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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.15 no.1 Ribeirão Preto  2014

 

ARTIGOS

 

Psicologia e adolescentes em conflito com a lei: reflexões a partir do estágio

 

Psychology and adolescents in conflict with the law: reflections from the internship

 

Psicología y adolescentes en conflicto con la ley: reflexiones a partir de las prácticas

 

 

Lucas Rossato1; Tatiana Machiavelli Carmo Souza2

Universidade Federal de Goiás, Jataí-GO, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A prática de ato infracional pode levar o adolescente ao cumprimento de medidas socioeducativas. O desenvolvimento de ações assertivas junto a essa população tem-se mostrado em grande desafio. Este trabalho apresenta relato de experiência de Estágio Básico em Psicologia Social junto ao Programa de Liberdade Assistida, realizado no Centro de Referência Especializado em Assistência Social, em município do sudoeste goiano. Foi oferecida aos adolescentes a possibilidade de cumprir parte das medidas socioeducativas através da participação em grupos abertos organizados por estagiários de psicologia, cuja participação deu-se em caráter voluntário. O grupo tinha como finalidade problematizar questões afetivas e sociais vivenciadas na adolescência. No decorrer de 12 encontros, entre novembro de 2012 e março de 2013, participaram 15 adolescentes. Os temas abordados eram sugeridos pelos participantes e versaram sobre família, reinserção social, identidade, preconceito e drogas. A experiência, além de contribuir com o processo de formação profissional dos estagiários, mostrou-se como contexto rico para a ressignificação dos atos praticados pelos adolescentes, bem como contribuiu para a construção de novos projetos de vida.

Palavraschave: adolescente em conflito com a lei, medidas socioeducativas, liberdade assistida, Psicologia Social, grupos


ABSTRACT

The practice of unlawful activities may lead the teenager to be under correctional measures. The development of assertive actions within this population has proven itself as a challenge. This paper presents an internship experience report carried out in the Supervised Freedom Program, at the Specialised Social Assistance Reference Centre, in a county in the southwest of Goiás. Teenage students were offered the opportunity to voluntarily participate in open groups organized by Psychology interns, as a way of facing part of disciplinary measures with a socio-educative nature. The group, formed by 15 students, aimed at discussing emotional and social issues experienced in adolescence during 12 meetings between November 2012 and March 2013. The topics covered were suggested by the participants and included issues about family, social reintegration, identity, prejudice and drugs. The experience, in addition to contributing to the process of professional training of the interns, has provided a rich context that established new meanings for acts performed by the adolescents, as well as collaborated to the development of new life projects.

Keywords: adolescents in conflict with the law, corrective measures, supervised freedom, Social Psychology, groups


RESUMEN

La práctica de la infracción puede llevar a los adolescentes a cumplir con las medidas educativas. El desarrollo de acciones asertivas con esta población ha demostrado ser un gran desafío. En este trabajo se presenta un relato de experiencia de prácticas junto al Programa de Libertad Asistida en el Centro de Referencia Especializada en Asistencia Social en un municipio del sudoeste goiano. Se ofreció a los adolescentes la posibilidad de cumplir con parte de las medidas socioeducativas por medio de su participación en grupos abiertos organizados por estudiantes de psicología, cuya participación era en carácter voluntario. El grupo tuvo como objetivo discutir los problemas emocionales y sociales con experiencia en la adolescencia. En el curso de 12 reuniones entre noviembre de 2012 y marzo de 2013, los participantes fueron 15 adolescentes. Los temas fueron sugeridos por los participantes y trataron sobre familia, reintegración social, identidad, prejuicios y drogas. La experiencia ayudó a contribuir en el proceso de formación profesional de los estudiantes de psicología, y además se mostró como un contexto rico para la reinterpretación de los delitos cometidos por los adolescentes, además permitió la construcción de nuevos proyectos de vida.

