicodinâmicas breves: Propostas atuais. (3ª ed.). Campinas, SP: Alínea.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rodrigo Sanches Peres
E-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br

Recebido: 20/11/2013
1ª reformulação: 02/12/2013
Aceite final: 15/12/2013

 

 

1 Renata Cristina Ribeiro Gibran é psicóloga e aluna do curso de especialização em Psicoterapias de Orientação Psicanalítica da Universidade Federal de São Carlos.
2 Rodrigo Sanches Peres é doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo e professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.