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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.14 no.2 Ribeirão Preto  2013

 

ARTIGOS

 

Práticas em um CAPS de Minas Gerais: o relato de uma experiência

 

Practices in a caps of Minas Gerais: a report on an experience

 

Practicas en un caps de Minas Gerais: la historia de una experiencia

 

 

Yasmin Livia Queiroz1,I; Cintia Bragheto Ferreira2,II; Alerrandra Manuela Ferreira Silva3,III.

IUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil
II
Universidade Federal de Goiás, Jataí-GO, Brasil
III
Faculdade Pitágoras, Uberlândia-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são unidades de atendimento em saúde mental que oferecem aos usuários cuidados intensivos, elaborados por uma equipe multidisciplinar. Contudo, será que os CAPS têm conseguido prestar assistência de acordo com os princípios da Reforma Psiquiátrica? Esta pergunta motivou este estudo, realizado em um CAPS de Minas Gerais. Foram realizadas três visitas, registradas por meio de observações, entrevistas semiestruturadas e diários de campo. A análise dos registros mostrou entraves sociais, políticos e relacionais que distanciam as práticas institucionais do que é preconizado pela Reforma, apontando que sua efetiva implantação é multifatorial. A partir disso, sugerem-se espaços de discussão com o intuito de construção de práticas de cuidado inovadoras e alinhadas à Reforma.

Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, serviços de saúde mental, trabalhadores


ABSTRACT

The Psychosocial Care Centres (CAPS) are mental health care units that offer its users intensive care provided by a multidisciplinary team. However, are these units able to provide assistance in accordance with the principles establish by the Psychiatric Reform? This question that motivated the realization of study, realized in a CAPS of Minas Gerais. Three visits were made and registered through observation, semi-structured interviews and field logs. Social, political and relational barriers were perceived among institutional practices, contrary to the underlying principles of the Reform. Hence, an effective implementation is multifactorial issue. Thus, discussion rooms are suggested, in order to develop innovative care practices supporting the aims of the Psychiatric Reform.

Keywords: Psychiatric reform, mental health services, workers


RESUMEN

Los Centros de Atención Psicosocial (CAPS) son unidades de atención de salud mental que ofrecen a los usuarios cuidados intensivos, desarrollado por un equipo multidisciplinario. Sin embargo, ¿será qué los CAPS han conseguido la ayuda de acuerdo con los principios de la Reforma Psiquiátrica? Esta pregunta motivó la realización de este estudio, realizado en un CAPS de Minas Gerais. Fueron realizadas tres visitas, registradas por medio de observaciones, entrevistas semi-estructuradas y diarios de campo. El análisis de los registros muestra entrabes sociales, políticos y relaciones que distancian las prácticas institucionales el que es preconizado por la Reforma, apuntando que su efectiva implantación es multifatorial. A partir de eso, se sugieren espacios de discusión con el objectivo de construir practicas innovadoras de cuidado y aliñadas a la Reforma.

Palabras clave: Reforma psiquiátrica, servicios de salud mental, trabajadores


 

 

A partir da década de 1980, as principais instâncias formuladoras de Políticas Públicas Nacionais e Internacionais começaram a apontar a urgente e necessária reformulação da Política Pública de Saúde Mental, reorientando seu modelo assistencial ainda centrado na figura do hospital psiquiátrico para uma rede de atenção psicossocial extra-hospitalar de base comunitária (OMS; OPS & IMN, 1990).

De acordo com o Ministério da Saúde (2004), o Brasil apresentava uma forma completamente desumanizada de lidar com a saúde mental, cujas práticas dos hospitais psiquiátricos eram baseadas predominantemente em inúmeras formas de violência, na mercantilização da loucura, na hegemonia de uma rede privada de assistência e, como relata Goffman (2001), com um caráter de reclusão, mortificação do eu, sempre com o objetivo de controle social.

