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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2016

 

ARTIGOS

 

Violência sexual e gravidez: percepções e sentimentos das vítimas

 

Sexual violence and pregnancy: perceptions and feelings of the victims

 

La violencia sexual y el embarazo: las percepciones y los sentimientos de las víctimas

 

 

Mykaella Cristina Antunes Nunes1; Normanda Araujo de Morais2

Universidade de Fortaleza, Fortaleza-CE, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo teve como objetivo investigar as percepções e os sentimentos de mulheres que engravidaram em decorrência de estupro. Adotou-se um delineamento de estudo de casos múltiplos com entrevista semiestruturada, tendo sido entrevistadas três participantes com idades entre 20 e 31 anos, oriundas de um hospital-maternidade da cidade de Fortaleza-CE. As percepções e os sentimentos das mulheres acerca da violência e da gravidez se mostraram vivos e intensos, misturando-se representações de culpa e de pavor com sentimentos de vergonha, raiva, medo, desespero e nojo. Dentre tantos pensamentos e sentimentos, a equipe multiprofissional destacou-se como apoio fundamental, influenciando novos sentidos de vida por parte das mulheres, que embora marcadas pela experiência seguem adiante.

Palavras-chave: Violência Sexual; Gravidez; Mulher; Violência; Estupro.


ABSTRACT

The study aimed to investigate perceptions and feelings of women who became pregnant as a result of rape on sexual violence and pregnancy. Multiple cases design was adopted, with semi-structured interviews. Three participants aged between 20 and 31 years were interviewed, recruited from a maternity hospital in the city of Fortaleza. The perceptions and feelings of women about violence and pregnancy proved lively and intense, blending representations of guilt and fear with feelings of shame, anger, despair and disgust. Among many thoughts and feelings, the multidisciplinary team stood out as key support, influencing new meanings of life for women who were marked by the experience, but were able to move on.

Keywords: Sexual Violence; Pregnancy; Woman; Violence; Rape.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue investigar las percepciones y sentimientos de mujeres que quedaron embarazadas como consecuencia de una violación sobre la violencia sexual y el embarazo. Se adoptó un diseño de estudio de múltiples casos con entrevistas semiestructuradas, fueron entrevistadas tres participantes de edades comprendidas entre los 20 y los 31 años, procedente de una maternidad en la ciudad de Fortaleza. Las percepciones y sentimientos de las mujeres acerca de la violencia y el embarazo se mostraron vivas e intensas, mezclándose representaciones de culpa y pavor con sentimientos de vergüenza, ira, miedo, desesperación y disgusto. Entre muchos pensamientos y sentimientos, el equipo multidisciplinario se destacó como soporte clave, influenciando nuevos significados de vida para las mujeres, que aunque marcadas por esta experiencia, siguen adelante.

Palabras clave: Violencia Sexual; Embarazo; Mujer; Violencia; Violación.


 

 

A Violência Sexual (VS) é um crime universal, clandestino e subnotificado, praticado contra a liberdade sexual de uma pessoa. A designação conceitual do Ministério da Saúde (2012), ancorada na lei 12.015, de 2009, que altera o Código Penal Brasileiro, detalha as condições processuais que modulam tal violência que obriga uma pessoa a manter contato sexual, físico ou verbal, ou a participar de outras relações sexuais com uso da força ou intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou qualquer outro mecanismo que anule ou limite a vontade pessoal. Considerase também como violência sexual o fato de o agressor ou agressora obrigar a vítima a realizar alguns desses atos com terceiros. Dentre as violências sexuais, o estupro é o mais praticado contra as mulheres, significando "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso" (Ministério da Saúde, 2012, p.27), podendo ser cometido contra mulheres e homens, a partir de reformulação da Lei nº 12.015 de 2009 (Ministério da Saúde, 2012; Oliveira et al., 2005; Oshikata, Bedone, & Faúndes, 2005).

Atos sexualmente violentos podem ocorrer em diferentes circunstâncias e cenários, afetando pessoas de ambos os sexos; no entanto, as mulheres em todas as faixas etárias são as maiores vítimas (Faúndes, Rosas, Bedone, & Orozco, 2006). Acerca das principais consequências para a saúde da mulher destacam-se as: psíquicas (ansiedade, fobias, pânico, síndrome do estresse pós-traumático, depressão, distúrbios psíquicos, como tentativa de suicídio e outras alterações psicológicas); sociais (problemas familiares e sociais, como abandono dos estudos, perda de empregos, separações conjugais, abandono de casa, prostituição, etc.); e físicas (distúrbios gastrointestinais, inflamações pélvicas crônicas, dores de cabeça, asma, abusos de álcool e outras drogas, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada e outros) (Bedone & Faúndes, 2007; Faundes, Hardy, Osis, & Duarte, 2000; Oliveira et al., 2005; Oshikata et al., 2005). Entre as consequências da violência sexual, a gravidez se destaca pela complexidade das reações psicológicas, sociais e biológicas que determina. A gestação indesejada ou forçada é encarada como uma segunda violência, intolerável para muitas mulheres (Ministério da Saúde, 2012).

