SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17 número2Solidariedade Intergeracional Familiar nas pesquisas brasileiras: revisão integrativa da literaturaPretendentes à adoção de crianças no Brasil: um estudo documental índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2016

 

ARTIGOS

 

A relação da agressividade e do crime nas constituições subjetiva e social

 

The relationship between aggression and crime in subjective and social constitutions

 

La relación de agresión y el crimen en las constituciones subjetiva y social

 

 

Joana Panzera de Souza Mello1; Fuad Kyrillos Neto2; Roberto Calazans3; Angela Bucciano do Rosário4

Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei - MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Aborda-se a relação entre crime, sociedade e sujeito, tendo como referência as articulações freudianas. Objetiva-se demonstrar como a noção psicanalítica de estruturação da Civilização, através do Mito do Parricídio e, analogamente, a constituição subjetiva, por intermédio do Complexo de Édipo, revelam o crime como um desejo sumariamente humano e constitutivo. Investiga-se de que forma tais constituições se apresentam na teoria freudiana, esclarecendo os enlaces do sujeito com a sociedade, que geram um Mal-Estar, localizado como uma exigência de ordem pulsional. Conclui-se o manuscrito com a ponderação de que, embora o ato violento desfaça o arranjo social existente, a fundação da cultura exige a identificação e o reconhecimento entre os irmãos como possibilidade de estabelecimento de um laço social fundador da cultura.

Palavras-chave: psicanálise; crime; sujeito; sociedade; agressividade.


ABSTRACT

This paper approaches the relation between crime, society and the subject, taking Freudians theoretical articulations as reference. The aim is to show how the psychoanalytical notion of Civilization's structure, through the Parricide's Myth and, analogously, the subjective constitution, through Oedipus Complex, reveal the crime as a briefly human and constitutive desire. It investigates how such constitutions are introduced in Freudian Theory, enlightening the bond between subject and society, which generates a discomfort as a requirement of the order of drives and instincts. With due consideration, the research concludes that although the violent act undo the existing social arrangement, the culture foundation requires the identification and recognition among brothers as possibility of establishing a social bond founder of culture.

Keywords: psychoanalysis; crime; subject; society; aggressiveness.


RESUMEN

Se abordo la relación entre el crimen, la sociedad y el sujeto, con referencia a las articulaciones teóricas freudianas. Se objetiva demuestrar cómo la noción psicoanalítica de la estructuración de la civilización, y análogamente, la constitución subjetiva por intermedio del complejo de Edipo, revelan el tema del crimen como un deseo humano y sumariamente constitutivo. Se investiga cómo las constituciones se presentan en la teoría freudiana, aclarando los enlaces del sujeto con la sociedad en medio de los deseos y prohibiciones, que genera un Malestar situado como una exigencia de orden pulsional. Se concluye el manuscrito con la ponderación que, aunque el acto violento deshace el contrato social existente, la fundación de la cultura requiere la identificación y el reconocimiento entre los hermanos como posibilidad de establecimiento de un lazo social fundador de la cultura.

Palabras clave: psicoanálisis; crimen; sujeto; sociedad; agresividad.


 

 

O objetivo deste artigo é demonstrar que há uma dupla dimensão do crime na obra freudiana: a primeira, constituinte da sociedade e a segunda, do psiquismo. Freud faz uso de dois mitos para pensar essas duas dimensões: o primeiro, o mito do parricídio, o segundo, a fábula edípica. Fazer essa distinção é importante para a orientação psicanalítica na consideração dos casos de crimes cometidos pelos sujeitos. É importante notar que esses crimes são perpetrados em laço social constituído pela violência, o que não significa que seja ela a única saída para o sujeito no laço social.

Desse modo, este artigo pretende tratar da relação entre crime, sujeito e sociedade, a partir da perspectiva psicanalítica, mais especificamente, a partir de Freud. Para tal, faremos um percurso nos textos freudianos em que a questão do crime é abordada, buscando elucidar de que forma o crime aparece como fundador de uma ordem social na qual o sujeito se encontra. Nesse sentido, entendemos que o mito da Horda Primeva aparece como possibilidade para a ascensão de uma ordem social baseada no Direito e também da constituição subjetiva. Na tentativa de compreender o crime em sua relação com a dimensão subjetiva, investigaremos o papel que a agressividade exerce na constituição psíquica, verificando qual é a relação da agressividade com o crime.

