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Revista da SPAGESP

versión impresa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.16 no.2 Ribeirão Preto  2015

 

ARTIGOS

 

A exclusão do sujeito das práticas médicas em contexto hospitalar

 

The exclusion of the subject from the medical practices in the hospital context

 

La exclusión del sujeto de las práticas medicas en ambiente hospitalario

 

 

Gicelma Barreto Nascimento1; Rogério da Silva Paes Henriques2

Universidade Federal de Sergipe, Aracaju-SE, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo investigar, por meio de uma articulação entre teoria, prática e pesquisa, a problemática da exclusão da subjetividade em ambiente hospitalar. Apresentamos resumidamente a relação entre medicina e ciência, procurando entender em que momento a medicina deixou de se preocupar com o sujeito e passou a se interessar pela doença. Buscando compreender o que fazer para contornar a problemática da exclusão do sujeito em ambiente hospitalar, relatamos dois casos clínicos atendidos por uma equipe multiprofissional de um hospital público. Partindo dos casos discutiremos a respeito da prática do psicólogo neste contexto. Procura-se mostrar que a atuação da Psicologia em ambiente hospitalar busca escutar o sujeito que foi excluído da ciência médica.

Palavras-chave: subjetividade; ambiente hospitalar; exclusão do sujeito.


ABSTRACT

This study aims to investigate, by means of linking theory, practice and research, the issue of excluding subjectivity in hospital environment. We briefly present the relationship between medicine and science, trying to understand at which point medicine stopped worrying about subjects and became interested in diseases. Trying to understand what to do to address the problem of excluding subjects in hospital environments, we report two clinical cases assisted by a multidisciplinary team of a public hospital. Based on those cases, we discuss about the psychologist practice in that context, showing that psychological intervention in the hospital environment aims to listen to the subject who was excluded from medical science.

Keywords: subjectivity; hospital environment; exclusion of the subject.


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo investigar, a través de una articulación entre teoría, práctica e investigación, la cuestión de la exclusión de la subjetividad en el hospital. Por lo tanto, presentaremos brevemente la relación entre la medicina y la ciencia, tratando de comprender en qué momento la medicina dejó de preocuparse con el sujeto y centró sus acciones en la enfermedad. Con el objetivo de comprender lo que se puede hacer para superar la problemática de la exclusión del sujeto en el ambiente hospitalario, haremos una discusión de dos casos clínicos atendidos por un equipo multidisciplinario de un hospital público. Con base en los casos, discutiremos acerca de la actuación del psicólogo en este contexto, explicitamos que la actuación de la psicología en el hospital busca escuchar el sujeto que fue excluido de la ciencia médica.

Palabras clave: subjetividad; hospital; exclusión del sujeto.


 

 

A Psicanálise surge no seio da medicina, mas dela se afasta para fundar uma nova clínica, um novo saber-fazer. É quando se evidencia que o discurso médico não dá conta de todas as manifestações dos pacientes atendidos, que existe uma ruptura com o saber médico. "Porque as histéricas escaparam ao saber da medicina é que algum enigma se constituiu das manifestações que apresentavam" (Erlich & Alberti, 2008, p. 2). Aqui ressaltamos que Freud, ao propor uma nova leitura dos fenômenos psíquicos, situa-se em uma posição completamente diferente da dos seus contemporâneos. Porém, como afirma Vieira (2002, p. 2), "melhor pensar que a frieza do médico tem pouco a ver com a qualidade humanitária de seu coração". Segundo o autor, o que acontece é que do lugar onde a medicina se encontra (medicina científica), ela seria incapaz de abordar alguns aspectos singulares dos pacientes atendidos.

Por mais que Freud tenha aberto a possibilidade para uma nova clínica ao criar a Psicanálise e estruturar toda a sua teoria, os analistas que escolhem trabalhar em instituições de saúde não o fazem sem dificuldades; isso acontece por que o discurso que orienta as práticas neste contexto é o saber médico com todo o arcabouço teórico acerca do doente e das doenças (Ramos & Nicolau, 2013).

A medicina da qual estamos falando aqui é aquela em que seu saber está pautado na ciência, ou seja, busca atender às exigências da objetivação e da universalidade. Seria uma medicina que substitui a clínica pela evidência científica, e por consequência exclui a subjetividade. Sabemos que o sujeito da ciência é uma variável a ser mensurada (Ramos, 2013).

Diante disso, o hospital é o espaço de maior visibilidade da ruptura das práticas "psis" (psicologia, a psicanálise e a psiquiatria) com a medicina. Atuar no hospital frequentemente se constituiu como um desafio para o profissional psicólogo, visto que nesse contexto a lógica da maioria das práticas se distancia muito das práticas em psicologia. Verifica-se nas práticas em geral uma marcação do discurso médico e com isso a exclusão da subjetividade. Ao falar em práticas médicas, abarca-se todo tipo de profissão; seja enfermagem, fisioterapia, nutrição, medicina, dentre outras, cuja lógica de atuação segue a visão centrada no corpo, no biológico e onde seu fazer exclui a subjetividade. Tais práticas seguem o modelo flexineriano em saúde, hospitalocêntrico, um modelo fragmentado e baseado no uso intensivo de tecnologias. "A ciência 'sutura' o sujeito, isto é, despreza o sujeito, excluindo-o do seu campo" (Fink, 1998, p. 171). Diante disso, neste espaço, o sujeito acaba sendo excluído do cuidado, perde a voz e torna-se um corpo-objeto. Enfim, neste contexto o sujeito é excluído de um processo no qual deveria ser protagonista (Simonetti, 2004).