A fim de assistir às vítimas de VS, o Ministério da Saúde criou a Norma Técnica (NT) que versa sobre "Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes" (Ministério da Saúde, 2012; Villela & Lago, 2007). Com base nessa NT compete aos serviços de saúde o atendimento de urgência da mulher agredida sexualmente, para atender as suas necessidades imediatas e protegê-las dos riscos de gravidez, ou doenças de transmissão sexual, bem como das consequências psicológicas da violência (Oshikata et al., 2005).

Quando a paciente procura o serviço já sabendo estar grávida em decorrência do estupro, deve receber informações acerca do direito de interrupção da gravidez, conforme Decreto-Lei n.° 2848, de 7 de dezembro de 1940, art. 128, inciso II, do Código Penal Brasileiro, como também deve ser esclarecida da possibilidade de manter a gestação até o seu término, garantindo-se os cuidados pré-natais apropriados para a situação e a assistência nos casos em que a criança for entregue para a adoção (Ministério da Saúde, 2012).

Com relação aos casos de mulheres grávidas resultado de estupro que chegam aos serviços de saúde, tem-se observado que a maioria delas opta por interromper a gestação (Bedone & Faundes, 2007; Higa, Reis, & Lopes, 2007; Mattar et al., 2007). Há várias razões que podem estar associadas ao comportamento de interrupção da gravidez, segundo Drezett et al. (2011), principalmente o repúdio pela gravidez; o vínculo com a violência, a violação do direito da maternidade; e o temor de dano social ou psicológico para a futura criança. Também a intrusão de sensações negativas (lembranças, sensações corporais) no que diz respeito à violência, outros projetos de vida e sentimentos de desesperança e desânimo caso tivessem que continuar a gestaçãoaparecem como os mais citados pelas mulheres investigadas (Nunes, 2014). Apesar desses dados, alguns estudos relatam a existência de experiências de continuidade da gestação advinda de estupro, sendo abordadas vivências positivas da maternidade. Nesses casos, a violência sexual é deslocada para dar ênfase ao papel de mãe, trazendo novos sentidos de vida que prometem ser voltados para o bebê (Cantelmo, Cavalcante, & Costa 2011; Lordello & Costa, 2014; Nunes, 2014; Santos, 2012).

Considerando as significativas repercussões emocionais às vítimas no que se refere à violência sexual e à gravidez, este estudo teve como objetivo investigar as percepções e os sentimentos de mulheres que engravidaram em decorrência de estupro, tanto com relação à violência sofrida quanto à gravidez, antes e após o desfecho da gestação (interrupção ou continuidade). Sabe-se da importância do atendimento às mulheres vítimas de violência sexual nos serviços de saúde pelos motivos já apontados, no entanto há ainda a necessidade de maior compreensão dessas experiências por parte dos profissionais que realizam os cuidados de saúde para que possam melhorar a qualidade de seus atendimentos às mulheres.

 

Método

Este estudo teve um delineamento de estudo de casos múltiplos, uma vez que investiga um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de vida real. Além disso, a opção por essa forma de estudo deve-se ao fato de que estes estudos são percebidos como mais consistentes na compreensão de fenômenos complexos (Yin, 2010).

Os sujeitos desta pesquisa foram três mulheres com idades entre 20 e 31 anos que engravidaram como resultado de um estupro e que deram entrada para assistência em saúde num hospital-maternidade da cidade de Fortaleza-CE. O referido hospital conta com o Serviço de Atenção à Mulher Vítima de Violência Sexual e Doméstica, no qual as participantes foram localizadas.

Utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada, especialmente elaborado para esse estudo. Os aspectos investigados nas entrevistas diziam respeito às percepções e aos sentimentos com relação à violência sexual e à gravidez. Foram realizadas no total cinco entrevistas com as participantes, sendo as suas falas representadas por nomes fictícios acompanhado da identificação da entrevista (um, dois, única), da seguinte forma: Ana-E1, Ana-E2, Bruna-EUn, Clara-E1 e Clara- E2. Também foram utilizados dados documentais disponibilizadas pelo hospital que diziam respeito ao atendimento da vítima.

Sobre os critérios de inclusão e exclusão para a escolha das participantes adotouse que somente as mulheres com idade mínima de 18 anos completos participariam da coleta, sendo excluídas as crianças e as adolescentes (12 anos completos até 18 anos incompletos, Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA) em razão de questões éticas diferenciadas para menores de 18 anos. Também se estabeleceu que inicialmente seriam feitas duas entrevistas em momentos diferentes intercalados por 30 dias, considerandose que não podia ser de imediato à alta hospitalar - visto o restabelecimento da mulher – nem tampouco demorar demais, em virtude das dificuldades de localizar as participantes novamente. No entanto, em decorrência da reduzida chegada de mulheres grávidas (resultado de estupro) ao serviço hospitalar e do tempo limitado para a realização da pesquisa de Mestrado da primeira autora, convencionou-se que seriam contatadas mulheres que já haviam passado pelo serviço, como foi o caso de Bruna.