O crime, como uma representação radical de rompimento com a lei, apresenta-se como um pilar da estruturação do Direito, sendo, desta forma, pauta de extrema importância jurídica. Quando nos referimos ao crime como pilar do Direito, compreendemos que este último tem como função social estabelecer direitos e deveres, por meio de leis que ditam ao cidadão o que é proibido e o que é permitido fazer. Um sistema jurídico, conforme assevera Costa (2013), pressupõe coerência e se estrutura a partir de uma ambição de unidade, o que requer uma hierarquia entre as normas que o compõem. Para que se estruturem em sistema, as normas têm de derivar uma das outras, as de escala superior condicionando a forma e conteúdo das de escala inferior, orientando sua interpretação e aplicação, de forma que uma a uma reflitam todo o ordenamento em que se inserem, motivadas por um princípio vital comum (Costa, 2013) A partir do estabelecimento dessas leis, a transgressão de qualquer uma delas apresenta-se como crime.

Para a Psicanálise, o crime representa um ponto de corte real produzido por um sujeito em ato. O sujeito que cometeu um crime convoca, por intermédio desse ato, uma resposta do Direito em relação a seu ser, apesar de muitas vezes não suportar essa convocação. A justiça, baseada nas leis, tomará a decisão de imputar ao sujeito a culpa e a responsabilidade por seus atos. Em alguns casos, essa instituição define-se como incapaz de dar a resposta, convocando, assim, o campo Psi para dar uma resposta acerca da responsabilidade desse sujeito. É a partir dessa convocação que nos propomos a tratar da relação entre a Psicanálise e o Direito, este último como representação máxima e escrita das leis sociais.

Veremos que o interesse da Psicanálise pelo crime, porém, é anterior à sua entrada na cena institucional jurídica. A teoria psicanalítica nos permite elucidar de que forma a estruturação da sociedade e, consequentemente, do sujeito aparece intrínseca à noção do crime. A partir da teorização freudiana do Mito da Horda Primeva, como imagem da origem da civilização baseada em leis, podemos compreender a estruturação psíquica. Esta última analogamente encenada pelo Mito do Complexo de Édipo. O ponto de fusão entre ambas as estruturações faz-se a partir das noções de interdições de desejos e transgressões de leis, que na constituição subjetiva encontram-se internalizadas. Os mitos representam uma história de desejos postos em ato que, em um primeiro momento, na Horda Primeva, inauguram a possibilidade de uma sociedade e que, com isso, impõem proibições para a manutenção de uma suposta ordem social. Os desejos aparecem para o sujeito social como internalizados e inconscientes, remetendo sempre a uma história mitológica realizada em ato que não pode ser repetida. Sobre esse aspecto, Assoun (2014) nos lembra que é por intermédio do saber inconsciente, adquirido sobre e por meio da clínica do sujeito, que Freud se revela detentor de recursos para esclarecer o vínculo social. O crime, como transgressão da lei, apresenta-se, pois, como uma resposta subjetiva frente à inerente tensão entre sujeito de desejo e sociedade de leis. A relação entre Psicanálise e Direito mostra-se mais primordial, no sentido de que o sujeito da psicanálise, sujeito do inconsciente, só pode ser pensado a partir do enlace deste com a interdição.

Desse modo, em um primeiro momento, buscaremos investigar de que forma essas estruturações se apresentam na teoria freudiana, esclarecendo os enlaces do sujeito com a sociedade em meio a desejos e proibições, que geram uma tensão. Essa tensão é abordada por Freud como Mal Estar, localizado como uma exigência de ordem pulsional. Ao tratarmos do crime, como uma possível resposta a essa tensão, nos é de extrema importância localizar como a economia libidinal tem participação primordial na estruturação psíquica. Assim, em um segundo momento, trataremos especificamente das formulações freudianas de pulsão, visando articular este conceito com a noção de agressividade.