Diante disso, quando não há nada que "atrapalhe" – isto é, quando tudo está dentro das regras e funciona de acordo com protocolos estabelecidos –, a equipe médica consegue trabalhar sem dificuldades. Porém, o que acontece quando o paciente não quer aderir ao tratamento medicamentoso dito ideal para a sua cura? O que acontece quando o paciente obeso desiste de fazer a cirurgia bariátrica minutos antes de entrar no centro cirúrgico? O que acontece quando um paciente decide morrer apesar do seu diagnóstico ter possibilidade de cura?

Diante do que foi exposto, o objetivo deste trabalho é investigar, por meio de uma articulação entre teoria, prática e pesquisa, a problemática das práticas onde se evidencia a exclusão do sujeito do seu processo de adoecimento. As perguntas que norteiam este trabalho são: por que se produz uma clínica cada vez mais biológica mesmo com tantas discussões acerca do atendimento humanizado? E por que a subjetividade caracteriza-se como uma barreira que precisa ser contornada?

Nos parágrafos seguintes vamos apresentar resumidamente a relação entre medicina (e suas práticas) e a ciência, visto que essa temática é fundamental para entendermos a diferença entre o trabalho do psicólogo e o do médico em ambiente hospitalar. Será apresentada uma discussão a respeito da prática do psicólogo em ambiente hospitalar; com o objetivo de mostrar que a atuação da psicologia em ambiente hospitalar busca escutar o sujeito que foi excluído da ciência médica. Por fim, apresentaremos material recolhido pela autora no cotidiano da práxis do Hospital Universitário de Sergipe (HU-SE), que servirá como exemplo prático da problemática enfrentada pelos psicólogos em ambiente dominado pelo discurso da medicina cientifica.

 

Os efeitos do avanço científico sobre a relação médico-paciente

A medicina sofre atualmente algumas críticas a respeito da postura médica frente ao paciente. Estamos acostumados a ver médicos cada vez mais afastados dos pacientes, preocupados com exames e diagnósticos e se importando pouco com a relação subjetiva (Artacho, 2013; Aguiar, 2014). O que aconteceu com a medicina durante todo esse tempo? De que forma a medicina deixou de focar no doente e passou a se preocupar com a doença?

Artacho (2013) apresenta uma reflexão acerca da relação médico-paciente e a subjetividade nas últimas décadas. Segundo o autor, dois fatores foram de fundamental importância para produzir mudanças nas práticas médicas e com isso alterar a função do médico, bem como sua relação com o paciente. Tais mudanças são a evolução científica e a mercantilização da medicina.

O autor reconhece que os grandes avanços da ciência moderna, bem como a inclusão da ciência no campo da medicina, produziram inúmeros benefícios para a humanidade, contudo, ele fala que essa relação também acaba produzindo alguns efeitos colaterais. Diante disso, as práticas médicas atreladas aos aparelhos de alta tecnologia se preocupam cada vez mais em realizar exames e tratamentos regidos pelo arcabouço tecnológico, produzindo um distanciamento do paciente e uma desvalorização do valor clínico da palavra, ou seja, da história clínica do sujeito.

Na atualidade, a tecnologia ocupa um lugar central nas práticas médicas, por consequência a medicina clínica, conhecida como "arte da cura", vai sendo substituída pela exigência científica. A arte da medicina sempre esteve ligada à capacidade de escutar a demanda do paciente, bem como a qualidade do vínculo estabelecido entre ambos. Porém, com o avanço tecnológico ocorre uma mudança de perspectiva: aqui o paciente é reduzido a um corpo orgânico, uma máquina cibernética sobre a qual o médico fará suas intervenções. Com isso o paciente passa a ser considerado uma máquina que necessita de consertos, e a doença é vista como algo que atinge uma peça e produz falhas que precisam de reparos (Artacho, 2013).

Em O lugar da psicanálise na medicina, Jacques Lacan (1966) traz algumas questões que são importantes para essa discussão, ele fala de uma modificação na função do médico, uma modificação da posição do médico na atualidade. De acordo com Lacan:

As funções do organismo humano foram sempre objeto de uma experimentação segundo o contexto social. Acontece, porém, que por serem tomadas como função no âmbito de organizações altamente diferenciadas, que não teriam nascido sem a ciência, elas se oferecem ao médico no laboratório (de alguma forma sempre já constituído e até mesmo já subvencionado por créditos sem limites) (Lacan, 1966, p. 2).

O que Lacan (1966) aponta é uma modificação na função do médico por conta da sua relação com "as organizações diferenciadas", visto que na história da medicina, o médico era considerado como padrão, como "um homem de prestígio e de autoridade" e com as novas condições lançadas – condições essas determinadas pelo mundo científico – sua função está submetida e determinada pela cientificidade. "O mundo científico deposita em suas mãos o número infinito daquilo que é capaz de produzir em termos de agentes terapêuticos novos, químicos, biológicos" (Lacan, 1966, p. 3).

A mercantilização da medicina é outro fator apontado por Artacho (2013) como produtor de mudanças na relação médico-paciente. Isso acontece porque, há mais de três décadas, a medicina se converteu em uma atividade mercantilizada, assim as decisões em saúde dependem cada vez mais dos interesses do mercado econômico.

Aguiar (2014) discute a problemática da medicina nos dias atuais. Seguindo a linha da medicina mercantilizada, o autor relata que a medicina atual, além de se preocupar com as doenças que impedem o funcionamento normal do organismo, se preocupa cada vez mais em monitorar e levantar os fatores de risco que poderiam provocar um adoecimento. Dessa forma, vivenciamos um novo conceito de doença, em que a normalidade é praticamente impossível; aqui a lógica é que o indivíduo deve estar atento, com o intuito de controlar constantemente os parâmetros biológicos do seu corpo para administrar os fatores de risco ao qual está submetido. Seria uma medicina que responde aos interesses capitalistas das indústrias farmacêuticas, uma medicina mercantilizada que atende aos interesses do capitalismo em vez das questões de cada paciente em sua singularidade.