Desta forma, foram entrevistadas três mulheres (Ana, Bruna e Clara). Enquanto Ana teve como desfecho a continuidade da gestação, após a negação do pedido de interrupção devido o seu período gestacional, Bruna e Carla tiveram como desfecho a interrupção da gestação. Em dois casos (Ana e Clara) foram realizadas duas entrevistas. Estas se deram num primeiro momento, no hospital-maternidade já mencionado; e num segundo momento, após o desfecho, as participantes puderam ser entrevistadas em local de sua preferência. Em um caso (Bruna) houve entrevista única, em virtude da participante já ter passado pelo hospital e por escolha da mesma a entrevista aconteceu no próprio hospital, tendo sido entrevistada cinco meses após a admissão no serviço hospitalar. Quanto à duração das entrevistas variaram entre 20 e 40 minutos, tendo sido todas gravadas e transcritas na íntegra.

Para análise das entrevistas foi utilizado o método da análise da temática seguindo o modelo proposto por Bardin (1995), que consiste, operacionalmente, nas seguintes etapas: Leitura flutuante (pré-análise), Análise temática e Tratamento dos resultados.

A pesquisa atendeu às recomendações bioéticas para pesquisas com seres humanos no que diz respeito à Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). As participantes foram informadas sobre os princípios bioéticos, também sobre os objetivos e procedimentos do estudo quando convidadas para participar voluntariamente da pesquisa, tendo assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. O presente trabalho foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza – UNIFOR e recebeu aprovação (Parecer nº 625.809 de 25.04.2014), assim como do hospital pesquisado (Parecer nº 2310094836735/2013).

 

Resultados e Discussão

A partir da análise das entrevistas foram identificados nove eixos temáticos, que tratam das percepções e sentimentos das mulheres que engravidaram em decorrência de estupro sobre a violência sexual e gravidez, sendo: 1) A violência sofrida; 2) Um misto de vergonha, raiva, medo, desespero e nojo; 3) A culpa; 4) "Um monstro, uma coisa"; 5) O silêncio acerca da violência sexual sofrida; 6) O apoio da família e dos profissionais de saúde; 7) A certeza da decisão tomada; 8) Sobre a interrupção: uma experiência de alívio; e, 9) Vidas marcadas que seguem.

A violência sofrida

Sobre a vivência da VS, nos três casos foi perpetrada por pessoa do sexo masculino, tendo agido em parceria em um caso (por pessoa conhecida) e sozinho em dois casos (por pessoa desconhecida). O agressor utilizou-se de ameaça e de arma para intimidar a vítima e realizou o abuso sexual em local afastado do movimento urbano, em horário noturno quando as mulheres realizavam alguma de suas atividades. A seguir os relatos que ilustram tais aspectos:

Eu tava chegando do trabalho [...] Aí eles mandaram eu subir na moto, aí eu subi, aí eles me levaram pra uma casa. Um lugar mais distante. Aí depois que acabou eles me trouxeram de volta e me ameaçaram, ameaçaram minha família se eu contasse pra alguém (Ana-E1).

Eu tava... saindo da igreja... já bem perto da minha casa... tava escuro. Tem um matagal lá perto e eu só senti quando uma mão me puxou, me pegou pelo braço, e quando eu virei pra olhar, eu vi a arma, eu senti a arma em mim... e... e ele disse pra que eu não gritasse, ele mandou "Não grita, senão eu te mato"... E quando eu tava lá ele... E abusou de mim [...] (Clara-E1).

Estudos apontam que a força física e a ameaça tratam-se das principais formas de agressão utilizadas pela maior parte dos agressores como forma de intimidação (Blake, 2015; Gomes, Falbo Neto, Viana, & Silva, 2006). Também que a ameaça é um dos principais fatores para a manutenção do silêncio e da não realização dos procedimentos legais que poderiam determinar a punição ao agressor (Blake, 2015; Bedone & Faúndes, 2007; Faúndes et al., 2006; Mattar et al., 2007; Oliveira et al., 2005), como se pode observar em um dos relatos: "...e me ameaçaram, ameaçaram minha família se eu contasse pra alguém", comprometendo duas importantes estratégias de enfrentamento e superação da situação que são a revelação e a denúncia em termos legais do caso.

Um misto de vergonha, raiva, medo, desespero e nojo

Os relatos das mulheres continham uma intensidade de sentimentos, que se mostravam vivos e expressivos, aproximando-se da experiência passada da violência sofrida. Diziam respeito a sentimentos de vergonha, raiva, medo, desespero e nojo que se misturavam com pensamentos sobre a violência e sobre a gravidez ao relatar passagens da experiência:

Eu tenho vergonha de tudo que aconteceu [...] Eu me sinto horrível. Eu me sinto mal com tudo [sobre a VS]. Eu tô carregando uma vida que eu não sinto nada por ela. Que até tem momentos que eu chego até a ter raiva. Eu me sinto mal por não gostar dela [sobre a gravidez]. Eu sinto uma grande vontade de morrer. Era tudo que eu queria nesse momento (Ana-E1).