 

Mito do parricídio: a constituição psíquica é análoga à constituição da civilização

Freud formula a teoria da Horda Primeva para explicar a constituição da Civilização, demonstrando como, teoricamente, essa constituição é análoga à constituição subjetiva, apontando, como, apesar de serem indissociáveis, essas constituições apresentam-se dissonantes. Assim, a ênfase dessa formulação incide sobre o fato de que há uma tensão intrínseca entre o sujeito e a sociedade que o precede.

As primeiras noções freudianas sobre a estruturação da Civilização aparecem em "Totem e Tabu", de 1913/2006, em que Freud aponta a ideia de um primeiro momento civilizatório original, denominado Horda Primeva. Trata-se de um mito para dar conta de um impossível: a origem das leis. Essa origem seria precedente à instituição totêmica e se estruturaria a partir de um pai tirano que era possuidor de todas as mulheres da horda. Os filhos matam o pai e, nesse ato, a energia hostil contra ele é descarregada. Resta, porém, uma quota de insatisfação, pois nenhum deles, após o parricídio, pôde ocupar o lugar do pai; permanecendo assim a frustração do desejo. A morte do pai foi seguida da ingestão de sua carne, simbolizando a identificação dos filhos com ele. Após o ato, como um sentimento retroativo do amor, surge a culpa, elemento fundador da cultura.

Nesse ponto, ressaltamos a questão que mobiliza a mudança de estruturação da Horda Primeva. O que incide após a morte, para que os filhos possam se organizar de uma nova forma, estabelecendo leis? Ocorre que os filhos, insatisfeitos com a tirania do pai, atuam sobre ele com hostilidade em forma de crime, o parricídio. Hostilidade esta que deriva da insatisfação perante o pai, que representa o talho da satisfação completa dos desejos. Uma questão importante está no fato de que, mesmo após a morte do pai, a insatisfação permanece, e advém o sentimento de culpa, expressão do conflito de ambivalência, "da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou de morte. Esse conflito é atiçado quando os seres humanos defrontam a tarefa de viver juntos" (Freud, 1930/2010, p. 104). Dessa forma, há a necessidade da instauração de uma lei reguladora das relações entre os indivíduos. A lei surge a partir da culpa filial e torna possível a organização social. Essa nova forma de se organizar, a partir de uma lei, inaugura as comunidades totêmicas.

Neste primeiro momento, podemos notar a presença dos elementos essenciais da estruturação da civilização e da própria estruturação psíquica. O crime aparece como fundador de uma nova ordem. Só a partir do parricídio é possível pensar em uma estruturação social, pois, com a morte do pai houve a necessidade e urgência de uma nova estruturação baseada em leis. Desse modo, a lei se instaura a posteriori. Ela ordena os tabus e, portanto, a organização social se configura em uma ordem fraterna.

O que Freud nomeia de desejos ambivalentes são os motores dessa estruturação, que se mostram presentes tanto na instauração da Civilização quanto na constituição psíquica. A questão da ambivalência, em relação ao tabu, remete-nos a um dos fundamentos da constituição subjetiva presente na psicanálise. Ao concebermos o tabu como lei, o desejo de violá-lo se faz presente como fundador do sujeito.

As comunidades totêmicas são representações de como a sociedade começou a se organizar. Nelas, verificamos que a escolha de um totem tem a função de representar a ancestralidade dos indivíduos da tribo, simbolizando, assim, o pai morto. O totem, normalmente erigido na forma de um animal ou estado da natureza, representa um antepassado guardião comum a todos os membros da tribo, sendo respeitado e poupado. O totemismo se manifesta, assim, em uma estrutura religiosa (na conexão dos membros com o ancestral) e também social, na medida em que regula as relações dentro das organizações totêmicas, com base nos tabus. Os tabus são, dessa forma, regras de convivência estabelecidas para salvaguardar do mal a comunidade. Sendo assim, representam leis que, se violadas, acarretam castigos.