Passamos de um modelo de doença individual, para um modelo de doença estatístico, de massa, no qual é a indústria farmacêutica que estabelece, a partir dos ensaios clínicos que ela financia e realiza, os parâmetros a partir dos quais passamos a ser considerados preventivamente "doentes", independente da opinião do nosso médico (Aguiar, 2014, p. 6).

Aqui se faz importante apresentar uma discussão a respeito do novo paradigma que surge na prática médica, a saber: A Medicina Baseada em Evidências (MBE). Esse modelo surge com o intuito de solucionar "os problemas" da clínica médica em relação à tomada de decisões do médico, e ajudar em suas práticas. O que os teóricos da MBE consideram como problemas seriam as intuições e a experiência individual do médico, visto que a prática médica atual "coloca um valor elevado na autoridade científica tradicional, na aderência a protocolos de actuação mais ou menos definidos e na obtenção de respostas às questões clínicas" (Carneiro, 1987, p. 723).

Podemos afirmar que na MBE a clínica é substituída pela evidência científica, e a prática do médico cada vez mais substitui a arte pela técnica. De acordo com essa concepção de medicina, as práticas baseadas na experiência individual não teriam nenhum valor científico e com isso as decisões clínicas e os cuidados para com a saúde, para obterem valor científico, precisam estar pautadas na literatura científica, de preferência jornais e revistas de renome no mercado internacional (França, 2003).

França (2003) apresenta uma reflexão importante acerca da problemática que a medicina enfrenta em tornar-se científica. O autor afirma que a partir do momento em que a medicina tenta gerir seus atendimentos por meio de estatísticas e ignora as experiências individuais de cada profissional, bem como não leva em consideração que "cada caso é um caso", ela passa a tratar de doenças e ignora o sujeito. França afirma que a medicina é uma arte e não uma ciência exata, para o autor o ideal seria que houvesse uma associação entre a experiência clínica e a evidência científica; que houvesse uma análise e uma aplicação racional das investigações científicas e que estas estivessem aliadas às experiências e à arte de cuidar em saúde. Nas palavras do autor:

A medicina não conta com os benefícios da exatidão matemática nem se propõe oferecer propostas perfeitas e uniformes. É a mais circunstancial das ciências e o ato médico, o mais circunstancial dos atos humanos. Por isso, o conhecimento médico nunca pode ser certo, mas apenas provável. Em medicina – principalmente na clínica, que é meramente arte -, o provável nunca é uma abstração, mas aquilo que situa-se entre o possível e o real: a chamada "probabilidade objetiva". A arte clínica é bem mais uma ordem do pensar do que do ser. Isto não torna o ato médico baseado na intenção menos importante do que o baseado na evidência (França, 2003, p. 26-27).

Diante do que foi exposto, podemos afirmar que ao desejar tornar-se científica, aprimorando suas técnicas, tornando-se objetiva e mensurável, a medicina se afasta cada vez mais daquilo que antes se constituía como fundamental no trabalho dos médicos para proporcionar a cura, a saber: o vínculo com o paciente, a relação subjetiva e a demanda individual (França, 2003). Aqui é importante esclarecer que não criticamos as diretivas da Medicina Baseada em Evidencias (MBE), sabemos que estas são importantes para a prática médica. O que colocamos em questão é a não articulação entre a experiência individual e a evidência científica, questionamos o modelo de MBE que é aplicado pela maioria dos profissionais em saúde, que classifica como sem importância para o programa de exatidão metodológica a experiência clínica individual, os relatos de casos e a relação médico-paciente. Quais são as consequências disso para o paciente? Será que ele busca o atendimento médico baseado na "arte" da ação clínica ou na ciência?

 

A Psicanálise como uma práxis que escuta o sujeito excluído

Atualmente é possível encontrar vários profissionais psicólogos, de diferentes abordagens teóricas, atuando em ambiente hospitalar. Sabemos também que esse contexto foi por muito tempo dominado pelo discurso médico. Discurso marcado pela padronização de comportamentos, pela normatização de atitudes e pela exclusão da subjetividade, visto que em contexto hospitalar a subjetividade é tomada como um risco, como algo que pode atrapalhar o sucesso do tratamento médico (Machado, 2011).

Diferente do discurso médico, o trabalho do psicanalista procura mostrar que é impossível anular a subjetividade. Como afirma Fink (1998), por mais que a ciência tente "suturar" o sujeito ela nunca conseguirá completamente. O que vai guiar o trabalho do psicanalista no hospital é o resgate da subjetividade, a escuta do sujeito no adoecimento, a escuta de sua queixa. No trabalho do psicanalista o que interessa é ouvir o sujeito que fala, que reivindica. "O ato analítico convida o sujeito a caminhar a seu modo, que, mesmo sem um sentido, tem um caminho" (Moura, 2011, p. 108). Dessa maneira, o fazer do psicólogo em hospital é marcado pela imprevisibilidade, pela surpresa. A clínica psicanalítica vai tratar daquilo que a medicina tenta excluir e não consegue, vai tratar daquilo que por ser excluído, retorna e insiste (Machado, 2011).

No hospital geral o psicólogo é chamado para intervir quando aparecem situações que envolvem a dimensão psíquica no tratamento de um paciente internado, situações que não podem ser tratadas pela determinação do saber médico, que irrompem de forma abrupta e sempre inesperadas. Diante disso, a solicitação do médico para um profissional "psi" quase sempre é feita quando ele se depara com a singularidade de cada paciente; por não se encontrar no discurso da ciência, esse algo da subjetividade que retorna e insiste não pode ser encontrado nos manuais e protocolos médicos (Batista, 2011). "O psicanalista é chamado para eliminar um fenômeno psíquico, para tentar acalmar qualquer situação de angústia ou para tentar convencer o paciente a aceitar alguma coisa que ele se opõe ou resiste" (Machado, 2011, p. 96).