Aí ele fez o que ele quis fazer e eu por medo deixei. [...] Quando eu cheguei lá eu tomei banho. Chorei muito. Respirei e aí eu me limpei. [...] Eu tinha muita vontade de morrer. Eu queria morrer. Muito, muita vontade de morrer. Muito nojo. De tomar banho eu sentia muito nojo. De me tocar, de... Era assim uma coisa assim que parecia que eu tava assim sempre muito suja. Muito suja [sobre a VS]. Um desespero. A primeira coisa assim foi o desespero. O desespero assim de, de, assim, de não querer, de não querer de jeito nenhum e agora o quê que eu ia fazer, que eu não queria [...] Eu sentia nojo. Eu não queria de jeito nenhum. De jeito nenhum. Nunca quis [sobre a gravidez] (Bruna-EUn).

Percebe-se com base nos relatos a intensidade de sensações disfuncionais vividas pelas duas mulheres, permeadas por vergonha, raiva, medo, nojo, entre outras, que se ampliam com o diagnóstico da gravidez e despertam reações ainda mais prejudiciais, como a vontade de morrer. Tais efeitos na esfera emocional são conhecidos em se tratando de ocorrência de violência sexual na vida das vítimas. Em geral, a vítima apresenta-se fragilizada, sente vergonha, culpa, raiva, medo, podendo desenvolver quadros mais severos como de ansiedade, depressão, transtornos do sono, transtorno de estresse pós-traumático, dificuldade de estabelecer relações interpessoais tendendo ao isolamento social e alto risco para o consumo de álcool e drogas, entre outros (Cantelmo et al., 2011; Faria, Araújo, & Baptista, 2008; Lordello & Costa, 2014; Machado, Fernandes, Osis, & Makuch, 2015; Vertamatti et al., 2009). Quanto à gravidez, para muitas mulheres configura-se como uma situação inimaginável e inesperada dentre as consequências possíveis da violência sexual e quando acontece desperta sentimentos de desespero e angústia (Machado et. al., 2015), conforme mostrado nos relatos acima.

"Um monstro, uma coisa"

As participantes retrataram percepções e sentimentos negativos quanto à gestação e ao ser que estava sendo gestado, referindo-se à criança como um "monstro ou uma coisa" que se associava à experiência da violência sofrida e à lembrança do agressor. A impossibilidade de se vincular de outra forma com a criança, que não fosse a permeada por desprezo, nojo e mal-estar, também foi apontada nas falas das participantes. Tais aspectos corroboram os motivos apontados por Drezett et al. (2011) quando justifica a opção pela interrupção da gestação em mulheres que sofreram violência sexual. Nesse caso, a gravidez é percebida com repúdio e como uma grave violação ao direito da mulher em escolher o momento da maternidade:

Então, quando eu senti que eu tinha assim uma coisa. Eu sei que é uma criança. Eu sei que era um ser, mas eu sempre senti como se fosse uma coisa. Uma coisa dentro de mim. Uma coisa ruim, uma coisa podre, uma coisa que fedia, sabe? [...] Então quando soube que eu tinha essa criança ai. Eu sentia assim aquela coisa ruim. Como se fosse um, Deus que me perdoe, mas um monstro. (Bruna-EUn).

[...] Além disso ter o pensamento de que eu estava gerando, gestando uma coisa que eu não queria, fruto daquele dia, daquela... daquele momento terrível, que foi absolutamente ruim [...] (Clara-E1).

Os relatos sugerem que a escolha pelo aborto está muito relacionada à violência sexual e que para essas mulheres não é possível emocionalmente tratar gravidez e violência como elementos isolados. Assim, manter a gravidez pode significar a continuidade da violência e a impossibilidade de sua superação (Drezett et al., 2011).

A Culpa

Os relatos evidenciam aspectos corriqueiros na dinâmica da violência, como o pensamento da vítima de que a violência aconteceu por culpa dela, pela vestimenta usada no dia do ato ou por outro sinal que possa ter atraído o agressor. As vivências de situações abusivas podem suscitar nas vítimas o desenvolvimento de crenças distorcidas, tais como a percepção de que são culpadas pelo ocorrido, tratando-se de um mito muito frequente (Duarte & Arboleda, 2004), conforme ilustra o relato:

Antes eu pensava assim que era por minha causa, por ter demonstrado medo, por ter demonstrado fraqueza, certo. Até mesmo por ter andado, ter no dia que eu tava de saia, né, que é uma roupa justa né. [...] Aí no início eu me julgava muito que tinha acontecido muito pelos meus modos, certo (Bruna-EUn).

Como se pode verificar no relato acima, a vítima atribui a si mesma e aos "seus modos" a responsabilidade e culpa pela violência sofrida. Tais crenças fazem eco às representações sobre gênero que vigoram em nossa sociedade, as quais tendem a responsabilizar a mulher como provocadora/culpada pela violência sexual, em vista de algum comportamento ou atitude classificada como imprópria da sua parte (Machado et al., 2015). Dessa forma, negligenciam-se os aspectos sociais e culturais mais amplos (ideologia patriarcal) os quais estão estritamente relacionados à violência de gênero, demarcando papeis e relações de poder entre homens e mulheres. Ademais, a culpabilização da vítima é uma parte adicional da cultura patriarcal, da qual o machismo é um subproduto, que está na base da reprodução do ciclo perverso da violência contra a mulher (Cerqueira & Coelho, 2014).