Palabras clave: adolescentes en conflicto con la ley, las medidas socioeducativas, libertad asistida, Psicología Social, grupos


 

 

A atuação dos profissionais de Psicologia na assistência social tem aumentado gradativamente na última década, refletindo o esforço da categoria na articulação de questões referentes à realidade social brasileira (Macedo et al., 2011). Fato esse que se deu em virtude da consolidação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e da implantação do Sistema Único de Assistência Social (Suas) (Brasil, 2005). A inserção do psicólogo nesse campo necessita ser pautada numa perspectiva crítica, onde a relação entre o indivíduo e a sociedade seja compreendida a partir da dimensão histórica (Cruz & Guareschi, 2012). O contato do estudante de psicologia com esse enfoque é de suma importância, sendo o contexto de estágio supervisionado em instituições de assistência social lócus de excelência para aprendizagens teóricas, metodológicas e práticas.

Nessa direção, o estágio pode assegurar ao estagiário o contato com situações e instituições, permitindo que conhecimentos, habilidades e atitudes se concretizem em ações profissionais. Diehl, Maraschin e Tittoni (2006) apontam a importância da abertura do estudante para lidar com elementos da organização de serviços públicos e a implicação dos mesmos frente às problemáticas sociais.

Tendo em consideração os aspectos apresentados acima, este artigo busca refletir sobre a experiência do estágio realizado junto ao Programa de Liberdade Assistida (PLA), no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), em cidade do interior de Goiás, levando-se em consideração os aspectos políticos, sociais, institucionais e familiares que perpassam a dinâmica dos sujeitos e da instituição.

 

COMPREENSÕES SOBRE ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI

A intervenção judicial junto a crianças e adolescentes, no Brasil, data dos primórdios do processo de colonização dessa sociedade, sendo o modelo jurídico aqui adotado o mesmo de Portugal. Quando D. João VI desembarcou em terras brasileiras, em 1808, estava em vigência as Ordenações Filipinas, cuja imputabilidade penal iniciava-se aos sete anos, eximindo o menor de idade da pena de morte e concedendo-lhe redução da sentença. Entre dezessete e vinte e um anos havia o sistema de "jovem adulto", onde o sujeito poderia ser condenado à morte, no caso de cometer um crime (Rio Grande do Sul, 2013).

Posterior às Ordenações Filipinas (Rio Grande do Sul, 2013), houve vários documentos e legislações, entre os quais, o Primeiro Código de Menores com início em 1921, o Código de Menores "Mello Mattos" de 1927, o Código de Menores de 1979 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Essas legislações, alteradas com o passar dos anos, dispunham sobre as ações a serem adotadas pelo sistema judiciário sobre os atos cometidos por crianças e adolescentes no caso de violação de regras sociais.

Com a atual Constituição Federal (Brasil, 1988) e com o ECA (Brasil, 1990), as crianças e adolescentes passaram a ser integrantes da doutrina de proteção integral, sendo a idade de dezoito anos a vigente para imputabilidade. Desde então, os princípios fundamentais dessas legislações afirmam que estes sujeitos são prioridade absoluta, com direitos políticos, sociais e civis, sendo considerados pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Tais direitos devem ser garantidos pela família, pela sociedade e pelo Estado (Brasil, 1990).

As significativas transformações nos direitos das crianças e adolescentes, bem como as alterações na idade ponderada como limítrofe para que sejam considerados inimputáveis, ocorreram após expressivos avanços no entendimento acerca do desenvolvimento infanto-juvenil, do ponto de vista psíquico, social e físico. Nesta perspectiva, crianças e adolescentes deixaram de ser sujeitos invisíveis aos olhos da lei e, a partir do ECA, passaram a ser detentores de direitos na dinâmica societária (Silva, 2011; Priulli & Moraes, 2007).

O direito à vida, à saúde, a alimentação, à educação, ao esporte e lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade e respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária são garantias previstas no ECA. É certo que o descumprimento desses direitos, somado às relações sociais precárias e desiguais, fomentam o aumento de problemas sociais e jurídicos ligados à adolescência (Brasil, 1990; Castro & Guareschi, 2008).