Lacan (1966) afirma que a psicanálise ocupa um lugar de extraterritorialidade no campo da medicina. Segundo o autor, o lugar da psicanálise é marginal por conta da relação que a medicina estabelece com a psicanálise, "ela admite-a como uma ajuda exterior".

Diante disso, cabe ao psicanalista manter sua ética e sua prática. Neste sentido, a psicanálise e a medicina se distanciam na medida em que o psicanalista não responde a esse tipo de solicitação, não responde da maneira com que foi formulada. O psicanalista é referenciado pela ética do desejo, seu trabalho não consiste em ordenar o que é melhor para o sujeito ocupando a posição daquele que sabe, a clínica psicanalítica não tem como objetivo adaptar o sujeito a um padrão de normalidade – seja esse medido pela média estatística, seja medido pelo padrão funcional desejável no campo moral. Podemos dizer que a psicanálise, através da fala do paciente, busca implicá-lo naquilo que ele está vivendo e com isso introduz a subjetividade. A clínica psicanalítica lida com o sujeito e não com sua doença, sujeito da falta, sujeito do inconsciente (Machado, 2011). De acordo com Vieira (2002, p. 4):

A clínica médica é fundada no momento em que o corpo passa de teatro mágico de operações dos deuses a uma estrutura objetivável de funcionamento regrado e automático; animado por obra do relojoeiro universal, porém morto no que concerne àquilo que desta animação escapa às previsões universais de funcionamento corpóreo. Para que haja clínica é preciso que o corpo vivo seja cadaverizado, tornando-se máquina. Só assim o médico pode apropriar-se do corpo e manipulá-lo. Por outro lado, a psicanálise demonstra que é justamente porque apresenta estes pontos cegos em sua gestalt que o corpo é vivo. Apenas se os buracos do corpo funcionarem como uma abertura para o infinito o objeto da pulsão poderá se situar no seu lugar de causa de desejo, sempre mais além, em uma série infinita de objetos de prazer parcial. Só assim os furos se darão como tais, como pontos de mistério, de pudor, de terror, mas também de gozo.

A clínica psicanalítica se volta para a experiência da singularidade, diante disso o saber com que ela opera é o saber do sujeito. "A especificidade da psicanálise talvez esteja em fazer com que algo que insista do campo do inominável passe para o dizer" (Vieira, 2002, p. 6). O psicanalista trabalha levando em consideração "caso a caso", prioriza que cada paciente possa encontrar uma solução particular para seu sofrimento, para seus conflitos e para o que lhe angustia. "Chamado para resolver um impasse, o que ele pode é oferecer não uma solução predeterminada, mas uma que passe pela palavra, possibilitando que algo do sujeito possa advir" (Carvalho & Couto, 2011, p. 117).

É neste sentido que Simonetti (2004) diz que o objetivo da psicologia hospitalar é a subjetividade. Em ambiente hospitalar, o sujeito se encontra com uma doença (real no corpo) que abala sua subjetividade, diante disso o psicólogo lhe oferece a escuta de modo que o paciente possa falar do que quiser – da doença, da morte, do que lhe angustia. "A psicologia está interessada mesmo em dar voz à subjetividade do paciente, restituindo-lhe o lugar de sujeito que a medicina lhe afasta" (Simonetti, 2004, p. 19). Segundo o autor o trabalho do psicólogo no hospital geral consiste em ajudar o paciente a fazer a travessia do adoecimento através de um processo de elaboração simbólica.

Figueiredo (1997), em Vastas Confusões e Atendimentos Imperfeitos, afirma que a função do analista consiste em criar possibilidades para o exercício da psicanálise. Diante disso, a autora apresenta o que considera como "condições mínimas" para o desenvolvimento da clínica psicanalítica, essas condições são importantes para o trabalho do psicanalista em ambiente hospitalar. A primeira condição é a chamada realidade psíquica, campo de onde o psicanalista pode trabalhar. Para a autora:

A realidade psíquica não se reduz ao ego, embora o inclua, do mesmo modo que inclui o sintoma. Sua fonte primária é o inconsciente, e não há que se conceber nada de profundo ou submerso nessa realidade. Tudo se passa na superfície, na emergência da fala a que temos acesso e à qual, de algum modo, respondemos. É na própria palavra do sujeito que começa o trabalho clínico. Ao tratarmos do sofrimento psíquico só podemos fazê-lo pelo que aparece dessa realidade em palavras e ações prenhes de sentido (Figueiredo, 1997, p. 124).

Como segunda condição para o desenvolvimento da psicanálise em outros contextos, a autora apresenta o conceito de transferência; já como terceira condição para uma psicanálise possível em instituição, a autora apresenta "uma certa concepção de tempo que é mola-mestra da interpretação", tempo não linear, que é avaliado a posteriori. Desse modo, as intervenções do analista só poderão ser verificadas em um tempo posterior, da mesma forma que o analisando tem seu próprio tempo de elaboração (Figueiredo, 1997, p. 125).

Acerca da transferência em contexto hospitalar, Carvalho e Couto (2011) afirmam que o vínculo transferencial em seu primeiro momento não é dirigido somente à figura do analista, visto que esse vínculo pode estar direcionado à instituição ou a outro lugar, seja a outro profissional de saúde, ao serviço de psicologia etc. De acordo com os autores, é muito importante compreender como a relação transferencial opera em instituição hospitalar, ou seja, fora do setting terapêutico, visto que a transferência é de fundamental importância para uma intervenção analítica; nesse contexto "(...) se o analista é bem-sucedido no estabelecimento de pelo menos um pouco de transferência, ele pode criar as condições para que, ali, um trabalho em psicanálise seja possível" (Carvalho & Couto, 2011, p. 128).