O silêncio acerca da VS sofrida

Também outro aspecto observado se refere ao silêncio em relação à violência sofrida. Dentre as motivações para a manutenção do silêncio estão o sentimento de vergonha pelo ocorrido, o medo quanto a possíveis retaliações por parte do agressor a si e/ou aos entes queridos e o desejo de poupar os familiares do sofrimento ao saber da violência (Moura, Silveira, & Nogueira, 2001).

Não, não sabem [a família] exatamente do que ocorreu, de como foi né... Sabem da gravidez só. Eles sabem da gravidez, eles imaginam que é de um namorado, e eu não quero que eles fiquem sabendo como realmente aconteceu não... Isso já me machucou muito, eu prefiro... se eu pudesse, eu apagaria essa parte da minha vida [...] (Ana-E2).

Eu não contei pra ninguém. Nunca, nunca, nunca e nunca vou contar pra ninguém. Nunca. Tenho muita vergonha. Tenho muita vergonha mesmo. Muita vergonha mesmo. Eu acho que se ninguém souber ninguém vai me julgar [...] Eu prefiro que ninguém saiba. Só a minha mãe. (Bruna-EUn).

Do mesmo modo que os achados desta pesquisa, outros estudos mostram que diante da ocorrência da violência sexual, o desejo em geral das mulheres é de não divulgar a situação sofrida e, com isto, fazer com que o evento seja esquecido (Blake et al., 2015; Machado et al., 2015). Também que muitas delas não teriam revelado a violência sexual se não fosse a gravidez. Nesta pesquisa, em dois casos (Bruna e Clara) a violência foi revelada a um membro da família, após a descoberta da gravidez pela vítima; no outro caso (Ana), a família apenas soube da gravidez, mas não de que esta era decorrente de uma situação de violência.

É importante destacar que em países como o Brasil, nos quais o contexto social é prioritariamente desfavorável ao aborto, o estigma sobre as mulheres que abortam tende a ser maior, aumentando a tendência ao silêncio a respeito desta experiência pelo medo da desaprovação (Machado et al., 2015). Outras razões para a não revelação do abuso sexual são: medo da reação da família ou do parceiro; medo de enfrentar o agressor em tribunal; sentimentos de humilhação, vergonha e culpa por não ter reagido; medo de tratamento desrespeitoso da polícia; medo de ser desacreditada, mesmo em serviços de saúde; medo de que a situação se torne pública e que sejam estigmatizadas; e, medo de uma ameaça de morte por parte do autor, se algo é reportado à polícia (Blake et al., 2015). Desta forma, também o estado emocional comprometido por conta da violência sexual pode estar relacionado ao silêncio em torno da violência e a não procura de ajuda (Machado et al., 2015).

O apoio da família e dos profissionais de saúde

É muito comum a pessoa violentada decidir por não compartilhar a história da violência pelos motivos já mencionados. No que se refere à revelação da violência sexual, uma das mulheres não compartilhou sobre a violência com seus familiares nem com outras pessoas, somente tendo conhecimento do fato os profissionais do hospital. As outras duas contaram sobre a violência apenas para um membro da família, sendo esses a mãe e no outro caso a irmã. Tais informações mostram o quanto é difícil para essas mulheres enfrentarem esta situação, visto todos os pensamentos e sentimentos advindos da experiência. Também acrescidos do silêncio que envolve este acontecimento, que fragiliza ainda mais a busca por ajuda, somente o fazendo em situações extremas, como em situações de gravidez, no ápice do desespero. Da mesma forma que o verificado por Machado et al. (2015), as participantes desse estudo só buscaram ajuda nos serviços de saúde após a descoberta da gravidez, sendo a gestação um fator denunciante da violência sexual.

Quando indagadas sobre possíveis pessoas a contar nesse momento da vida, verificou-se que as mulheres preferiram não incluir tanto a família ou outras pessoas, enfrentando a situação quase que exclusivamente sozinhas, como se pode observar nos relatos a seguir. Segue-se então um período difícil quando, muitas vezes, a usuária busca no profissional de saúde o apoio que não pode contar por parte da família e da sociedade tanto por questões de opção da vítima de não envolver essas pessoas, mas também a fim de evitar possíveis julgamentos, crenças/credos de pessoas externas (Moura et al., 2001).

Ela ajudou, mas só porque eu tentei fazer sozinha e ela viu que tava num desespero muito grande e que ela não ia conseguir me dominar sozinha assim de eu não fazer [...] Aí ela não veio comigo aqui. Mas ela teve todo tempo, ela sabe de toda a história minha mãe (Bruna-EUn).

Só a... quando eu trouxe a minha irmã pedi que ela viesse comigo, mais ninguém. Porque eu sinto vergonha, porque eu sinto muita vergonha. Eu tenho muito medo também... Mas eu sinto muita vergonha disso que aconteceu [...] Eu só contei porque realmente eu não conseguia fazer nada sozinha e eu... não queria vir sozinha aqui aí eu pedi a minha irmã pra vir comigo (Clara-E1).