Esse ponto mostra-se de extrema importância para compreender a ideia do que representa uma proibição. Segundo Freud (1913/1996), a proibição advém de algo que é comunitariamente desejado. Só a partir do desejo que, para a sociedade, se apresenta como perigo em sua manutenção, é que algo pode ser proibido.

É nessa direção que a importância do mito de Totem e Tabu está na restrição imposta pelo tabu Ao ser considerado uma força estranha, o tabu exige uma supressão do desejo implicado nele. No mito, bem como para a psicanálise, esse desejo é o de destruição do totem, figura simbólica do pai, e o desejo de manter relação sexual com o progenitor do sexo oposto. Na condição de representante da lei, o tabu é estruturante, pois será responsável pela castração simbólica do sujeito.

Acerca das leis totêmicas, a organização totêmica pauta-se em dois tabus principais: o parricídio e o incesto, bem como a ordem social se origina da fratria, ou seja, o pacto social só é firmado após o assassinato do pai, ato que culmina no advento do sentimento de culpa dos filhos. É desse sentimento de culpa filial que se criam dois tabus fundamentais que correspondem, como lembra Freud (1913/1996), aos dois desejos recalcados do complexo de Édipo: o homicídio e o incesto. Tal noção estende-se até nossa sociedade atual. Se, por um lado, o Estado propõe leis para a manutenção social, verificamos que essas leis proíbem algo da essência do humano, ou seja, o que é desejado e inalcançável para o sujeito dentro daquele ordenamento social, colocando-o sempre em uma posição conflituosa entre seus próprios interesses e os interesses coletivos. É através desse conflito que se estrutura o aparelho psíquico. É importante frisar que há sempre ambivalência advinda da tensão entre o sujeito e a sociedade. Freud admite, então, a respeito desses sentimentos ambivalentes, uma tendência ou impulso de morte.

Neste caso deveríamos dar ainda mais importância à nossa tese de que onde existe uma proibição tem de haver um desejo subjacente. Teríamos de supor que o impulso a matar acha-se realmente presente no inconsciente e que nem os tabus e nem as proibições morais são psicologicamente supérfluos, mas, pelo contrário, explicam-se e justificam-se pela existência de uma atitude ambivalente para com o impulso de matar (Freud, 1913/2006, p. 92).

Justifica-se, dessa forma, que os sacrifícios realizados no âmbito das civilizações totêmicas prestavam-se a expiar a culpa e a rememorar o ato do parricídio, dando vazão aos desejos ambivalentes. Se, na civilização totêmica, o totem ergue-se no lugar do pai morto, observamos que tal representatividade permanece existindo nas civilizações posteriores com a ideia de um Deus ao qual o homem é semelhante.

É nesse sentido que o totem pode ser considerado como a representação das leis, da estrutura social, e o tabu, a internalização dessas leis. Leis que ocupam lugar transcendental e que, segundo Freud (1913/1996), evoluem do representante paterno abandonado, em favor do conceito superior de Deus. Mas a criação de um Deus ou de um ideal coletivo não impede que o singular pulsional resista aos ideais do grupo.

Nesse ponto, é importante ressaltar as consequências que a lei do totem acarretava ao se transgredir os tabus. Acerca da aplicação da sanção pela transgressão do tabu, o castigo era, primeiramente, atribuído ao próprio tabu, como que naturalmente emanado por ele; posteriormente, aos deuses que representavam esse tabu; e em comunidades totêmicas ulteriores. Tal punição começara a ser aplicada pelos próprios indivíduos da comunidade, sendo considerada por Freud como um primeiro sistema penal. Assim, podemos interpretar o castigo social como representando a satisfação de uma quota de energia hostil social para com o transgressor, no sentido de que, também nos outros membros da comunidade, existem esses desejos. Conforme Freud, a punição é, para os punidores, uma expiação dos próprios desejos: "Na verdade este é um dos fundamentos do sistema penal humano e baseia-se, sem dúvida corretamente, na pressuposição de que os impulsos proibidos encontram-se presentes tanto no criminoso como na comunidade que se vinga" (Freud, 1913/2006, p. 94).