Santos, Oliveira e Yamamoto (2009) esclarecem que denúncias sobre as condições de tratamento oferecido aos internos nos hospitais impulsionaram as primeiras propostas de ambulatorização da assistência psiquiátrica. De acordo com Ribeiro (2007), na sociedade moderna o tratamento para a doença mental primava pelo enclausuramento das pessoas. Neste cenário, a Reforma Psiquiátrica começa a apresentar formas substitutivas a essas práticas por meio de críticas ao modelo assistencial até então predominante. Assim, algumas mudanças começam a surgir, transformando o campo da saúde mental em algo diferente do modelo manicomial.

Dessa maneira, e devido à necessidade que se fazia presente, a Reforma Psiquiátrica teve início no Brasil, em São Paulo, a partir de 1987, por meio das instituições CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e o NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial) na cidade de Santos. Essas experiências foram consideradas satisfatórias. Assim, por meio de uma equipe composta por psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, terapeutas ocupacionais, entre outros, esse serviços estavam oferecendo diversas atividades terapêuticas e contribuindo para diminuir e evitar internações psiquiátricas, favorecendo, assim, a reinserção das pessoas com sofrimento psíquico no espaço social. A partir de então, o Ministério da Saúde deu seguimento à política de saúde mental com a lei 10.216, disseminando os CAPS em nível nacional (Brasil, 2004).

De acordo com dados do Ministério da Saúde (Brasil, 2004), os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são unidades de atendimento em saúde mental que oferecem aos usuários um programa de cuidados intensivos, como psicoterapia individual ou grupal, oficinas terapêuticas, acompanhamento psiquiátrico, visitas domiciliares, atividades de orientação e inclusão das famílias e atividades comunitárias elaboradas por uma equipe multidisciplinar. Inicialmente concebidos como alternativas terapêuticas ao modelo de atendimento centrado no hospital psiquiátrico, os CAPS passaram a ter, desde 2002, a função estratégica de articular as forças de atenção em saúde e as da comunidade, visando à promoção da vida comunitária e à autonomia de seus usuários. De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2005)

Um CAPS (...) é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele é um lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida (...), realizando acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários (p. 13).

Além dos serviços terapêuticos, os CAPS devem proporcionar prevenção de nova incidência dos usuários, buscando sua integração no seu meio de convivência (Brasil, 2004). Atualmente, esses serviços substitutivos continuam em implantação, existindo, porém, uma carência elevada de profissionais qualificados para atuar nessa área (Brasil, 2005).

Segundo Ballarin, Ferigato, Carvalho e Miranda (2011), mesmo tendo ocorrido um grande avanço na atenção à saúde mental, a assistência integral e mais humanizada ainda é uma prática a ser atingida, pois ainda é possível perceber no cotidiano dos serviços atuações fragmentadas e desarticuladas, devido principalmente a existência de duas lógicas que se contrapõem, sendo que uma é mais voltada ao modelo médico, com práticas centradas na pessoa, e a outra lógica visa a um cuidado integral em rede.

Sendo assim, será que os CAPS têm conseguido verdadeiramente cumprir todas essas ações? Ou seja, ele tem conseguido realizar um trabalho multidisciplinar visando a uma assistência integral do usuário, promovendo qualidade de vida e reinserção social? O trabalho desenvolvido no CAPS é capaz de ativar um cuidado ético, responsável, centrado nos interesses do usuário? Questionamentos como esses motivaram a realização deste trabalho.

Dessa maneira, o estudo em questão teve por objetivo analisar se o trabalho realizado por profissionais de um CAPS do interior de Minas Gerais está de acordo com o que é preconizado pela Reforma Psiquiátrica brasileira, ou seja, se o CAPS em questão está promovendo a reabilitação psicossocial dos usuários, de forma a ser uma alternativa ao hospital psiquiátrico. É com esse desejo de reflexão que buscamos entrelaçar a prática com a teoria, almejando assim, articular um saber que possa alcançar cada profissional envolvido com a saúde mental.