Como foi exposto, atuar em ambiente hospitalar não é tarefa fácil para o psicólogo, porém cabe a esse organizar seu trabalho e manter sua ética diante das solicitações e impasses que surgem neste contexto. Abaixo segue uma discussão de dois casos clínicos. Esta discussão se faz importante para uma melhor articulação entre teoria, prática e pesquisa; mostra-se interessante para problematizarmos de como se dão os atendimentos pautados na lógica da exclusão subjetiva.

 

Casos clínicos: O que acontece quando o sujeito emerge?

Na prática do psicólogo em contexto hospitalar é comum o chamado de "urgência". Verificamos que são situações em que o médico e outros profissionais que trabalham no hospital se deparam com um impasse, com uma situação inesperada e de difícil manejo. Aqui ao nos referirmos a uma "Urgência Subjetiva", situação que é desencadeada diante da impossibilidade de um sujeito "dar sentido a algo, algo que é o encontro com um real que não se deixa significar". Na urgência subjetiva o sujeito impossibilitado de colocar seu sofrimento em palavras ou imagens age. Diante disso, no hospital geral temos pacientes que se recusam a tomar seu medicamento no horário, desiste de fazer um procedimento médico importante, etc.

Pretendemos tematizar o modo pelo qual a medicina científica e suas práticas em contexto hospitalar deixam de fora algo da subjetividade do paciente. Essa "sobra", de alguma maneira (ainda bem!), sempre retorna e requer tratamento. Quando falamos em exclusão da subjetividade ou do sujeito, referimo-nos à exclusão não do paciente ou da pessoa adoentada, nos referimos à foraclusão do sujeito do inconsciente; exclusão essa que acaba gerando problemas e de alguma forma interfere no sucesso do tratamento terapêutico. É quando o que não foi excluído retorna que o profissional 'psi' consegue trabalhar. Diante desses casos o trabalho em ambiente hospitalar é mais que possível, é necessário (Filho, 2011)

Discutiremos dois casos clínicos acompanhados por uma equipe de residência multiprofissional em saúde e por equipe de residentes de medicina e médicos do Hospital Universitário de Sergipe. Embora haja pontos de contato entre ambas as equipes, a equipe médica tende tradicionalmente a trabalhar de forma mais isolada e unilateral nesse hospital.

A equipe multiprofissional, referida neste artigo, é composta por uma psicóloga, uma nutricionista, uma fisioterapeuta, uma assistente social, uma farmacêutica e duas enfermeiras, todas profissionais residentes do HU. A equipe médica é composta por médicos residentes, de várias especialidades, bem como tutores e preceptores médicos efetivos da instituição. A equipe multiprofissional atuou de forma integrada e transdisciplinar nos dois casos a serem discutidos, cujo resultado é fruto do debate coletivo que teve lugar.

Os casos a serem discutidos demonstram a dificuldade da medicina em lidar com o sujeito do inconsciente, em lidar com essa "sobra" que retorna. Mostraremos como é a postura do profissional 'psi' nestes casos, ou seja, "e o que eu pretendo enfocar diz respeito à relevância da Psicanálise e dos psicanalistas como 'guardiões' do sujeito do inconsciente e de sua fala" (Filho, 2011, p. 57).

Primeiro caso: Fernando não quer permanecer no hospital geral, e agora?

Fernando, nome fictício, 70 anos, foi internado na Clínica Médica II do Hospital Universitário de Sergipe (HU-SE) com diagnóstico de Leishmaniose. O pedido de acompanhamento do paciente partiu da Assistente Social da equipe de residência multiprofissional. A Residência Multiprofissional em Saúde do Adulto e Idoso do Hospital Universitário de Sergipe (HU-UFS) é uma modalidade de Pós-graduação lato sensu caracterizada pela formação em serviço, supervisionada por profissionais capacitados (preceptoria e tutoria), em regime de dedicação exclusiva, com atividades desenvolvidas no HU-UFS. É composta por sete profissionais - Psicólogo, Assistente Social, Fisioterapeuta, Farmacêutico, Enfermeiro, Nutricionista e Odontólogo - e tem duração de dois anos. Era visível que os médicos estavam preocupados e incomodados. Preocupados porque o paciente se recusava a ficar na enfermaria e desejava ir embora, e incomodados por que a doença do paciente tinha tratamento e cura, bastava apenas ele "querer ficar".

No período em que Fernando foi internado existia um projeto do Ministério da Saúde chamado LV Brasil para tratamento da Leishmaniose. Dessa forma, pacientes com suspeita de leishmaniose eram encaminhados para esse programa, onde o médico faria todos os exames que são específicos para detectar a doença, caso o diagnóstico fosse positivo haveria o pedido do medicamento (Anfotericina B Lipossomal) – liberado unicamente pelo Ministério da Saúde em Brasília. O pedido do medicamento é feito de forma criteriosa e um pouco demorada, visto que é preciso preencher um formulário extenso com os dados do hospital, dados do paciente, dados do médico responsável etc. Após o preenchimento do formulário pelo médico, o farmacêutico entra em contato por e-mail e telefone com o Ministério da Saúde solicitando a liberação do medicamento. O pedido é feito para cada paciente de forma individual e criteriosa, a liberação da quantidade das doses demora em torno de dois a três dias depois do pedido; a quantidade das doses é avaliada com base na descrição do caso clínico feito pelo médico.

Fernando se recusava a esperar por todo esse protocolo, segundo o mesmo, ele "não estava fazendo nada e não iria esperar" o medicamento em ambiente hospitalar, queria aguardar em casa. Para conter o paciente, o médico que o acompanhava pediu que lhe aplicasse um soro como placebo, para que ele ficasse no hospital "sendo medicalizado", o que não demorou para que o mesmo descobrisse e pedisse que tirassem o soro, porque se não tirassem ele mesmo arrancaria do próprio braço. Os filhos foram chamados para convencer o pai a ficar, o que não adiantou muito, ele não queria ficar.