Tal noção pode ser estendida em uma breve análise da sociedade em que vivemos, na qual, em diversos momentos, vemos nos jornais notícias de crimes que são motivo de grande revolta da população que, muitas vezes, exige vingança e procura "fazer justiça" com as próprias mãos. Nesse sentido, apelamos para Zizek (2014) que salienta que o fenômeno moderno da violência tem como característica sua irrupção aparentemente irracional. Este fenômeno deve ser abordado obliquamente, pois a pujança do horror diante dos atos violentos e a empatia com as vítimas funcionam implacavelmente como um engano que nos impede de pensar (Zizek, 2014). Citaremos um caso que gerou grande repercussão, tanto nas mídias quanto nas populações: o caso Nardoni, de infanticídio, no qual o pai e a madrasta da criança são acusados de matá-la, jogando-a pela janela. Tal crime, socialmente, apresenta-se de forma bruta e bárbara, despertando na sociedade um sentimento de repulsa. Tais sentimentos motivaram tentativas de linchamento dos acusados. Nesse caso, percebemos que o infanticídio gera na sociedade um incômodo enorme, despertando a vontade de uma punição vingativa. Percebemos que tal sentimento apresenta grande quota de investimento libidinal, que, possivelmente, a partir de nossas investigações, apontam para uma vingança agressiva contra aquele que transformou o desejo em ato, desejo que perpassa e faz parte mesmo da constituição social. Salientamos, contudo, que não é nossa intenção minorar a gravidade do ato dos acusados.

Pretendemos destacar que a vingança desejada pela população corrobora a ideia de que os desejos ambivalentes fazem parte da própria formação social. Além disso, nesses atos de revolta, parte da energia agressiva, formadora de todo sujeito, pode ser descarregada, quando não elaborada por meio de representações. É o que Freud (1921/1996) chama de psicologia das massas: o sujeito esquece o que elabora em prol de uma ação socialmente encorajada.

Assim, para Freud, "a base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte inclinação do inconsciente" (Freud, 1913/1996, p. 49). A necessidade de punir os transgressores reside no fato de que a transgressão pode ser imitada pelos membros da comunidade, já que ocorre, em relação ao tabu, um desejo ambivalente. Ao mesmo tempo em que ocorre a obediência ao tabu, existe o desejo de violá-lo.

Ampliaremos a questão da relação do sujeito com a Civilização, recorrendo ao texto "Mal Estar na Civilização", de 1930/2001, texto que dá continuidade à noção introduzida em "Totem e Tabu" acerca dos desdobramentos da ordem civilizatória e da maneira como o sujeito se estrutura a partir dessa ordem.

Segundo Freud, há um mal estar inerente à condição de sujeito. Esse mal estar intrínseco à Civilização é explicado por Freud pelo princípio de que somos "inimigos" dela, pelo fato de que ela nos rouba uma parcela de satisfação. A civilização ergue-se, então, com base no que Freud denomina de renúncia pulsional, representando o que antes fora denominado por ele como desejos ambivalentes. Pela justa medida da renúncia, a Civilização comportaria medidas de contenção de certo grau de hostilidade de seus indivíduos. Freud já explorara esse assunto em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/1996), ao abordar a metáfora de Schopenhauer do porco-espinho. Schopenhauer fala de um grupo de porcos-espinho que estava com frio. Para se aquecerem, resolveram se juntar. No entanto, devido aos espinhos, um machucava o outro, tendo que se afastarem para não se ferirem. Ficaram se aproximando para fugir do frio e se afastando para fugir das feridas que a aproximação trazia (Freud, 1921/1996, p.112). Freud irá dizer que toda relação emocional íntima entre duas pessoas (casamento, amizade, pais e filhos) comporta essa ambiguidade de violência e aproximação, e que somente o laço civilizatório poderia remediar essa ambiguidade, a qual, no entanto, é originária desse mesmo laço.