 

MÉTODO

Tipos de estudo

O estudo realizado foi do tipo qualitativo-descritivo, o qual utilizou observações participantes, entrevistas semiestruturadas e diários de campo como instrumentos de coleta de dados. A abordagem qualitativa, ao se fundamentar na descrição dos fenômenos estudados, possibilita que os mesmos sejam compreendidos em maior profundidade (Bogdan & Biklen, 1994). A observação participante é considerada essencial para o trabalho de campo na abordagem qualitativa, visto que permite o conhecimento face a face dos participantes (Minayo, 1999), tendo o diário de campo como seu complemento, possibilitando que as análises finais possam ser enriquecidas com informações que passariam despercebidas pelo pesquisador (Triviños, 1987).

Participantes

Os participantes do estudo foram os profissionais que passam a maior parte do tempo com os usuários do CAPS estudado, a saber: uma psicóloga, uma técnica de enfermagem e uma técnica de nível médio, que conduzem as oficinas terapêuticas, totalizando três participantes.

Procedimento

Foram realizadas três visitas ao CAPS, localizado no interior de Minas Gerais, com aproximadamente duas horas de duração cada. Nessas visitas foram observadas as seguintes atividades: primeira visita – oficina de atividades físicas e roda de conversa; segunda visita – roda de conversa e oficina de trabalhos manuais, e terceira visita – roda de conversa e oficina de fuxico.

As observações e entrevistas foram realizadas após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e versaram sobre perguntas dispostas em dois momentos. No primeiro deles foram coletados os dados sociodemográficos dos participantes e, em um segundo momento, foram feitas perguntas sobre: o conhecimento do profissional em relação à Reforma Psiquiátrica; as características do trabalho desenvolvido no CAPS; a relação do CAPS com as famílias dos usuários e com a sociedade e, finalmente, se para o profissional entrevistado, o CAPS atuava de acordo com as premissas da Reforma Psiquiátrica.

As entrevistas foram realizadas após as observações, nas dependências do CAPS, gravadas, transcritas na íntegra e organizadas em dimensões de acordo com o roteiro de entrevista, construído com o intuito de analisar se as práticas no CAPS estudado se alinham às propostas da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Considerações Éticas

O presente estudo foi submetido a um Comitê de Ética em Pesquisa e obteve parecer favorável (Protocolo n. 164/12). Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética e autorização da coordenadora do CAPS, foi realizado o convite aos profissionais da instituição, explicando o estudo e os objetivos da investigação.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Caracterização do local investigado

O CAPS estudado funciona como serviço de atenção diária e atende adultos gravemente comprometidos psiquicamente, sendo sua clientela composta principalmente de quadros psicóticos. Desde janeiro de 2010, o CAPS passou a operar como CAPS III, oferecendo hospitalidade noturna aos usuários em crise que necessitam de cuidado contínuo, disponibilizando atualmente seis leitos, sendo três femininos e três masculinos. Dessa forma, em sua dinâmica de atendimento, o CAPS funciona 24 horas/dia e sete dias por semana.

Como preconiza a atual política de saúde mental da cidade, a área de abrangência deste CAPS são os setores Sul e Oeste e, com isso, o CAPS atende uma população adstrita de 349.980 pessoas. Atualmente, o CAPS atende 250 usuários, sendo que estes são distribuídos em cuidados intensivo-integral (todos os dias, período matutino e vespertino), semi-intensivo (três dias da semana por um período) e não intensivo (um ou dois dias por semana em apenas um período).

A equipe de profissionais é composta por: quatro psiquiatras, 15 psicólogos, cinco enfermeiras, 16 técnicos de enfermagem, dois farmacêuticos, uma técnica de farmácia, dois assistentes sociais, sete auxiliares de serviços gerais, quatro auxiliares administrativos, quatro vigilantes patrimoniais e um coordenador. O presente estudo foi realizado com três profissionais do CAPS, a saber: profissional A, 46 anos, solteira e técnica em enfermagem; profissional B, 35 anos, casada, psicóloga com especialização em saúde mental, e profissional C, 22 anos, casada e ensino médio completo.

