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Revista da SPAGESP

versión impresa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.16 no.2 Ribeirão Preto  2015

 

ARTIGOS

 

O estatuto contemporâneo da parentalidade

 

The contemporary statute of parenthood

 

El estatuto contemporáneo de la relación parentalidad

 

 

Michelle Christof Gorin1; Renata Mello2; Rebeca Nonato Machado3; Terezinha Féres-Carneiro4

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teórico pretende discutir o estatuto contemporâneo da parentalidade, a partir da relação existente entre a interdição do incesto e a valorização crescente da satisfação como base da formação da família nos dias de hoje. Compreende-se o referido estatuto como as diferentes formas de exercer o cuidado com os filhos, as quais se encontram tanto marcadas por uma forte tradição histórica quanto atravessadas por atualizações e demandas contemporâneas. Busca-se explicitar o modo como as relações de parentesco foram estabelecidas ao longo das transformações da família, tomando como fio condutor a interdição do incesto. Abordam-se as formas de parentalidade no cenário familiar contemporâneo, que inclui diversos arranjos familiares, ancorados na satisfação íntima e sexual que determinam o tempo e a estabilidade dos vínculos.

Palavras-chave: parentalidade; configurações familiares; contemporaneidade.


ABSTRACT

This theoretical study intends to discuss the contemporary statute of parenthood from the existing relation between incest prohibition and the increasing recognition of satisfaction as the foundation for family formation nowadays. We understand this statute to becom prised by different forms of exercising childcare, which are marked both by a strong historical tradition and by contemporary updates and demands. We seek to clarify the way kinship was established throughout family transformations, using incest prohibition as a study guideline. We examine different forms of parenthood in contemporary families, which includes several family settings stating that intimate and sexual satisfactions determine the duration and stability of bonds.

Keywords: parenthood; family configuration; contemporaneity.


RESUMEN

Este estudio teórico pretende discutir el estatuto contemporáneo de la relación parental partir de la relación existente entre la interdicción del incesto y la creciente valoración de la satisfacción como base de la formación de la familia en la actualidad. Comprendemos el referido estatuto como las diferentes formas de ejercer el cuidado de los hijos, las cuales se encuentran tanto marcadas por una fuerte tradición histórica como también traspasadas por actualizaciones y demandas contemporáneas. Buscamos explicitar el modo en el cual las relaciones de parentesco fueron establecidas a lo largo de las transformaciones de la familia, tomando como hilo conductor la interdicción del incesto. Abordamos las formas de relación parental en el escenario familiar contemporáneo, el cual incluye inúmeros arreglos familiares y está anclado en la satisfacción íntima y sexual que determina el tiempo y la estabilidad de los vínculos.

Palabras clave: relación parental; configuraciones familiares; contemporaneidad.


 

 

O conceito de parentalidade vem sendo cada vez mais utilizado na contemporaneidade, sobretudo nos estudos de família, para se referir ao campo dos cuidados parentais e às interações entre pais e filhos. Apesar de ser objeto de interesse de outras áreas do conhecimento, tais como, antropologia, filosofia e sociologia, é no campo da psicologia e da psicanálise que o conceito assume todo o seu vigor, especialmente, a partir da reflexão acerca das novas configurações familiares. As transformações em voga na sociedade e as formas, até então, inéditas de família nos dias de hoje, desafiam antigas noções, convidando todos a uma atualização.

Sabemos que o processo de tornar-se pai e mãe vai muito além da função biológica, sendo necessariamente marcado pelo contexto sociocultural, pela história do sujeito na sua família e pela subjetividade de cada um. A chegada de um novo bebê põe em movimento aspectos subjetivos de cada um dos pais, englobando ideais, medos, lembranças da própria infância, modelos paternos e maternos, além de expectativas acerca do futuro. Desse modo, o processo de construção da parentalidade desafia o sujeito a reorganizar seus investimentos narcísicos e objetais, transformando a economia psíquica do sujeito e a dinâmica relacional do casal (Lebovici, 2004).