Freud (1930/1996) afirma que o que distingue os homens de seus antepassados animais é a cultura. Esta, por sua vez, serve a dois propósitos: à proteção dos homens contra a força da natureza e à substituição do poder do indivíduo pelo poder da comunidade. É nessa segunda acepção que os conceitos de Eros (amor) e Ananke (necessidade) são atribuídos por Freud como pais da civilização humana.

O reconhecimento do amor como um dos fundamentos da civilização implica a incompatibilidade entre este e a civilização. Embora o amor sexual proporcione ao homem intensas experiências de satisfação, em nome da civilização ele deve privar-se de seu objeto sexual, desviando a libido para outro fim. É nesse aspecto que o amor inibido de sua finalidade restringe a vida sexual para ampliar a vida comunitária.

Sendo assim, a lei surge como um desdobramento dos tabus, característico da Civilização e cuidando para que os interesses comuns sobressaiam-se aos interesses individuais, guardando a justiça. Nela, cada indivíduo tem de ceder uma quota a fim de que se ajuste na convivência com outros indivíduos. O resultado final deve ser uma lei para a qual todos contribuam cedendo uma parte das pulsões, não permitindo que algum indivíduo seja vítima da violência isolada.

Para Birman (2009), o texto freudiano do mito "Totem e Tabu" é delineado à condição igualitária entre os cidadãos, que caracteriza a sociedade moderna contraposta ao Antigo Regime, em que a figura soberana do Rei detinha a totalidade do poder. Assim, o primado da força não pode prevalecer em uma sociedade democrática que aposta na negociação como instrumento para o exercício da política e configuração das relações sociais. No entanto, a promessa iluminista não se concretizou, e o retorno da força nas formas de guerra e destruição evidenciou a impossibilidade de sustentação do diálogo e da negociação, acarretando a queda do capital simbólico na esperança e expectativas sobre o futuro (Birman, 2009). O efeito da precária regulação simbólica, para esse autor, pode ser a explosão agressiva que se revela no gesto brutal de violência em uma ação absoluta que afirma a soberania em ato.

Nesse ponto, cabe situar a diferenciação entre o que Freud conceitua como agressividade e o que pode ser considerado violência. A violência apresenta-se como a externalização da tendência agressiva, sendo infligida contra outro. No entanto, diferente da agressividade que possui um conceito em psicanálise e apresenta-se como estruturante da subjetividade, a violência implica a observância das leis e normas que regulam o social.

Para melhor esclarecer essa diferenciação, realizaremos no próximo tópico deste artigo um percurso sobre a denominada tendência agressiva, buscando entender quais são suas funções estruturais no aparelho psíquico.

 

Agressividade constituinte: breves considerações acerca das pulsões

Se nos propusermos a fazer uma retomada das articulações conceituais sobre as pulsões, ela se justificará justamente por fazer referência à noção de agressividade apresentada por Freud. Acreditamos ser necessário identificar em que ponto a agressividade pode ser considerada uma expressão das pulsões e como, conceitualmente, essas duas questões se entrelaçam.

Esse esclarecimento nos permitirá abordar o sujeito em sua constituição na inscrição social, levando-se em conta o papel da agressividade, ou tendência agressiva, que se mostra inerente a essa constituição; tendência que o Direito procura conter a partir das leis.

Se, por um lado, a inscrição social, com suas leis, serve para tentar conter essa agressividade, podemos, a partir disso, pensar como a instituição jurídica, em suas sanções, se propõe a estancar essa tendência. Tal questão é paradoxal, pois, como foi apresentado anteriormente, os próprios sistemas penais apresentam-se como forma de externalização da agressividade da comunidade, que se efetua por intermédio das punições dos indivíduos que romperam com o pacto social.

Trataremos de elucidar a relação entre pulsão e agressividade, questão que se faz importante, pois, no desenrolar teórico freudiano, as noções de agressividade e pulsão se mostram, em certo ponto, consonantes, e, em outros, distintas. Partimos do ponto controverso de que, em um primeiro momento, Freud define que o que se renuncia com a castração, ou seja, com a inscrição na Civilização, é a satisfação completa das pulsões. Assim, a partir da castração, parte das pulsões é impedida de se satisfazer. Em outros momentos, porém, a noção de renúncia aparece explicitamente ligada à abdicação da externalização da agressividade. A questão que se nos apresenta é: qual a relação entre pulsão e agressividade?