Inicialmente foi observada uma oficina de atividades físicas, que acontece pela manhã. Após os usuários fazerem uma leve refeição, foram acompanhados pelos profissionais durante uma caminhada pelas ruas do bairro. Ao retornarem da caminhada iniciou-se outra oficina, denominada roda de conversa.

Na roda de conversa, uma psicóloga atuou como mediadora e convidou um dos usuários a iniciar sua fala levantando algum tema de sua escolha, e assim, pouco a pouco todos os usuários participaram da roda de conversa. Não há tempo fixo para a realização da oficina, sua duração é determinada pela demanda dos usuários.

Na segunda visita ao CAPS foi observada uma oficina de trabalhos manuais (confecção de bijuterias). Nessa oficina, a adesão foi apenas de mulheres. Neste dia, os profissionais discutiam com os usuários quais peças por eles confeccionadas seriam escolhidas para uma exposição a ser realizada em uma faculdade da cidade. Essa exposição objetivava a ressocialização dos usuários assim como a venda dos materias confeccionados no CAPS.

Na terceira visita, foi observada novamente uma roda de conversa que posteriormente deu início a outra oficina de trabalhos manuais (oficina de fuxico). Nessa oficina os usuários produzem colchas, chaveiros, capas de almofadas, entre outras peças feitas de fuxicos. De acordo com a profissional que conduz a oficina, o objetivo principal é fazer com que os participantes produzam algo, permitindo, assim, que eles percebam que são capazes de realizar tarefas. A adesão na oficina também não foi integral e muitos usuários ficaram conversando entre si, fumando ou apenas olhando de longe a realização da oficina.

Como afirmam Rauter (2000), Ribeiro (2004) e o Ministério da Saúde (2004), citados por Cedraz e Dimenstein (2005), muitos autores têm apontado que as oficinas são ferramentas que possibilitam o exercício de outros modos de expressão, ou seja, são dispositivos importantes no processo da Reforma Psiquiátrica. Porém, é importante refletir se essas oficinas diárias não estão perdendo seu potencial transfomador e reduzindo-se a meros dispositivos de ocupação de tempo, como apenas mais uma terefa a ser cumprida pelos profissionais e usuários.

Nesse sentido, como pontuam Cedraz e Dimenstein (2005), as oficinas devem funcionar como dispositivos de mudança social, e não somente momentos de experiências prazerosas para os usuários. Devem buscar materializar o ideário da desinstitucionalização, levando sua atuação além do espaço físico restrito do CAPS, alcançando subjetividades, quebrando as barreiras dos preconceitos instituidos e possibilitando a criação.

A primeira questão de interesse da pesquisa visava a responder se os profissionais tinham conhecimento sobre a Reforma Psiquiátrica. A partir das respostas foi possível perceber que para as participantes, as premissas da Reforma caracterizam-se por algum tipo de tratamento, reinserção dos usuários na sociedade, fazendo sua reintegração na família e na comunidade.

Profissional B: "É um processo de desinstitucionalização que trabalha com a possibilidade do paciente ser reinserido socialmente, o paciente com transtorno mental".

Profissional A: "A Reforma Psiquiátrica é a inserção, é a colocação do usuário de volta ao meio da sociedade, ou família, dá condição de trabalho, uma condição de viver normal, como qualquer outra pessoa".

Profissional C: "Eu entendo que visa muito os pacientes que são psiquiátricos e que desenvolvem essa doença, que vai em busca e que faz um tratamento com o paciente".

No que se refere às características do trabalho desenvolvido no CAPS, foi possível perceber, por meio das observações realizadas, que as principais práticas de tratamento utilizadas com os usuários são as oficinas terapêuticas (oficinas de trabalhos manuais como crochê, bordado ou sessão de filmes, rodas de conversa sobre um tema específico e caminhadas fora do CAPS), desenvolvidas nos períodos da manhã e da tarde. Segundo as profissionais, são oferecidos também os serviços de atendimento psicológico individual e em grupo, consulta de enfermagem e consulta com o médico psiquiatra (a cada 15 dias).