Ao analisarmos a história das famílias e das relações de parentesco, podemos constatar que a parentalidade nem sempre esteve presente. As relações familiares e as funções parentais, tais como as conhecemos hoje, foram construídas ao longo da história de forma complexa e acompanhando as transformações em curso na sociedade. A constituição do vínculo de parentesco estabelece entrelaçamentos desde os primórdios do desenvolvimento humano, estando permanentemente em mutação, tal como o sujeito e sua forma de se relacionar com o mundo ao redor.

No âmbito destas considerações, o presente estudo teórico tem como objetivo discutir o estatuto contemporâneo da parentalidade, a partir da relação existente entre a interdição do incesto e a valorização crescente da satisfação como base da formação da família nos dias de hoje. A partir de um breve percurso histórico, apresentaremos o modo como as relações de parentesco foram engendradas ao longo das transformações da família nas últimas décadas. Em seguida, vamos discutir o conceito de parentalidade, do surgimento no campo psicanalítico às recentes atualizações na área de família, enfatizando as transformações vigentes no mundo contemporâneo. Com efeito, o diferencial deste estudo reside na proposta de articulação entre a regra do incesto e os aspectos da família contemporânea de valorização da busca pela felicidade e pela completude, no exercício da parentalidade em sua dimensão afetiva.

 

As relações de parentesco: bases fundantes

Distinguir entre as fontes biológicas e as fontes sociais constituintes da relação do sujeito com o mundo é, certamente, uma tarefa complexa. Partiremos do pressuposto de que um conceito se forja em uma perspectiva histórica. Ao estudá-lo, portanto, já temos outros conceitos prévios em nossa mente, sendo necessariamente parte da cultura (Kuhn, 2006). Nesse sentido, o estatuto do conceito, que envolve uma variedade de normas e regulamentações, tem sempre um objetivo definido e justificado (Coutinho, 2008; Marcondes, 2008).

Levando isso em consideração, vamos recorrer às contribuições de Lévi-Strauss (1982), na medida em que o autor busca delimitar as influências culturais na formação da sociedade, com base na proibição do incesto como universal em todas as culturas. Mesmo que a proibição admita algum nível de variação em raros grupos, de acordo com o antropólogo francês, haveria sempre alguma forma de interdição. Dessa perspectiva, os possíveis fatores biológicos e psíquicos para a instauração da referida regra, não seriam suficientes para o horror que tal interdito produz na sociedade. Nesse sentido, o autor sustenta a hipótese de que a interdição das relações sexuais com consanguíneos é o que permite a ideia de que as mulheres de um grupo familiar se relacionem com homens de diferentes grupos. Considerando que pais e irmãos não podem se casar com as mulheres do próprio clã, precisam cedê-las para outros homens fora do âmbito familiar (Alby & Vives, 2015). É importante precisar que as mulheres eram vistas como membros importantes no seio da família, pois garantiam sua existência e continuidade. Desse modo, o interdito do incesto possibilita o casamento e a constituição de uma nova família, uma vez que as mulheres se encontram impedidas deter relações com os homens que fazem parte do seu grupo familiar.

Além disso, de acordo com Lévi-Strauss (1982), as trocas envolvidas nos casamentos funcionam de acordo com duas regras: a troca restrita e a troca generalizada. A primeira diz respeito à troca permitida dentro de um grupo específico, por exemplo, primos de primeiro grau. A segunda diz respeito a casamentos com primas do lado materno da família. Essas trocas viabilizam o relacionamento com pessoas de fora do grupo primário, uma vez que para um homem se casar com uma mulher de um clã distinto, sua filha ou irmã também se casará com um homem de fora. Assim, cada família concede a autorização do seu entrelaçamento com outra, corroborando uma reciprocidade entre os grupos familiares. Nesses termos, o incesto corresponderia a não ocorrência dessas trocas, instituindo, por conseguinte, uma lógica de fechamento e manutenção da estrutura familiar.

De fato, o postulado de proibição do incesto torna possível a realização dos casamentos. Todos os homens em situação de fraternidade e paternidade se veem, portanto, obrigados a oferecer as mulheres da família para outros homens, assim como eles também serão favorecidos com tal possibilidade. Nesse contexto, a proibição do incesto pode ser vista como condição para o casamento, para as relações de parentesco e, assim sendo, para a existência de uma vida de relações em sociedade. O casal e a família decorrente (pais e filhos) se originam daí, bem como a família extensa, pois, efetivamente, aquele que concede a mulher torna-se parente.