São adolescentes em conflito com a lei os sujeitos que cometeram ato infracional, ou seja, conduta descrita como crime ou contravenção penal pela legislação brasileira, conforme o ECA (Brasil, 1990). A realização do ato infracional conduz o adolescente ao julgamento de sua ação pelo sistema judiciário, usualmente pelo Juiz da Infância e da Juventude. Dependendo da gravidade da conduta infringida, a medida socioeducativa adotada pode variar entre a advertência, a obrigação de reparar o dano causado, a liberdade assistida, a inserção em regime de semiliberdade, a internação em estabelecimento educacional ou, ainda, medidas de proteção como o encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; a orientação, apoio e acompanhamento temporários, a matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; a inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; a requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; e a inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos (Brasil, 1990). Na atualidade, as medidas são regulamentadas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).

O Sinase (Brasil, 2012a) trata-se do conjunto sistemático de princípios, regras e critérios que estão ligados ao cumprimento das medidas socioeducativas; inclui os sistemas estaduais, distritais e municipais, assim como os planos, as políticas e os programas característicos de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei.

A Liberdade Assistida (LA), enfoque deste relato de experiência, constitui-se por ser medida socioeducativa aplicável aos adolescentes autores de atos infracionais, cumprida em meio aberto, isto é, sem que o jovem tenha privação de sua liberdade. Configurando-se em medida judicialmente imposta e de cumprimento obrigatório, a LA visa promover ações de caráter educativo de modo que o adolescente não rescinda na realização do ato infracional (Brito, 2007; Martins, 2000).

Na realidade brasileira, o cumprimento das medidas deve estar para além da punição, apresentando caráter mediador e contribuindo para que os adolescentes em conflito com a lei se reorganizem perante a sociedade. A LA objetiva, especialmente, promover socialmente os jovens e suas famílias, orientando-os e inserindo-os, quando necessário, em programas de auxílio e assistência social, bem como empregando meios para profissionalizar o adolescente e inseri-lo no mercado de trabalho (Brasil, 1990).

Atendendo a princípios norteadores apontados pelo ECA, pelo Sinase e pelo Suas, inúmeros municípios desenvolvem atividades com jovens em LA através dos órgãos de assistência social, como no caso do CREAS. Essa instituição configura-se como unidade pública e estatal, que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos humanos, como no caso de violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas e, em especial, o cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, com o princípio de proporcionar ambiente de acolhida e escuta especializada (Brasil, 2011).

Enquanto instituição especializada em intervenções em situações de vulnerabilidade e risco social, o CREAS apresenta o potencial de promover o desenvolvimento dos sujeitos a partir do resgate da autoestima, da identificação e fortalecimento de potencialidades e capacidades, e da participação e inserção social (Brasil, 2008). Compreende-se que o CREAS, a partir das açõesda LA e por meio da equipe multiprofissional, tem o papel de desenvolver acolhimento aos adolescentes, que em diversas ocasiões estão à mercê de processos de exclusão social, buscando também promover recursos junto à família, à escola e à sociedade.

 

MÉTODO

O Estágio Básico em Psicologia Social efetivou-se a partir do convite do CREAS, endossado pelo Ministério Público da Comarca/Promotoria da Infância e Juventude, para consolidar parceria com a Universidade. Teve duração de cinco meses, entre o segundo semestre de 2012 e o primeiro de 2013, e como objetivo, o desenvolvimento de grupos com adolescentes em conflito com a lei, cuja finalidade era problematizar questões afetivas e sociais vivenciadas na adolescência, de modo que os participantes pudessem ressignificar suas experiências e se (re)organizarem frente às relações familiares, sociais e ao mundo do trabalho. O estágio foi supervisionado por professora do curso de Psicologia e acompanhado por psicóloga da instituição.

Conforme direcionamento das instituições parceiras, inicialmente realizou-se levantamento acerca da quantidade de adolescentes que estavam em descumprimento das medidas no município, constatando aproximadamente o número de 100 sujeitos. Foram efetivadas ligações telefônicas para os jovens e/ou familiares através dos contatos disponibilizados pelo CREAS, com o intuito de convidá-los a participar de reunião onde seriam expostos os objetivos dos grupos a serem desenvolvidos.