Cogita-se que o agravo da gravidez e o dilema do aborto possam ser facilitadores da revelação da violência, visto o desespero que a situação provoca, exatamente como ocorreu nos casos de Bruna e Clara. Tal contexto só aumenta a responsabilidade dos profissionais dos serviços para com o cuidado às vítimas. Certamente as atitudes dos profissionais de saúde durante o cuidado poderão tornar a vivência do aborto menos sofrida, traumática e permanente para as mulheres, podendo se configurar como um elemento restaurador da saúde emocional na vida delas (Machado et al., 2015).

A certeza da decisão tomada

Entre as mulheres entrevistadas, as duas mulheres que tiveram como desfecho a interrupção da gestação (Bruna e Clara) mostraram-se convictas de que a escolha feita foi a correta e de que não conseguiriam lidar emocionalmente caso a gestação tivesse continuado, podendo ocasionar severas consequências.

Eu avalio assim que foi o melhor pra mim porque eu nunca quis, não queria, não tinha como um filho, eu tinha como uma coisa, então assim até que Deus me mostre que eu fiz errado eu acho que eu fiz certo. [...] Porque eu sentia repulsa, eu sentia nojo, eu sentia, eu acho que se essa gravidez tivesse ido adiante, se a minha barriga tivesse crescido, se as pessoas tivessem percebido, eu acho que eu não estaria aqui, eu acho que meu desespero seria tamanho que eu hoje não estaria aqui porque eu queria sumir de qualquer jeito e eu acho que eu nunca tentei não, mas se tivesse ido adiante eu acho que eu tinha me matado porque eu não queria de jeito nenhum (Bruna-EUn).

Foi uma decisão pensada. Eu não pensei só a curto prazo [...] Depois que passou a parte do desespero veio realmente a sensação de que era a decisão certa, de que era aquilo que precisava acontecer. Eu não me via numa situação diferente. [...] Porque eu penso que certamente seriam duas vidas estragadas, a minha e a dessa, desse ser porque eu sei que eu nunca iria olhar pra essa pessoa, pra esse ser de um jeito carinhoso, de mãe, de alguém que quer bem [...]. Toda vez quando eu olhasse a sensação que ia me vir, a lembrança que ia estar na minha cabeça não ia sair, só ia estimular aquilo ali. [...] Eu não penso que seria uma coisa boa nem pra mim e nem pra esse ser de jeito nenhum. Pra esse ser eu penso até que seria pior porque ele iria ter que enfrentar um desprezo de alguém que não deveria desprezar, que deveria amar [...] como também de pessoas que pudessem tá ao redor [...] Eu não consigo assim perceber, imaginar que pudesse assim com o tempo passar, melhorar ou as coisas mudar (Clara-E2).

As mulheres entrevistadas se mostraram muito decididas a abortar e satisfeitas pela decisão que tomaram, como se pode observar a partir dos relatos. Também a respeito de Bruna, durante os atendimentos de psicologia no hospital sua decisão manteve-se a mesma, como nos registros: "Está segura de sua decisão pela interrupção da gravidez e ciente de todos os riscos"; "Continua afirmando que a interrupção da gravidez é a melhor opção para ela". Sobre Clara, não foi possível analisar as fichas do seu atendimento, visto que não foram encontradas. Igualmente aos achados de Machado et al. (2015), o aborto apareceu como primeira ideia e única saída para retomarem suas vidas, após a descoberta da gravidez pelas mulheres.

Percebe-se no caso de Bruna que existem aspectos da ordem da emotividade que a fazem inclusive pensar em suicídio se a gestação tivesse continuado. Já Clara dá indícios de mais racionalidade em sua decisão, ponderando possíveis consequências para a futura criança, como o temor de danos psicológicos caso mantivesse a gravidez: "Pra esse ser eu penso até que seria pior porque ele iria ter que enfrentar um desprezo de alguém que não deveria desprezar, que deveria amar [...] como também de pessoas que pudessem tá ao redor". Tais dados corroboram aos achados de Drezett et al. (2011), em que para algumas mulheres há elementos de responsabilidade na decisão de evitar o nascimento em condição ou ambiente que não permita o desenvolvimento sadio e adequado. Em sua pesquisa,mesmo frente ao evidente repúdio à gravidez, mais da metade das entrevistadas manifestou preocupação com o futuro do feto.

Deste modo, contata-se o quanto é intolerável emocionalmente para essas mulheres continuar uma gestação indesejada, visto os aspectos já abordados. No entanto, em um caso (Ana), passada a rejeição inicial à gravidez e bebê, a mesma pôde dar sentidos mais positivos à vivência. No caso de Ana que não pôde interromper a gravidez, pois já se encontrava em idade gestacional avançada, foi identificada atitude e de não responsabilização da criança pelo ocorrido, bem como sensações de vínculo e amor à mesma. Reações diferentes até mesmo de seus pensamentos e sentimentos iniciais quando desejava interromper a gravidez, tendo encontrado outras razões para aceitar a maternidade.