A regra do incesto se institui, então, como marca da cultura no homem, na sociedade e na família como instituição. A esse propósito, acompanhemos o enunciado de Lévi-Strauss (1982):

O contexto cultural não consiste em um conjunto de condições abstratas, mas resulta de um fato muito simples, que o exprime por inteiro, a saber, que a família biológica não está sozinha, mas deve recorrer à aliança com outras famílias para se perpetuar (p. 526).

Nesse contexto, o incesto passa a ser tratado como algo que, naturalmente, causa horror às pessoas. Trata-se, portanto, do "papel cultural da família biológica" (LéviStrauss, 1982), sendo, justamente, o que mantém a ordem nas gerações familiares e, por consequência, nos laços sociais. Com efeito, as postulações de Lévi-Strauss nos fazem pensar no modo como a referida interdição promove a expansão dos vínculos por meio da formação de alianças entre famílias diferentes. Tal expansão cria uma nova rede de parentesco e mitiga as ansiedades básicas do ser humano: a finitude, o desamparo e a confirmação da existência. Nessa ótica, nos parece importante ressaltar o valor da passagem da natureza à cultura para o homem, considerando a gestão imperiosa dos laços sociais.

As ideias de Freud ampliam, sobremaneira, o entendimento da importância da interdição do incesto para a criação dos vínculos de parentesco. O autor narra em "Totem e tabu" (1913-1914/1996) o percurso das práticas primitivas, desenvolvendo uma perspectiva mitológica que contextualiza a origem da civilização. Nessa perspectiva, constatamos que a interdição do incesto se mostra relacionada ao limite dado ao desejo humano de alcançar o impossível, a total satisfação, reivindicando a onipotência mítica dos primórdios da vida psíquica. Contudo, a possibilidade de internalizar a interdição só é possível quando atrelada à abolição, no sujeito, das suas pretensões narcísicas, as quais o faz olhar somente para si mesmo, impedindo-o de reconhecer a existência da alteridade. Caso não seja possível, a renúncia aos ideais narcísicos e, consequentemente, a instalação da castração ao movimento desejante – estruturante – entra em cena a tragédia familiar.

 

As transformações na família

Ariès (2006) descreve as mudanças da família ao longo da história por outro viés, atento, especialmente, ao lugar que a criança ocupa na família e na sociedade. De acordo com o autor, na Idade Média, a criança não era vista como a vemos atualmente, tampouco, existia o conceito de infância, envolvendo práticas específicas de cuidados e educação. De fato, a criança era tomada apenas como um pequeno adulto. Nesse sentido, quando a criança se tornava independente fisicamente das figuras de cuidado, já fazia parte do mundo adulto, aprendendo, sobre o viver e as tarefas do dia a dia, estando junto aos adultos na vida cotidiana. Assim, cabia à família, sobretudo, a função de transmitir os bens e o sobrenome, de forma que as relações afetivas não ocupavam lugares centrais.

Ideias sobre preocupação moral, normas de comportamento no meio social, educação e aprendizagem começaram a ser valorizadas pela sociedade progressivamente, dando início à construção da noção de criança e das condições necessárias para dar a ela um tratamento adequado. Desse modo, a pedagogia ganhou grande ênfase na época, com o surgimento da escola como instituição de ensino organizada e, principalmente, com o propósito de controle e enquadramento das ditas boas práticas para crianças e jovens. Nesse contexto, a infância desponta como uma concepção de caráter moral, intimamente relacionada à inocência infantil e à obrigação de cuidado da criança pelo adulto.

Tal processo, descrito por Ariès (2006), inicia-se após a Idade Média e se estende pelos séculos seguintes, evidenciando as constantes transformações em curso. O papel da criança na família se modificava, portanto, na medida em que a organização familiar também se transformava, em favor da inclusão das trocas afetivas e das práticas de cuidado nas relações entre os membros da família. Por esse viés, a vida privada começa a ganhar valorem contraposição à vida que se desdobrava, até então, inteiramente no âmbito público, e a família, como instituição social, se torna responsável pela sociabilidade, afetividade e uma enorme variedade de elementos no processo de desenvolvimento dos filhos.