Em dia pré-agendado realizou-se o encontro onde estiveram presentes, além dos jovens em descumprimento do Programa de Liberdade Assistida (PLA), seus familiares e adolescentes que estavam em regime de internação domiciliar. Embora não fosse papel do CREAS atender os adolescentes que estavam cumprindo medida de internação, no período do estágio ocorreu o fechamento do centro de internação da cidade, de modo que tais jovens foram encaminhados para acolhimento na referida instituição de assistência social.

Explicou-se que a proposta de intervenção se efetivaria pela participação em grupos destinados aos adolescentes em conflito com a lei que estavam em descumprimento das medidas socioeducativas do Programa de Liberdade Assistida, bem como dos adolescentes que se encontravam em situação de internação domiciliar. No momento em que as atividades estavam sendo implementadas, o CREAS não oferecia a possibilidade desses jovens serem acolhidos em grupos e/ou oficinas conforme orientações e políticas previstas no ECA (Brasil, 1990). Outras ações, como a supervisão da frequência e aproveitamento escolar e a inserção em demais atividades pedagógicas, ficaram sob responsabilidade da equipe da instituição de assistência social. Dessa forma, parte do cumprimento da medida seria efetivada pela inserção em grupos semanais abertos, coordenados por 12 (doze) estagiários de Psicologia, buscando proporcionar espaço de acolhimento das demandas apresentadas pelos participantes. Os grupos foram conduzidos por duplas de estagiários. A participação era voluntária e as horas vivenciadas nas atividades grupais eram contabilizadas na redução do tempo de cumprimento das medidas. Realizou-se levantamento prévio das necessidades a serem discutidas e refletidas e dos recursos metodológicos que os mesmos consideravam interessantes em serem utilizados durante o processo.

Após o primeiro encontro, deu-se início ao desenvolvimento dos grupos. Foram realizados 12 encontros, com duração média de duas horas cada. Entre os recursos metodológicos destacou-se a utilização de dinâmicas grupais, músicas, colagens, filmes, desenhos e discussões abertas.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram no decorrer dos grupos o total de 15 jovens, com\ média de 3 a 4 adolescentes por encontro, com idade entre 14 e 21 anos, em cumprimento de medidas socioeducativas, quer seja pela reincidência ou não, cujos atos infracionais que variavam desde roubo e envolvimento com drogas, até abuso sexual de menores de idade e falsificação de dinheiro.

No início das atividades, esperava-se resgatar os jovens que estavam em descumprimento da medida de LA. Apesar do elevado número de adolescentes nessa condição, mesmo somado àqueles que se encontravam em internação domiciliar, considerou-se que a adesão à proposta apresentada foi baixa.

Durante os primeiros encontros verificaram-se obstáculos no estabelecimento de vínculo entre os jovens e os estagiários. Infere-se que essas dificuldades estavam atreladas às experiências negativas vivenciadas no contexto familiar e jurídico. Ademais, os discursos dos adolescentes eram marcados por resistências quanto à figura do psicólogo, já que mencionavam vivências negativas no relacionamento com outros profissionais em outras instituições e circunstâncias. Percebeu-se, por meio dos discursos, que a concepção de psicólogo assimilada por parte dos participantes era marcada pela crença de que o profissional tinha interesse em extrair informações e julgar as atitudes cometidas.

As representações sociais presentes na sociedade são de que os adolescentes que cometem atos infracionais são "delinquentes" e "criminosos", aumentando o preconceito com essa população. A experiência tem demonstrado que, em certas circunstâncias, as ações dos profissionais com os adolescentes em conflito com a lei tendem a práticas moralizantes e de controle social (Espíndula & Santos, 2004; Souza & Venâncio, 2011). Nesse sentido, verificou-se que os participantes esperavam que os estagiários apresentassem discurso moralista e taxativo, por isso o silêncio e a recusa em responder os questionamentos foram elementos constantes nos momentos iniciais do processo de intervenção. Em contraste, os estagiários procuraram adotar posicionamento empático em relação aos aspectos trazidos pelos participantes. Tal fenômeno contribuiu para que, no decorrer dos grupos, fosse construída uma relação de respeito, de modo que os adolescentes começaram a demonstrar abertura frente às atividades.