Outra prática realizada no CAPS é o Acompanhamento Terapêutico (AT), cujo foco é fazer com que usuários que não são capazes de circular sozinhos na sociedade consigam alguma autonomia (ir ao banco, ao cinema, ao mercado, por exemplo). Porém, como a instituição conta com apenas dois profissionais para o desenvolvimento desse trabalho, essa atividade acaba sendo eventual, o que parece impossibilitar o CAPS de ofertar regularmente mais práticas de cuidado capazes de promover a autonomia de seus usuários, que é uma das funções dos CAPS (Brasil, 2004).

Sobre a atuação dos profissionais de forma interdisciplinar, as entrevistadas pontuaram que a instituição tem tentado desenvolver um trabalho que envolva a comunicação entre todos os profissionais e as tentativas de convivência entre os enfoques diferentes de visão de ser humano no cuidado em saúde mental.

Profissional A: "(...) trocam ideias, um sempre pede ajuda, se um caso tá complicado, um ajuda o outro, entra em contato com a família. A assistente social tá sempre colaborando com a psicologia, com o médico, com o setor de farmácia, sempre tentando o melhor para o paciente".

Profissional B: "Eu acho que a equipe do CAPS tem tentado, eu acho que trabalhar de forma interdisciplinar é muito difícil. Porque cada profissional, seja o assistente social, psicólogo, enfermeiro, médico, vê o paciente de um ângulo. Então, é, a gente tem profissional que pela própria formação, vê mais a questão do corpo, do físico, do clínico, no sentido da medicação, do efeito da medicação. O outro profissional vê mais a questão social e a gente vai tentando trabalhar juntos. Mas eu creio que esse é o grande lance aqui do CAPS, a dificuldade que a gente tem, porque cada uma vê de um jeito, pra gente conseguir fazer um todo, da forma diferente de se ver o paciente. Eu acho que a gente tem tentado, acho que o CAPS tem caminhado nesse sentido".

Profissional C: "(...) a gente procura os psicólogos, discute o caso. O médico conversa também, pra vê como tá o paciente com a gente, com os psicólogos. Aí é onde que decide mesmo o que vai fazer, às vezes uma hospitalidade, às vezes uma alta, às vezes uma dosagem de medicação, assim vai, e cada paciente toma uma conduta diferente".

Sobre a relação do CAPS com os familiares, uma das profissionais a mencionou como uma prática que não tem proporcionado os resultados esperados.

Profissional B: "(...) tem grupo de família, mas a gente percebe uma adesão baixíssima, a gente oferece dois horários, tem um grupo de família de manhã e um grupo de família à noite (...) mas a gente percebe que a família não adere. Aqui no CAPS tem mais de 300 pacientes, vêm dois, três familiares numa reunião de família. Aí então, a gente percebe que isso não funciona tanto quanto a gente gostaria".

Assim, é possível perceber que a integração da família dos usuários é ainda algo difícil de ser alcançado, especialmente pela falta de envolvimento dos familiares, como continua relatando a profissional.

Profissional B: "(...) a própria família muitas vezes não quer assumir esse paciente. É muito mais fácil pra eles internarem, deixarem, tem família que chega aqui e pergunta: "num tem um lugar que ele possa passar alguns meses?". Aí então a gente tenta trabalhar com a família, mas eu penso que esse é um dos maiores entraves, o de trabalhar essa questão da desinstitucionalização, da reinserção, porque a família muitas vezes não quer".

De acordo com o relato da Profissional B, os familiares parecem ainda conceber o tratamento de seus familiares com transtornos mentais como ocorria antes da Reforma Psiquiátrica, ou seja, entendendo o enclausuramento como modalidade de tratamento (Ribeiro, 2007), assim como as mudanças na política da saúde mental e seus novos programas preconizam. Porém, como destaca Tsu (1993), é notável que os familiares ainda não conseguem aceitar o fechamento das instituições psiquiátricas e também não recebem com tranquilidade essa nova função, visto que a família não se encontra em condições de cuidar do paciente, seja por questões financeiras e/ou emocionais.