Na esteira dessas ideias, mais recentemente, Singly (2007) distingue dois períodos da família contemporânea, sendo o peso afetivo nas relações intrafamiliares, uma característica central. O primeiro se refere ao período do século XIX até os anos 1960. Para o autor, esse período é marcado pelo "amor no casamento, pela divisão do trabalho entre o homem e a mulher, a atenção à criança, à sua saúde e à sua educação" (p. 130). Após os anos 1960, o foco passa a ser a felicidade de cada um dos membros da família e não a felicidade da família como grupo. Nessa direção, ocorre uma crescente valorização do individualismo e uma busca por maior autonomia dos indivíduos, as quais engendram inúmeras transformações nas organizações familiares, especialmente, atreladas ao aumento do número de divórcios (Singly, 2007).

Nesse sentido, Roudinesco (2003) aponta três formas de organização da família ao longo da história. Primeiro, refere-se à família tradicional, onde as trocas do casamento são combinadas pelas famílias, assegurando o patrimônio e a autoridade patriarcal. Em um segundo momento, aponta a família moderna, na qual destaca o surgimento de uma lógica afetiva, do final do século XVIII até o início do século XX. Nesse contexto, valoriza-se o amor romântico, o poder começa a ser dividido entre as famílias e o Estado e entre ambos os genitores. Por último, a autora circunscreve a família contemporânea com base na união de pessoas que priorizam a satisfação íntima ou sexual na relação. Tal satisfação se institui como elemento central da demanda de trocas afetivas (Giddens, 1993). A duração dessas relações torna-se, assim, variável de acordo com os ideais de felicidade em voga na sociedade.

Desse modo, as famílias contemporâneas são, primordialmente, constituídas sob as bases da busca pela satisfação, que passa a determinar o tempo e a estabilidade do vínculo entre as pessoas. Nesse contexto, acompanhamos o aumento crescente do número de separações e recasamentos, bem como, a multiplicação do número de famílias monoparentais e homoparentais (Féres-Carneiro & Magalhães, 2011; JacobAlby & Vives, 2015; Vilhena, Souza, Uziel, Zamora, & Novaes, 2011). Assim, o rompimento das relações em função da ausência de amor e/ou desejo sexual pelo parceiro, a pressão no sentido de uma maior igualdade entre os sexos e o movimento de valorização da infância nas últimas décadas se conjugam para uma remodelação das práticas parentais para homens e mulheres. Nesse contexto, o núcleo central da família contemporânea vem se implodindo, uma vez atravessado por novas relações de parentesco, a partir do contato íntimo com adultos, adolescentes e crianças vindas de outras famílias. De fato, irmãos não consanguíneos passam a conviver com padrastos e/ou madrastas, às vezes já de uma segunda ou terceira união de um de seus pais, acumulando vínculos com pessoas que não fazem parte do núcleo original de suas vidas (Kehl, 2003).

Levando isso em consideração, nos questionamos sobre o lugar do interdito do incesto nos arranjos familiares da contemporaneidade, na medida em que a interdição implica na internalização da castração, no entendimento de que existem limites impostos à satisfação nas relações de parentesco. Nesse sentido, nos parece importante pensar no modo como se transmite e se vivencia o abandono dos ideais de completude narcísica, em famílias cujos valores estão sob os pilares da busca pela autorrealização, a qualquer preço, tributários dos imperativos de felicidade patentes nos dias de hoje.

 

O conceito de parentalidade

Traduzido do francês parentalité, como um neologismo, a palavra parentalidade passou a ser usada no Brasil a partir da década de 1980. De acordo com Houzel (2004), o termo parentalidade foi inicialmente usado por Paul-Claude Racamier (1961), no início da década de 1960, para enfatizar o caráter processual implicado no exercício das funções dos pais em relação aos filhos. Atualmente, o conceito vem sendo utilizado, em diferentes abordagens teóricas, para designar o processo dinâmico por que passam os pais, isto é, ao processo de tornar-se pai e mãe, que vai além do biológico, envolvendo aspectos conscientes e inconscientes, que passam pela história da família de cada um dos pais e pelo contexto sociocultural em questão.