Quanto às temáticas abordadas nos encontros, algumas merecem destaque por terem se mostrado de profunda relevância para os participantes, bem como para a dinâmica do grupo. Entre estes os temas relacionados à família, aos estigmas e preconceitos sociais, às dificuldades de ressocialização, ao envolvimento com drogas e ao consumismo.

No que tange às famílias dos jovens atendidos, as configurações familiares mostraram-se diversificadas: famílias tradicionais, famílias reconstituídas, famílias monoparental feminina e masculina. Quanto à questão socioeconômica, observaram-se diversas condições financeiras. Apesar das famílias não serem formalmente atendidas, alguns membros conversaram com os estagiários, revelando preocupação e buscando formas de reinserção social dos adolescentes. Essa percepção está em desencontro com concepções presentes no senso comum, onde prevalece a ideia de que as famílias de adolescentes em conflito com a lei não se fazem participantes no processo educativo ou não se vinculam com a problemática do jovem. Estas posturas das famílias reiteram a importância do vínculo familiar, apresentado na literatura, e revelam-se como fator de proteção e como forma de diminuir a probabilidade do adolescente infracionar (Alcântara, 2007).

Com relação aos estigmas sociais, os adolescentes relataram ser fator comum no cotidiano de vida e em vários locais que frequentavam, inclusive em instituições da sociedade civil onde prestavam as medidas socioeducativas de Prestação de Serviço à Comunidade (horta comunitária, lar de idosos, empresas, entre outros). Observou-se que a vivência de atitudes preconceituosas e discriminatórias nos círculos sociais, era elemento que dificultava o processo de reinserção destes jovens na sociedade. Sentimentos ligados à exclusão e vulnerabilidade também impediam as possibilidades de ressignificação dos atos cometidos.

Ao discutirem-se questões relacionadas ao envolvimento com as drogas, seja pelo uso ou pela comercialização, percebeu-se, a partir dos discursos dos sujeitos, que este aspecto estava intimamente relacionado ao consumismo. Os adolescentes demonstraram vasto conhecimento a respeito dos entorpecentes, tanto no que se refere à venda, produção e manipulação, quanto aos efeitos do consumo e às consequências legais advindas do envolvimento. Dessa forma, o uso das drogas configurava-se em relação de poder, a venda era compreendida como trabalho e o lucro advindo desta era utilizado para o acesso a bens e serviços. Sendo assim, o acesso fácil aos entorpecentes, juntamente aos benefícios financeiros advindos da comercialização, influenciavam a prática de atos infracionais. A isso podem ser somados outros fatores de risco ligados à família, à escola, aos pares e à comunidade. Reitera-se o papel da sociedade e do Estado na construção de ideologias consumistas, resultando na constituição de indivíduos que tem no capital a única possibilidade de manutenção da felicidade e do bem estar (Bock, Gonçalves, & Furtado, 2007; Marx, 1994). Nesse sentido, as discussões acerca das condições materiais de vida foram igualmente importantes para o processo de conscientização e para a busca pela emancipação.

O trabalho em grupo mostrou-se como alternativa importante ao desenvolvimento de valores ligados à construção da cidadania, respeito e cooperação. Quanto à metodologia desenvolvida, destacou-se a organização de grupos abertos que privilegiavam o diálogo, pois contribuiu para que o adolescente se colocasse como sujeito ativo e responsável perante suas escolhas e seus atos. Ademais, o jovem encontrava espaço para troca de experiências e para elaboração das vivências passadas. Somadas a essas práticas, a arte foi ferramenta imprescindível; na medida em que as habilidades dos adolescentes puderam ser expressas, propiciou-se o sentimento de aceitação e pertencimento. Destacaram-se as metodologias que promoviam a utilização da música (rap e hip hop), das artes gráficas (grafitagem), dos jogos e filmes (curta metragem).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na atualidade muito se tem discutido a respeito da redução da maioridade penal e, de certa forma, a alteração do sistema de direitos e deveres dos adolescentes. Frente a essa conjuntura, questionamentos acerca de eficácia das medidas socioeducativas são também firmados. Há inexistência de resposta certeira, determinada e única, já que o fenômeno da adolescência em conflito com a lei é questão complexa e determinada por múltiplos fatores.