Mas eu vejo que aquela criança, ela não pediu pra estar ali, ela não pediu. Ela não sabe como foi que aconteceu, não foi culpa dela. Aí, agora eu comecei a entender isso. Aí tá sendo mais fácil, pra mim [...] Porque antes eu nem, assim, eu nem imaginava a ideia de criar né... Aí quando é agora que tá crescendo, que fica mexendo na minha barriga, eu fico vendo coisinha de criança... Assim, a gente já começa a descobrir aquele amor que a gente achava que não ia descobrir nunca (Ana-E2).

Ao mesmo tempo em que para as mulheres que interromperam a gravidez, a criança pode representar o retorno da lembrança da violência ou a falta de perspectivas de vida, inclusive com tendência a um suicídio, para a participante que continuou a gestação, a criança passa a ter outro significado, de não ter culpa ou responsabilidade pelo que aconteceu, amenizando a história da violência e dando lugar para o nascimento do vínculo e do amor.

Sobre a interrupção: uma experiência de alívio

Ao invés de pensamentos e sentimentos ambivalentes em relação ao desfecho da gestação, observou-se por parte das mulheres que realizaram o aborto legal o sentimento de alívio vivenciado no momento em que o abortamento se concretizou. Segundo estas, a expulsão do feto simbolizava o livramento dos problemas que iam junto a esse e a sensação de não ter que incluir algo não planejado e não desejado em suas vidas daí por diante.

Aí eu senti uma dor de barriga, uma dor de barriga grande e vontade de ir pro banheiro. Quando eu sentei no sanitário o feto expulsou. Eu senti um alívio tão grande, um alívio tão grande que eu dei descarga. Ali eu vi aquele feto saindo então ali parecia que tinha saído assim um peso de cima de mim. Eu não senti pena alguma daquele feto. Eu não senti vontade nenhuma de pegar ele dali. Eu tinha nojo. Eu dei descarga. Eu não senti culpa nenhuma. Eu não senti culpa nenhuma nem dor na consciência. Dei descarga. Pronto. Parecia que ali na minha cabeça, aquilo dali tinha ido embora junto com meus problemas (Bruna-EUn).

Foi de alegria. Eu senti alegria. Eu senti um alívio, verdadeiramente, tanto que assim que eu acordei do procedimento a primeira coisa que eu falei foi deu tudo certo. Eu lembro que foi a primeira coisa que eu falei, eu tava recobrando da anestesia e eu perguntei assim deu tudo certo pra auxiliar que estava do meu lado. Aí ela deu, deu tudo certo. Então assim realmente é uma sensação de alegria, de alívio de não ter que carregar de não ter que incluir isso na minha vida, assim pra sempre de... Era tudo que eu queria. Era o que eu queria. De verdade (Clara-E2).

Segundo Drezett et al. (2011), apesar de o aborto ser considerado uma experiência emocionalmente difícil para as mulheres, a maioria delas relata forte sentimento de alívio ao término do procedimento, conforme pôde-se verificar também nos relatos das mulheres entrevistadas. Outro estudo apontou que a sensação de alívio pelas mulheres teve início desde a chegada ao serviço de referência, ao saber a possibilidade de interrupção da gravidez através do aborto legal e quando obtida resposta positiva para o procedimento (Machado et al., 2015). Com base nesses aspectos, o abortamento configura-se como a única solução percebida por essas mulheres para resolver o problema da gravidez e para afastar a lembrança da violência sexual. Não foram identificados aspectos que contrariassem o alívio sentidos por elas diante da interrupção da gestação; e, que impactassem emocionalmente suas vidas daí por diante. Pelo contrário, o sentimento de alívio para com a concretização do aborto aparecia como o "fim dos problemas" na vida das mulheres, o que se pode constatar no relato de Bruna: "Parecia que ali na minha cabeça, aquilo dali tinha ido embora junto com meus problemas".

Vidas marcadas que seguem

Apesar dos aspectos negativos da violência sexual e da gravidez como consequência para o desenvolvimento vital das mulheres e de todos os pensamentos e sentimentos mencionados ao longo deste estudo, que marcaram a trajetória dessa experiência, constatou-se que embora as marcas deixadas, as mulheres apontaram posicionamentos que indicam a continuidade da vida com novas possibilidades e projetos.

Assim eu, eu ainda tenho assim, é, não vou dizer que eu ainda não tenho aquela mágoa né... Porque, ainda tá muito recente, um dia eu posso até, chegar o dia que eu posso até perdoar, mas hoje não. [...] Eu tenho muito medo ainda porque eu não tava preparada pra isso, não tinha escolhido isso [a gravidez] agora pra mim. Mas, já aconteceu né... [...] Eu vejo que é uma coisa que eu não posso dizer mais que não aconteceu... aconteceu e eu não posso interferir, vai ... eu acho que aquilo ali vai tá na minha vida pra sempre. Eu achei uma forma mais fácil assim, de aceitar tudo que aconteceu (Ana-E2).