Houzel (2004) destaca três eixos principais da parentalidade, o exercício, a experiência e a prática. O primeiro diz respeito ao exercício da parentalidade no sentido da transmissão dos direitos e deveres que organizam os laços complexos de parentesco, de filiação e de senso de pertencimento. Cabe sublinhar que essas questões, muitas vezes, são perpassadas por definições jurídicas, onde há questionamentos em relação à dissociação entre laços jurídicos, biológicos e sociais. O autor menciona também um segundo eixo que se refere ao exercício da parentalidade que se dá por meio da transmissão dos interditos estruturantes para o sujeito. Nesse sentido, a experiência da parentalidade se encontra remetida ao fato de cumprir papéis parentais, os quais englobam processos conscientes e inconscientes. O desejo pela criança e a parentalização dos indivíduos fazem parte desses processos. O terceiro eixo designa as práticas da parentalidade, que envolvem o campo dos cuidados parentais, físicos e psíquicos, e das interações afetivas entre pais e filhos. É importante notar que, ao propor uma tríplice perspectiva da parentalidade, o autor sustenta a complexidade em jogo, furtando-se da tarefa de hierarquizar ou privilegiar apenas um aspecto (Zornig, 2010).

Nessa direção, Moro (2005) afirma que a parentalidade é construída por meio de diversos aspectos distintos. A autora destaca características coletivas, que fazem parte da sociedade e são marcadas pelo tempo, ou seja, são atravessadas pela cultura e pela história. Além disso, também fazem parte do processo de construção da parentalidade características individuais do casal parental. Nessa medida, no momento de tornar-se pai e mãe, a história de cada um dos pais vem à tona, seus traumas infantis, histórias familiares e representações parentais (Bydlowski, 2010). Esse momento traz luz, portanto, sobre os fantasmas parentais e sobre o modo como cada um carrega os mitos de sua família e os aspectos culturais.

A respeito da construção da parentalidade, Lebovici (2004) descreve o ser pai e mãe como um processo singular que se realiza a partir de uma reflexão sobre a descendência e sobre a herança que será transmitida intergeracionalmente. Isso pode ser evidenciado na seguinte passagem: "Assim, defino a parentalidade como o produto do parentesco biológico e da parentalização do pai e da mãe" (p. 22). Em relação à parentalização dos pais, o autor sublinha que os filhos também desempenham um papel ativo nesta tarefa, na medida em que estabelecem uma interação própria com seus genitores permeada de emoções e afetos. Desse modo, as crianças, despertam nos pais determinadas sensações que repercutem, sobremaneira, na constituição da parentalidade.

É importante observar que a criança é o elemento que inaugura a tríade, representando a parte excluída da cena conjugal. A criança sonha em ter a completude do amor do casal parental, contudo, para conviver em sociedade algo, necessariamente, precisará ficar de fora. Cabe aos pais, portanto, ajudá-la a renunciar à satisfação pulsional para admitira assimetria de seu lugar na cadeia geracional, aceitando, assim, os limites que a cultura lhe impõe (Solis-Ponton, 2004). Nesse contexto, pertence ao exercício da parentalidade a função de transmitira lei que interdita para humanizar o filho por meio da experiência de perda da onipotência. Denomina-se humanização esse processo estruturante de inserir o filho dentro das leis da cultura, capacitando-o psiquicamente a viver em sociedade.

A constituição da parentalidade remete, então, ao reconhecimento das fantasias originais agressivas e sexuais. "Essas pulsões recalcadas são, entretanto, a parte central de um saber inconsciente das leis primordiais que todo pai e toda mãe devem levar em conta quando tratam de assumir seu papel parental" (Solis-Ponton, 2004, p. 36). Nesse contexto, os pais precisam encontrar um equilíbrio entre o lugar distinto que eles ocupam na cadeia genealógica, identificando-se e diferenciando-se dos antepassados, e tendo de renunciar aos próprios impulsos (Eiguer, 2012). Esse resultado formará o legado que a criança irá herdar e a inspirará a formar sua subjetividade.