A Psicologia foi chamada para "tentar convencer" o paciente a ficar e aguardar o medicamento, como manda o protocolo. Ao ouvir o paciente, percebeu-se que este estava consciente e orientado, sabia que não queria aguardar o medicamento no hospital e sim em casa, quando tivesse o medicamento ele faria tudo como mandava o protocolo. No atendimento psicológico procurou-se avaliar se o paciente compreendia seu quadro clínico e se entendia qual o procedimento médico diante dos casos de leishmaniose. Ele mostrou compreender tudo o que lhe era dito sobre como operam os médicos no HU a respeito de seu quadro, porém não aceitava e não queria ficar. "Eu quero costurar minha rede de pescar, quero fazer o tratamento, mas não suporto ficar aqui esperando pelo medicamento".

Diante disso, a psicóloga que o acompanhava se posicionou de outro lugar, na medida em que procurou respeitar a decisão do paciente, apenas procurando escutá-lo, e de forma alguma tentou convencê-lo a ficar internado. Também foi conversado com seus familiares para que eles também respeitassem a decisão do paciente em querer ir embora, visto que a família, também desesperada, tentava convencer o paciente através de ameaças, para que ficasse internado aguardando o tratamento.

Foi conversado com o médico responsável pelo caso, junto com a Assistente Social da equipe multiprofissional, expondo o desejo do paciente de aguardar em casa e só voltar ao hospital quando o medicamento chegasse de Brasília. Como equipe multiprofissional, tentamos chegar a um acordo, buscando sempre o melhor para o paciente. A maioria dos membros da equipe Multiprofissional em Saúde do Hospital Universitário tenta atuar com uma lógica diferenciada, privilegiando a subjetividade e intervindo junto à equipe médica do Hospital para um melhor encaminhamento dos casos clínicos. Diante disso, as perguntas que fizemos foram: O que poderíamos fazer, enquanto equipe, pelo paciente? Sabemos que para ele seria insuportável aguardar por alguns dias até que o medicamento chegasse, por que não entender que cada caso é um caso e deixar de lado o que manda o protocolo médico?

Porém, diante desse "impasse", dessa situação que fugia ao protocolo médico, não foi feito nada que pudesse respeitar a singularidade e o desejo do paciente. O mesmo foi embora sob os avisos médicos de que "perdeu a vaga" e iria para o final da fila. Assim, não foi possível realizar o pedido do medicamento porque o paciente não aceitou esperar, o protocolo preconiza que o paciente esteja em ambiente hospitalar para a liberação do medicamento. No caso de Fernando, os papéis ainda não tinham sido encaminhados, visto que o paciente se recusou a permanecer no leito em seu primeiro dia de internamento. Aqui a equipe multiprofissional fez o possível para encontrar um meio que pudesse respeitar o desejo do paciente, porém por se tratar de uma clínica de especialidade infectocontagiosa, com critérios mais rígidos e de difícil articulação não foi possível um diálogo eficaz. A clínica médica II do hospital universitário de Sergipe tem características mais rígidas em comparação as outras clínicas do mesmo hospital, percebemos que a equipe médica é menos aberta ao diálogo e às intervenções de outros profissionais não médicos.

Segundo caso: Omar decide não fazer a cirurgia bariátrica, quem pode convencê-lo a não desistir?

Omar, nome fictício, paciente de 33 anos, foi internado na Clínica Cirúrgica I (CCI) do Hospital Universitário de Sergipe (HU-UFS) para realizar cirurgia bariátrica. O paciente era acompanhado pelo ambulatório do programa de cirurgia bariátrica do mesmo hospital e passou por todos os critérios preconizados para realização da cirurgia, como avaliação psicológica, atendimentos com nutricionista, assistente social e enfermeira, bem como participou das palestras oferecidas pelo serviço da bariátrica. Nessas palestras são discutidos vários temas e são esclarecidas várias dúvidas a respeito da cirurgia. O paciente fora admitido na clínica um dia antes do ato cirúrgico, no período da tarde, e estava sendo acompanhado pela esposa.

Os profissionais de enfermagem contam que o paciente não tinha conseguido dormir à noite e que tinha ficado a noite toda caminhando pelo corredor – "parecia ansioso". O pedido de acompanhamento da psicologia partiu da equipe médica que o acompanhava, tamanha foi a surpresa deles ao saber que o paciente se recusava a realizar a cirurgia. Omar estava com medo e no momento decisivo se recusava a passar pelo processo cirúrgico, a questão era: "converse com ele e o acalme, para que ele possa realizar a cirurgia pela qual esperou tanto, visto que da maneira na qual se encontra, não será possível realizar a cirurgia".

Ao conversar com Omar, encontrei um homem cheio de dúvidas e medos – "será que eu preciso mesmo dessa cirurgia?", "você acha que eu sou gordo?", "eu já perdi mais de 10 quilos, será que eu não consigo continuar nesse peso?". Tinha dificuldade de tomar decisões em sua vida e a realização de uma cirurgia tão decisiva e importante como essa o angustiava muito, além do medo de se submeter a um processo cirúrgico do qual tinha muitas dúvidas com relação ao que poderia comer, seus hábitos depois da cirurgia, prós e contras desse tipo de cirurgia etc. Sofria muito na tomada de decisão, visto que a esposa o pressionava para que ele realizasse a cirurgia; ela demonstrava frustração em chegar até ali junto com ele e nesse momento primordial desistir. Segundo a esposa, "ele sempre desiste das coisas". A todo o momento ele perguntava à esposa o que ela achava – o apoio e a fala dela se mostravam de suma importância para ele.