Em "Pulsões e Destinos da Pulsão" (1915/2004), Freud apresenta as características da pulsão que se mantêm até o fim de suas formulações teóricas. Através dessas características, podemos entender como se dá o movimento pulsional. O autor define que pulsão seria um estímulo proveniente do interior do organismo, um estímulo para o psíquico, aplicado à mente. Esse estímulo apresenta-se como uma força constante, que visa a uma descarga, a qual Freud denominou de satisfação da pulsão. Nesse sentido, para alcançar a descarga, a pulsão exige do sujeito atividades complexas, não cessando em sua exigência. Nas palavras do autor:

A pulsão nos aparecerá como um conceito limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a psique, como uma medida de exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo (Freud, 1915/2004, p. 148).

A pulsão busca satisfação, que é sempre parcial, pois é apenas na parcialidade que as pulsões se satisfazem, já que a descarga completa apresentar-se-ia como a cessação da energia psíquica, representando a morte. Assim, a pulsão apresenta-se como um estímulo irremovível. Tais destinos manifestam-se como um trabalho psíquico para lidar ou defender-se da força pulsional.

Essa força pulsional representa um conflito de forças ou tendências de expressão. Assim, podemos compreender o dualismo pulsional como um conflito inerente entre duas tendências originárias que visam à satisfação. A forma de conceber as pulsões em dualidades se relaciona à possibilidade de elas atuarem conjuntamente. O dualismo pulsional se daria em função de tendências pulsionais, que definiriam a finalidade do organismo ou do sujeito. Assim, Freud esclarece em "Pulsões e Destinos da Pulsão":

No entanto, cabe nos perguntarmos se esses conteúdos temáticos pulsionais tão especializados não deveriam ser retroativamente decompostos na direção das fontes pulsionais, a fim de se chegar às pulsões originais, àquelas não mais divisíveis, e atribuir apenas a estas uma efetiva importância (Freud, 1915/2004, p. 150).

Apresentadas as características da pulsão, investigaremos agora acerca das dualidades pulsionais, para elucidar de que forma a noção de agressividade se entrelaça às tendências originárias definidas por Freud em seus dois tempos da teoria. No texto de 1915, Freud define duas classes de pulsões, colocando-as como originárias: as pulsões do Eu e as pulsões sexuais. Apresenta-as como podendo trabalhar interligadas, representando sempre uma dualidade derivada dos conflitos entre o que ele definiu como exigências sexuais e exigências do Eu. Nesse primeiro momento, a questão de como a agressividade aparece ligada à pulsão é revelada pela via da sexualidade. Assim, para Freud, a agressividade ou pulsão agressiva só poderia apresentar-se como manifestação das tendências originárias das pulsões sexuais. Se ele postula outra dualidade pulsional, em um segundo momento da teoria, esta se justifica justamente no sentido de ele ter localizado fontes ou tendências mais originárias que a autoconservação e a sexualidade.

No texto de 1915, já percebemos indícios de que a questão da morte, ódio, destruição ou agressividade fazia-se patente. O que se percebe é que a sexualidade, por apresentar-se, desde o início, como mais aparente, mais incisiva, é tomada como uma tendência original. Tal noção não se desfaz com a formulação das Pulsões de Vida, pois a sexualidade vem representar essa vertente de agregação do amor, a expressão mesma de Eros. A princípio, o que se apresentava de palpável da tendência à morte ou agressividade encontrava-se mesclado à sexualidade no par sadismo – masoquismo, que, de certa forma, já prenunciava o decaimento da noção de autoconservação.

Nesse momento, a satisfação pulsional no desprazer só poderia ser aceita se estivesse ligada à questão sexual. Tal fato será posteriormente contraposto pela noção de pulsão de morte, a qual, em suas manifestações, comporta uma satisfação no desprazer ou mesmo uma atividade para além do princípio do prazer.