Diante dessas questões, Gonçalves e Sena (2001) afirmam que não é mais possível reduzir a Reforma Psiquiátrica e a inclusão social ao fechamento dos hospitais e à devolução dos doentes às famílias, como se estas fossem, indistintamente, capazes de resolver a problemática da vida cotidiana, sem levar em conta as dificuldades geradas pela convivência, pela manutenção e pelo cuidado do familiar com transtorno mental.

Sobre a reinserção dos usuários no convívio social, as entrevistadas apontam que o CAPS tem tentado realizar essa reinserção no convívio social por meio de práticas como o AT, ou iniciativa dos profissionais em levar os usuários que já estejam mais preparados para atividades fora do CAPS (cursos, atividades físicas, entrevistas de emprego, dentre outras), porém, segundo elas há ainda uma grande barreira a ser vencida, que é a falta de conhecimento e preparação da sociedade para receber esses sujeitos:

Profissional A: "O CAPS tenta, tenta, o que a gente às vezes não consegue, é por falta de informação lá fora. Porque nem todo mundo conhece a Reforma Psiquiátrica. Então até onde dá pra ir, se tenta bastante, e muitas vezes consegue. Às vezes não consegue mais por barrar a gente, por dificuldade lá de fora, de entender o que a gente está tentando fazer".

Profissional B: "(...) o paciente pode, ele tem direito de circular, ele tem direito, os mesmos direito de todo cidadão. Aí a gente percebe que isso não é fácil. Que a sociedade ainda não vê assim. Aí a gente fica com medo, então vamos tutelar o paciente, vamos deixar ele aqui dentro, que é uma forma de institucionalizar também né, se a gente for pensar. Se o paciente vem aqui e fica aqui o dia inteiro, só vem aqui e não faz mais nada. Ele tá institucionalizado, aí eu acho que esbarra nisso, porque às vezes, porque a gente fica preocupada com o paciente (...)".

Segundo Barros (2003), a inclusão social dos usuários deve considerar tanto os aspectos subjetivos dos usuários quanto o universo social e cultural no qual se encontram. Nesse sentido, pretender a transformação das instituições sem considerar as portas de sustentação que a própria sociedade lhe oferece é recair na ilusão de que seria possível, pela técnica, modificar a realidade.

Para Maciel, Barros, Silva e Camino (2009), ao fazer o desmonte dos hospitais psiquiátricos, o Brasil não se preocupou em criar estratégias de preparação da sociedade e da família para a inclusão social e familiar dos indivíduos com transtornos mentais. Para os autores, a centralização do CAPS como eixo da Reforma causou o esquecimento de outros serviços comunitários de acolhida de pessoas com transtornos mentais, como o resgate da cultura e da medicina popular e de colocar não só a família, mas toda sociedade, como parte integrante do tratamento.

As barreiras sociais também são apontadas como entraves, pelas participantes, para a atuação do CAPS de acordo com as premissas da Reforma Psiquiátrica, além de questões políticas.

Profissional B: "Eu acho que sim. Que a gente tenta seguir os preceitos da Reforma Psiquiátrica. Eu acho que às vezes a gente escorrega, na necessidade de internar o paciente, de institucionalizar. Porque é, eu penso que a Reforma Psiquiátrica ela tá restrita aos profissionais de saúde mental. A gente é militante da Reforma Psiquiátrica, mas o resto do serviço, muitas vezes de saúde, ou serviço de assistência social, o serviço que tem, ou da própria sociedade, num pensa do mesmo jeito que a gente. Então assim, (...) a gente fica com medo do que vai acontecer com ele lá fora. Muitas vezes a gente fica tutelando o paciente. Então eu acho que talvez, em alguns momento a gente não consiga cumprir todos os preceitos da Reforma".