Foi oferecida a escuta para que este paciente pudesse falar sem medos daquilo que lhe angustiava. Assim, a Psicologia pôde oferecer um espaço, contra qualquer forma de "convencimento" para que ele realizasse a cirurgia, mas a favor de ouvi-lo naquilo que mais o fazia sentir mal, e junto com ele chegar a um lugar, que poderia ser favorável ou não ao ato cirúrgico.

Foram convocados os profissionais referência para ele, que o acompanharam durante todo o processo em ambulatório do programa da bariátrica, para uma conversa e intervenção. A conversa com os profissionais que o acompanhavam em ambulatório foi muito boa, foi possível uma troca de informações, além de um planejamento das ações pertinentes para o desfecho do caso. A equipe de referência se mostrou disposta a ajudar e intervir em conjunto com a equipe do internamento, assim foram esclarecidas as dúvidas que ele tinha, informamos também que a decisão do paciente seria respeitada. A esposa também compreendeu que essa era uma decisão muito difícil para Omar. Ao final do percurso, o paciente não realizou a cirurgia, fato que o deixou mais aliviado.

 

Discussão

Os casos clínicos mostram a grande dificuldade que os profissionais de saúde têm em lidar com situações inesperadas, situações em que o que é da ordem da subjetividade aparece. Também podemos perceber que a intervenção analítica incide justamente sobre o que escapa ao saber da ciência, visto que o saber psicanalítico subverte esse discurso e busca introduzir o sujeito que foi excluído para dar consistência ao saber. O que é levado em consideração diz respeito ao que é da ordem do sujeito e de seu gozo, é a partir de cada caso que as soluções podem ser encontradas. "Isto mostra que o sofrimento do paciente não se restringe às coordenadas oferecidas pelo conhecimento orgânico" (Carvalho, 2008, p. 27). Segundo Batista (2011, p. 133-134):

Estes casos "fora do protocolo" médico põem a trabalhar profissionais de todas as áreas de saúde e causam, com frequência, na equipe multidisciplinar um grande incômodo, justamente por revelar que há algo que o discurso médico não contempla e, portanto, não responde. E é deste lugar que o psicanalista é chamado.

Aqui se faz importante uma discussão a respeito das demandas endereçadas ao psicólogo e psicanalista em hospital geral, ou seja, uma reflexão acerca de que lugar ele é chamado (o que os profissionais esperam do psicanalista) e de que lugar ele responde (como ele opera diante da solicitação). Sabemos que o psicanalista é chamado para intervir diante de um impasse qualquer, como vimos nos casos clínicos descritos acima os pedidos são sempre do mesmo jeito: "O paciente diz que quer ir embora, já fizemos de tudo para ele ficar e não tem jeito, mas ele precisa fazer o tratamento" ou "Ele (o paciente) está muito nervoso e está pensando em desistir da cirurgia, você pode ir falar com ele? ".

Segundo Machado e Chatelard (2013), são grandes os desafios para o profissional psicólogo em ambiente hospitalar, visto que neste contexto é preciso colocar à prova a ética da psicanálise e as especificidades de sua clínica. A as autoras relatam que a extensão da psicanálise para outros campos, como o hospital geral, exige do analista responsabilidade ética com sua formação e com a formalização da práxis analítica. Assim, é importante acolher as demandas que lhe foram encaminhadas sem ceder ás suas particularidades. De acordo com nossa experiência em uma equipe multidisciplinar, por meio de discussões de casos clínicos e planejamento em equipe, é possível a construção de um trabalho eficaz, o profissional psicólogo pode expor suas ideias e explicitar como opera o fazer psicanalítico, bem como ouvir o ponto de vista dos demais profissionais. Acreditamos que a disponibilidade do psicanalista em escutar, bem como seu modo de responder às demandas é o que vai demarcar sua práxis no hospital, com isso é possível realizar um trabalho em benefício do paciente internado (Carvalho & Couto, 2008).

De acordo com Carvalho (2008), com relação às demandas endereçadas ao analista é preciso que ele reflita e faça uma distinção entre o saber que lhe é reservado – isto é, aquilo que espera que ele faça – e de que lugar que ele responde. É importante ressaltar que o saber da medicina e o saber da psicanálise se constituem e se organizam de formas diferentes, sendo impossível entrar em comum acordo; diante disso há sempre um mal-entendido entre esses saberes, sendo impossível responder à demanda do médico da maneira na qual foi formulada.

O trabalho do analista nos dois casos clínicos descritos consistiu em dar importância à escuta das pessoas envolvidas na situação (equipe, familiares e paciente) para daí localizar a questão principal. Trabalhar dessa maneira possibilita a abertura para a palavra que muitas vezes são de ordens diferenciadas, o que a equipe médica quer pode ser semelhante ao que a família quer, mas diferente daquilo que o paciente deseja. Não existe uma fórmula para seguir em todos os casos, isso vai depender da posição do analista. Como afirma Carvalho (2008, p. 90): "Porém, mais do que oferecer a escuta, o analista pode criar condições para possibilitar que uma pessoa alcance um primeiríssimo discernimento de sua posição de sujeito em relação ao real".

Verificamos que no caso de Fernando, por mais que a equipe multidisciplinar intervisse e procurasse junto com a equipe médica encontrar uma maneira para um melhor encaminhamento do caso clínico, essa "melhor maneira" não foi possível. O comportamento do paciente foi interpretado como "birra", da ordem do impossível. É importante dizer também que a possibilidade de esperar em casa não foi levada em conta pela maioria dos profissionais, por que o protocolo não admitia.