Sabe-se que o envolvimento de adolescentes em atos infracionais tem aumentado nos últimos anos (Brasil, 2012b). Buscou-se nesse trabalho apresentar possibilidades de atuação do psicólogo, enquanto membro da equipe do CREAS e inserido no Programa de Liberdade Assistida, com vistas ao desenvolvimento da autonomia, bem como a (re)construção da cidadania dos adolescentes em conflito com a lei.

O CREAS, enquanto instituição pública, tem o papel de representar o Estado e assistir o adolescente em seu desenvolvimento enquanto sujeito de direitos. A ação do psicólogo na instituição perpassa o auxílio aos jovens de modo que possam construir novos projetos de vida, a partir do respeito aos seus limites, e do fortalecimento dos laços familiares e das relações comunitárias.

As atividades realizadas com jovens em conflito com a lei na LA, embora seja fato recorrente em certos contextos, não deveriam ter a conotação de castigo. O desenvolvimento de ações de cunho repreensivo e/ou punitivo, como por exemplo, práticas de trabalho forçado ou a permanência em cursos indesejados, pouco tem contribuído para o que o adolescente desenvolva a autonomia e o senso crítico. Ao contrário, são atividades que podem suscitar a revolta e atitudes violentas. Dessa forma, o trabalho junto a adolescentes em conflito com a lei perpassou a promoção e garantia de direitos humanos, bem como o fortalecimento das relações sociais. O CREAS, por meio da LA, assumiu o papel de contribuir com o desenvolvimento do adolescente com vistas ao exercício da cidadania.

Buscou-se desenvolver metodologia diferenciada, utilizando os grupos voluntários e abertos como possibilidade para o cumprimento de medidas socioeducativas. Os grupos buscaram transcender ações punitivas. Para além de tarefas como limpar salas, lavar banheiros ou capinar terrenos, as atividades grupais privilegiaram o diálogo e a escuta como contexto favorável à ressignificação das ações cometidas pelos adolescentes.

A sociedade contemporânea ainda se organiza por meio de punições. Na expectativa de que o adolescente tenha seu comportamento modificado e de que não haja reincidência nos atos infracionais, muitos Programas de Liberdade Assistida tendem a reproduzir atividades cujo eixo central é a punição. A experiência de estágio revelou que ações coercitivas ou a mera prática de castigos socialmente aceitos, como os citados, contribuíam para que os adolescentes se tornassem agressivos, especialmente com os operadores do programa. Ao encontrarem os grupos abertos com temáticas escolhidas por eles próprios, houve condições para pensarem e se posicionarem criticamente frente às escolhas de vida que conduziram à realização do ato.

O trabalho do psicólogo junto a jovens infratores pode voltar-se à busca pela reinserção social, de modo que o profissional desenvolva práticas que privilegiem a convivência e a dimensão coletiva. Entende-se que a Psicologia é chamada a construir atuações éticas e de excelência com adolescentes em conflito com a lei, de modo que o compromisso social da profissão se materialize em práticas democráticas. Nessa direção, a experiência, além de contribuir com o processo de formação profissional dos estagiários, mostrou-se como contexto rico para suscitar a reflexão, bem como contribuiu para a construção de novos projetos de vida.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Tatiana Machiavelli Carmo Souza
E-mail: tatimachiavelli@yahoo.com.br

Recebido: 19/11/2013
1ª revisão: 10/12/2013
Aceite final: 10/01/2014

 

 

1 Lucas Rossato é psicólogo pela Universidade Federal de Goiás, Jataí.
2 Tatiana Machiavelli Carmo Souza é professora adjunta do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Jataí.