Profissional A: "Nós tentamos fazer a coisa certa, seguir a Reforma, mas a sociedade nos barra muito. O meio político, o pessoal na prefeitura e na secretaria não conhece a realidade de um CAPS, não sabe nem o que acontece aqui dentro e acaba barrando o andamento do CAPS e barrando coisas que poderiam ir para frente".

Dessa maneira, no CAPS estudado, a inserção dos usuários na sociedade e o desenvolvimento da autonomia deles, parecem não ocorrer apenas devido à escassez de profissionais para realizarem essa inserção, como citado nas atividades de AT, mas também por dificuldades enfrentadas pelos profissionais ao realizarem esse trabalho, como a exclusão e o medo que a loucura desperta, reativando mais uma vez a necessidade do enclausuramento (Ribeiro, 2007).

Como pontua Oliveira (2000), criar novos serviços de cuidado da saúde mental não significa a transformação da lógica manicomial e da forma de compreender e praticar a psiquiatria. Assim, é preciso cuidado para não correr o risco de se desenvolver práticas antigas com uma nova roupagem, seja por falta de conhecimento por parte dos profissionais, seja pela filosofia de serviço.

Nesse sentido, Costa-Rosa (2000) destaca que para a efetividade da mudança é necessário não somente variações nos dispositivos institucionais, mas, além disso, que eles superem qualitativa e quantitativamente os recursos asilares e se estruturem a partir de uma lógica oposta à do hospital psiquiátrico, ou seja, que siga a lógica da desospitalização e da inclusão sócio-familiar.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise das práticas de trabalho do CAPS estudado mostrou que há nos participantes o desejo de que a Reforma Psiquiátrica seja praticada em toda sua potência na instituição onde atuam, expressado em tentativas de abertura ao diálogo entre as diversas categorias profissionais que compõem a equipe. Contudo, entraves sociais, políticos e relacionais aparecem como obstáculos, assim como a falta de pessoal e o despreparo das famílias e de todo o contexto social para lidar com a loucura como algo natural da convivência em sociedade. Sendo assim, todos esses obstáculos acabam reativando práticas de cuidado dissonantes da desospitalização, autonomia e inclusão sócio-familiar.

O presente estudo apresenta a limitação de não ter tido como participante nenhum usuário do serviço e/ou familiar, assim como a participação de nenhum operador da política pública de saúde mental do município onde o CAPS estudado está situado, o que poderia ampliar mais as possibilidades de compreensão do fenômeno investigado, abrindo dessa maneira a possibilidade de outros estudos. Porém, traz sua contribuição ao avaliar as práticas de um serviço por meio de um estudo qualitativo, o que amplia as possibilidades de voz dos participantes, bem como suas necessidades.

A partir disso, sugere-se a construção de espaços de reflexão que possam ocorrer em reuniões entre todos os atores envolvidos na efetiva implantação dos princípios da Reforma Psiquiátrica, visando ao desenvolvimento de práticas de cuidado em saúde mental inovadoras, mesmo em meio aos entraves apontados.

 

REFERÊNCIAS

Ballarin, M. L. G. S., Ferigato, S. H., Carvalho, F. B., & Miranda, I. M. S. (2011). Percepção de profissionais de um CAPS sobre as práticas de acolhimento no serviço. O mundo da Saúde, 35(2), 162-168.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Yasmin Livia Queiroz
E-mail: yasminqueiroz88@hotmail.com

Submissão: 16/03/2012
1ª reformulação: 18/05/2012
2ª reformulação: 30/05/2013
Aceite final: 30/08/2013

 

 

1 Yasmin Livia Queiroz é psicóloga e mestranda em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2 Cintia Bragheto Ferreira é Doutora em Enfermagem em Saúde Pública pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e Professora Adjunta do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí.
3 Alerrandra Manuela Ferreira Silva é graduanda do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras, Uberlândia.