Uchôa e Camargo Jr. (2010) observaram, por um período de 11 meses, as reuniões da unidade de terapia intensiva pós-cirurgia cardíaca em hospital no Rio de Janeiro. Os resultados apresentaram que as atitudes dos médicos deste hospital, além de seguir os protocolos e estudos científicos também eram baseadas na vivência clínica. Assim, "é plausível afirmar uma dupla racionalidade científica: a clínica e a epidemiológica." (Uchôa & Camargo Jr, 2010, p. 2247). Nas palavras de Guedes et al. (2006):

Embora a biomedicina tente se adequar ao modelo preconizado pela ciência, o médico em sua prática clínica não consegue cumprir este ensejo, pois a subjetividade apresenta-se em vários momentos: na sua experiência, nas interpretações dos exames, ao tomar decisões e julgamentos. (p. 1096).

Ao contrário do que afirmam os estudos supracitados, neste hospital, principalmente na Clínica Médica II, não foi possível uma relativização protocolar, aqui o paciente deveria esperar em ambiente hospitalar e ponto final. Porém, esse não era o desejo do paciente. Como foi dito, ele mostrou compreender todas as informações que lhe foram passadas acerca do protocolo médico para seu caso clínico, sabia e não aceitava a conduta. Cabe ao profissional de saúde aceitar essa decisão com base nas avaliações e compreender que para este sujeito seria insuportável essa espera no hospital. O questionamento que se faz é o que a equipe de saúde poderia fazer pelo paciente ao considerar sua subjetividade. Lamentavelmente, o que podemos perceber do caso é que essa subjetividade não foi levada em consideração.

Já no caso de Omar, percebemos que o paciente sofria uma pressão muito grande da instituição, da esposa e de si mesmo para decidir o mais rápido possível por realizar a ou não cirurgia. Percebemos que a possibilidade de falar sobre o que estava passando por sua cabeça, desde o dia em que deu entrada na clínica, foi muito importante para que ele pudesse elaborar. O paciente sofria e se angustiava por que teria que decidir em um curto espaço de tempo, decisão essa que seria definitiva para o rumo de sua vida. "Fazer ou não fazer? eis a questão". Nesse caso, tanto a equipe da residência multidisciplinar como a equipe de profissionais referência do hospital se mostrou bem aberta para a decisão do paciente, o que favoreceu o trabalho da Psicologia, visto que o paciente não seria punido por uma decisão não favorável ao tratamento médico. Aqui fica evidente o que afirma Carvalho (2008, p. 27): é justamente onde algo escapa à apreensão do saber da ciência que as pessoas vão dar uma solução particular, "é apenas no caso a caso que isso pode ser apreendido".

O que podemos perceber nos casos clínicos é que nem sempre a intervenção do analista vai ao encontro da proposta médica. Isso acontece porque a função do analista não consiste em tornar possível o procedimento médico. Ao trabalhar com a palavra e abrir um espaço para que a palavra possa ser ouvida, o psicanalista possibilita uma operação no campo do sujeito. Dessa forma, não se trata de o paciente adaptar-se ao desejo dos profissionais de saúde nem do que pedem os familiares, ele mesmo fará suas escolhas e terá de responsabilizar-se por elas (Carvalho, 2008).

 

Considerações finais

Este estudo traz uma discussão importante para os profissionais que trabalham em ambiente hospitalar, a saber: a exclusão do sujeito das práticas médicas neste contexto. Diante disso, uma das maiores contribuições da psicanálise em hospital geral é lembrar à medicina que os pacientes ali internados não se reduzem a meros objetos para intervenção clínica, mas são sujeitos com toda a implicação que esse termo comporta em psicanálise, sujeito do inconsciente, sujeito do desejo.

De acordo com a experiência relatada, a relativização de pontos de vistas fixos, em ambiente hospitalar, é possível através do diálogo e da discussão dos casos clínicos atendidos, mesmo que a instituição não ofereça este espaço, encontrar um espaço no hospital, como o "corredor", para conversar sobre os casos em comum. Acreditamos e a experiência no HU comprova, que por meio da abertura ao diálogo e da escuta é possível construir um trabalho em favor dos pacientes internados.

Pudemos perceber que a inserção do psicanalista em ambiente hospitalar, bem como seu trabalho em um lugar marcado pelo saber da medicina, não se constitui como tarefa fácil, visto que as demandas que lhe chegam são na maioria das vezes contrárias à sua ética. Porém, cabe ao analista não distorcer os princípios da psicanálise e atuar de forma com que a singularidade sempre possa aparecer, visto que a clínica psicanalítica procede da experiência da singularidade e o saber com que ela opera é o saber do próprio sujeito.

O que fica visível é que por mais que a medicina tente excluir o sujeito das suas práticas, mesmo que sua ética e intervenção estejam pautadas na cientificidade, determinada por protocolos e guiado pela Medicina Baseada em Evidências, é impossível excluir a subjetividade do paciente internado; sempre ocorrerá uma brecha e esse sujeito não poderá ser excluído completamente. Diante disso, ainda bem que algo da singularidade retorna e insiste.

Acreditamos que este estudo possa contribuir com as discussões sobre a necessidade de transformação do paradigma biomédico. Os casos relatados mostram o alto grau de subjetividade que envolve a prática médica. Assim, pode-se ajudar outros profissionais em saúde a relativizar suas práticas, levando em consideração suas vivências clínicas e também a subjetividade dos pacientes internados.

 

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Endereço para correspondência

Gicelma Barreto Nascimento
E-mail: gicebarreto@gmail.com

Recebido: 18/04/2015
1ª revisão: 13/06/2015
Aceito: 14/08/2015

 

 

1 Gicelma Barreto Nascimento é especialista em Saúde do Adulto e Idoso pelo Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde do Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe.
2 Rogério da Silva Paes Henriques é professor adjunto do Departamento de Psicologia e do Núcleo de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe.

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