Nesse ponto, faz-se necessário avançar em relação ao estudo da parentalidade, não apenas definindo o conceito, mas buscando ressaltar o que vem sendo produzido na área pela literatura brasileira, articulado com questões relevantes das famílias contemporâneas.

 

A parentalidade na contemporaneidade

O cenário familiar contemporâneo inclui inúmeros arranjos conjugais, como casamento, recasamento, monoparentalidade, entre outros, com durações muitas vezes curtas e depois novas reorganizações (Féres-Carneiro & Magalhães, 2011, 2014; Piccinini & Alvarenga, 2012). Além disso, existem outros temas centrais nas discussões sobre família hoje, como homoparentalidade, adoção, questões relacionadas à Justiça, novas tecnologias de reprodução e muitos outros. Faltam nomenclaturas para todos os arranjos, papéis e funções.

Apesar das transformações em pauta, a família se mantém como uma forma de organização social consistente. Com efeito, as reorganizações são constantes e a parentalidade continua a ser exercida, não necessariamente pelo pai e pela mãe biológicos, no contexto da família nuclear tradicional, mas pelo arranjo que se compõe para exercer as funções parentais em relação às crianças. Tais funções podem ser exercidas, por exemplo, pelos próprios pais, por dois pais, duas mães, madrastas e padrastos, por exemplo.

Vilhena et al. (2011) ressaltam que fatores biológicos têm sido cada vez menos utilizados como referência do que é uma família e que há uma discussão grande sobre reconhecimento e direito de múltiplas formas de relações. No entanto, de acordo com os autores, é preciso uma revolução nessa discussão no que diz respeito à forma de normatizar e institucionalizar tudo de acordo com o conceito de família prévio. O esforço deve ser no sentido de desnaturalizar categorias já preestabelecidas para olhar as famílias e a parentalidade como um fenômeno em si e não com referenciais externos, determinados de antemão.

Os autores constatam que, muitas vezes, busca-se com muita ênfase um rótulo, por exemplo, da homoparentalidade, enquanto a realidade não evidencia tantas diferenças na forma de exercer a parentalidade por casais heteroparentais e homoparentais. Assim, mesmo que haja a problematização e uma tentativa de reconhecer a homoparentalidade, permanece uma lógica binária e um olhar estereotipado.

Para abarcar todas as configurações contemporâneas que permitem e exigem novas formas de parentalidade, Uziel (2000) usa o termo "pluriparentalidade", questionando os critérios que legitimam as pessoas para se tornarem "pai" e "mãe". Dessa perspectiva, o uso do termo reconhece os limites do biológico e passa a valorizar o desejo e a convivência daqueles que exercem as funções parentais, independentemente de quem as exerça. Nessas condições, testemunhamos a família social ganhar enorme valor, pois o termo sugere uma adição e não uma substituição de adultos que exercem a parentalidade, desafiando, assim, a noção de filiação biológica e exclusiva. A esse propósito, Roudinesco (2003) destaca a vontade de reconhecimento, igualdade e pertencimento ao grupo como características relevantes dos sujeitos contemporâneos. Porém, permanece a interrogação: o que é ser pai e mãe hoje?

O termo parentalidade, tal como usado hoje, identifica uma série de valores culturais agregados ao longo da história, envolvendo afetos, cuidados, histórias pessoais das famílias, bem como, a individualidade e singularidade de cada genitor. O importante é notar que nenhum dos autores se refere a alguma organização familiar de determinada época como estanque e, sim, como instituição da sociedade que se altera dinamicamente de acordo com a época e, portanto, também se altera na forma de ser pai e mãe.

A discussão sobre a pluriparentalidade enfatiza como a parentalidade e suas diferentes formas estão em pauta na contemporaneidade. Todas as questões relacionadas a divórcios, recasamentos, uniões homoafetivas, genitores monoparentais apresentam um leque enorme de possibilidades de como exercer a parentalidade hoje. Nesse sentido, é essencial que os estudos da área de família reflitam sobre as mudanças recentes, reconhecendo o biológico e o social como um par em constante tensão, levando em conta a busca por legitimidade da sociedade para sua família.