Hoje eu tô bem. Hoje eu tô trabalhando. Na época eu não trabalhava. Hoje eu tô trabalhando. Hoje eu saio, me relaciono com outras pessoas, assim de conviver, de brincar, de sair, de ir pra festa. Relação mesmo de aconchego, de carinho eu não tive, eu não quero. [...] Eu não sinto vontade ainda de carinho. Eu ainda não sinto essa vontade, mas eu brinco, eu saio com amigos. Eu tenho plena consciência que tá lá no passado essa história, tá longe (Bruna-EUn).

A experiência de gravidez decorrente de violência sexual é complexa e produz marcas na vida das mulheres. Em estudo realizado por Drezett et al. (2011), as mulheres entrevistadas enfrentaram transtornos nas relações profissionais ou atividades escolares atribuídas por elas principalmente à dificuldade de concentração; experimentaram piora nas relações com a religião e com a sexualidade. No entanto, Machado et al. (2015) destaca que tal sofrimento é compreensível em decorrência da experiência degradante e desumana do estupro e da gravidez forçada, amenizando os sintomas após seis meses da ocorrência e que as respostas emocionais das mulheres diante do aborto induzido legalmente tem sido satisfatórias e adequadas, com melhores resultados do que nos casos em que as mulheres precisam continuar com a gravidez indesejada.

Com base nos achados deste estudo destaca-se que as marcas são reflexos da experiência vivida e que nos casos de aborto induzido legalmente e de gestação continuada pela impossibilidade da interrupção não se descartam as possibilidades de ressignificações positivas diante das ocorrências negativas da violência e da gravidez. Há mais fatores interferentes na mudança de pensamentos e sentimentos por parte das vítimas, que se sobressaem à ocorrência da violência e da gravidez, como a influência da família e das equipes multiprofissionais que muito tem a contribuir no restabelecimento emocional das mulheres, amenizando o impacto inicial dos acontecimentos.

 

Considerações finais

O estudo em questão buscou investigar as percepções e os sentimentos das mulheres que engravidaram decorrente de estupro quanto à VS e à gravidez. Entre as mulheres entrevistadas duas tiveram como desfecho a interrupção da gestação e uma a continuidade da gestação, estando as percepções e os sentimentos atrelados ao momento que antecede e sucede ao desfecho da gestação.

As percepções e os sentimentos das mulheres se misturaram muitas vezes durante os relatos, dada a forte experiência da violência e da gravidez decorrente desta. Foram identificadas representações de culpa em relação à violência, bem como da gravidez/criança como "uma coisa que fedia", "uma coisa ruim", "um monstro". Também foram citados sentimentos de vergonha, raiva, medo, desespero e nojo em relação à violência e à gravidez.

Após o desfecho da gestação, as mulheres apresentaram novas percepções e sentimentos. No caso da participante que teve como desfecho a continuidade da gestação, o pensamento de que a criança não teve culpa do que aconteceu e o desenvolvimento da relação materna com a criança. Já em relação às participantes que interromperam a gestação, o desejo de reconstruir a vida, engatar novos projetos e o alívio pelo desfecho tido.

A importância deste artigo é ampliar a compreensão acerca das percepções e dos sentimentos de mulheres vítimas de VS, muitas vezes incompreendidas em suas vivências e tantas vezes julgadas em suas decisões pelos profissionais da rede de atenção. No geral, verificou-se que a gravidez decorrente de estupro é uma experiência única para cada mulher, a qual pode ter diferentes desfechos, a depender de uma série de características da vítima, sua família e apoio social recebido. No entanto, independente do desfecho, mostra-se como uma experiência emocionalmente intensa e profundamente mobilizadora, a qual demanda bastante escuta e um atendimento (imediato e de longo prazo) de qualidade a essas mulheres.

Por último ressalta-se o valor da escolha metodológica feita na pesquisa de realizar duas entrevistas com as vítimas, sendo uma antes do desfecho e uma após, uma vez que tornou possível escutar a vítima em momentos diferentes do seu processo de gestação e escolha quanto ao desfecho da mesma. Em contrapartida, destaca-se como limitação do estudo, o fato de em um dos casos não ter acontecido as duas entrevistas, como inicialmente delineado. Neste caso específico não foi possível acompanhar os processos vividos pela participante de uma entrevista para outra, como nas demais. Para pesquisas futuras sugerem-se temáticas voltadas, por exemplo, para a situação de vida das mulheres que engravidaram decorrente de violência sexual após o desfecho; a partir, por exemplo, da realização de estudos longitudinais. Também pesquisas que contemplem especificamente as vivências das adolescentes que engravidaram decorrente de violência sexual; e o desenvolvimento de estratégias de intervenção (e avaliação destas) para esse público.

 

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Endereço para correspondência
Mykaella Cristina Antunes Nunes
E-mail: mykaellanunes@hotmail.com

Recebido: 24/01/2016
1º revisão: 11/04/2016
Aceite final: 30/04/2016

 

 

1 Mykaella Cristina Antunes Nunes é mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza.
2 Normanda Araujo de Morais é
doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza.

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