A literatura brasileira ressalta que o exercício da parentalidade passa por um período de transição. Testemunha-se, por um lado, o reconhecimento da importância das figuras parentais para o desenvolvimento da criança, por outro, o esmaecimento das funções hierárquicas e dos papéis de gênero (Araújo, 2011; Borges, Magalhães, & Féres-Carneiro, 2014; Féres-Carneiro & Magalhães, 2014; Lewis & Dessen, 2012; Magalhães, Féres-Carneiro, Henriques, & Travassos-Rodriguez, 2013; Ponciano & Féres-Carneiro, 2014). Enfatiza-se, também, a formação da família contemporânea sob a primazia da dimensão afetiva, se construindo em torno da criança que carrega a responsabilidade implícita de dar um sentido à vida dos adultos (Mello, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2015). Nesse contexto, a expansão de produções científicas nacionais evidencia a preocupação em ampliar práticas que atendam a desordem do desenvolvimento de crianças, jovens e familiares, constituindo possíveis fragilidades no futuro das novas gerações (Carvalho-Barreto, 2013).

Abordar a parentalidade como uma construção social permite reconheceras forças em jogo na contemporaneidade, recusando estereótipos e lógicas anteriores. Tal abordagem, com significativos desdobramentos clínicos para a área de família, permite ao terapeuta e ao pesquisador uma aproximação mais próxima e atual dos arranjos familiares. As composições e recomposições, em voga nos dias de hoje, repercutem nas funções desempenhadas por pais e filhos, na organização do grupo familiar e na construção da subjetividade de cada membro da família.

 

Considerações finais

O estatuto da parentalidade na área de família diz respeito às diferentes formas de exercer o cuidado com os filhos, decorrente de uma longa história social e marcado por características contemporâneas. É importante, portanto, afirmar que essas transformações fizeram a ideia de família ser revisitada, especialmente no que diz respeito ao modo de criação dos filhos. Assim, as várias formas de ser pai e ser mãe hoje, em função da formação social da família e da valorização progressiva da busca da felicidade, acolhem distintos arranjos conjugais e familiares.

O estudo das famílias, tanto no campo da clínica quanto no âmbito da pesquisa, depende da compreensão das transformações existentes no contexto sócio-histórico, que incidem nas diversas formas de família dos tempos atuais, produzindo, por sua vez, novas práticas parentais. Nesse sentido, torna-se necessário refletir sobre o modo como a construção do sistema de parentesco mantém a renúncia como regra estruturante da ordem familiar. Constatamos que os interditos constituem as representações de parentesco no nível psíquico e organizam as bases da estrutura familiar, condição de abertura para o estabelecimento de novos laços sociais. Sendo assim, pertence aos pais, a função intransferível e cada vez mais atual de transmitir ao filho o interdito do incesto, dando condições ao mesmo de renunciar aos ideais narcísicos, característicos dos primeiros anos da infância e tão proeminentes em nossa sociedade.

Ressalta-se que muitas questões devem ser investigadas acerca do tema da parentalidade, levando em conta as mudanças rápidas e constantes em curso. Umas das limitações desse estudo foi o recorte estrito na abordagem psicanalítica, uma vez que a parentalidade vem sendo objeto de pesquisa em diferentes áreas que não foram aqui contempladas.

No âmbito dessas considerações, propõe-se que a discussão sobre as formas de ser família hoje não se realize apenas em torno do exercício das funções paternas e maternas; mas que, independentemente do arranjo conjugal, a parentalidade se ocupe da estruturação psíquica do sujeito, por meio da troca afetiva e da transmissão dos interditos. Desse modo, o papel das figuras parentais se mostra absolutamente formador, no sentido de preparar os filhos para suas responsabilidades em relação às normas de convívio social. Daí o sujeito pode advir como parte de uma família e de uma sociedade.

 

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Endereço para correspondência

Terezinha Féres-Carneiro
E-mail: teferca@puc-rio.br

Recebido: 08/06/2015
1ª revisão: 10/08/2015
Aceito: 20/08/2015

 

 

1 Michelle Christof Gorin é mestranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
2 Renata Mello é pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
3 Rebeca Nonato Machado é pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
4 Terezinha Féres-Carneiro é professora titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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