Destacamos um paralelo entre a descarga sexual e a descarga agressiva, levando-se em conta que, nesses dois casos, há um represamento pulsional pela impossibilidade de descarga direta. A atividade sexual diz respeito a suportar um aumento de estímulos para que, posteriormente, se realize uma maior descarga energética. O que ocorre na atividade sexual é a tolerância de um aumento de estímulos a um nível tal que, quando descarregados, geram, pela descarga, uma grande quota de satisfação. Nesse sentido, já podemos pensar a agressividade como uma importante manifestação pulsional. Esta aparece como primordialmente contida, por não poder manifestar-se culturalmente em sua expressão de pulsão de destruição. O que difere as pulsões agressivas das pulsões destrutivas é justamente o caráter de externalização da agressividade em objetos, sob a forma de destruição. A externalização da pulsão em ato gera uma descarga pulsional que produz uma quota de satisfação. Aqui se coloca para nós a questão de que o ato agressivo em si comporta para o sujeito uma satisfação pulsional, sendo a violência uma questão econômica de satisfação pulsional para o sujeito, apresentando-se como uma resposta a esta tensão pulsional inerente entre sujeito e sociedade.

Aqui se faz necessário distinguir a questão do prazer/desprazer do que se mostra na ordem de uma satisfação. Foi o que Freud veio demonstrar, em seu texto de 1920, "Além do Princípio do Prazer": que há algo que se mostra como tendência originária para o sujeito que está para além da regulação do princípio do prazer. Desse modo, a questão econômica de uma satisfação da pulsão, motor do sujeito, é muito mais determinante do que as sensações de prazer ou desprazer. Freud apresenta tal noção no texto, primeiramente, demonstrando que, na contenção da pulsão e a sua posterior descarga, nem sempre a satisfação se dá na ordem sexual com a percepção de um prazer. Além disso, o desprazer, apesar de se apresentar como negativo para o sujeito, não se trata de insatisfação; ao contrário, comporta em si uma satisfação pulsional. Ocorre que, diferente do instinto que tem seu objeto determinado, o objeto da pulsão não é fixo nem previamente determinado. Por isso, a escolha do objeto que serve para satisfazer a pulsão nem sempre está de acordo com as expectativas do Eu. É por esse motivo que o sentido econômico de baixa de tensão pode provocar estranheza, pois o objeto que serve à pulsão pode ser inadequado ao Eu. O princípio de prazer-desprazer, presente no sistema inconsciente, preconiza a baixa de tensão como forma de evitar o desprazer, ainda que no modo de sofrimento, como a angústia advinda da fobia.

Verificamos que, ao longo de todo o desenvolvimento da teoria das pulsões, em sua expressão através das dualidades, da ambivalência própria às pulsões, o conflito pode ser definido e expresso basicamente na noção de amor e ódio. Aqui, também, se faz patente a relação da agressividade com a pulsão, outra maneira em que elas se articulam. Tal ideia é apresentada tanto em "Pulsões e Destinos da Pulsão" quanto em "Além do Princípio do Prazer". Essa oposição vem revelar a relação entre a vida e a morte, entre a sexualidade e a agressividade, oposição que rememora uma ambivalência original, a qual abordaremos a partir do conceito de pulsão.

Freud define que, primeiramente, haveria um estado autoerótico no qual o Eu seria a fonte de prazer e o mundo externo, fonte de desprazer. O Eu se apresentaria como primeiro objeto de amor do sujeito. Tal noção deriva-se do que o autor denominou como narcisismo: "o amor nasce da capacidade do Eu de satisfazer uma parte de suas moções pulsionais de maneira autoerótica, obtendo prazer do órgão." (Freud, 1915/2004, p.161). Posteriormente, o Eu passa a receber objetos do mundo externo, introjetando o que de fora é tido como prazeroso e visando a eliminar o que internamente é sentido como desprazeroso. No narcisismo primário, com a entrada do objeto, o odiar aparece e é direcionado para o mundo externo, que se apresenta como perturbador do prazer autoerótico. Posteriormente, na fase de escolha objetal, prazer e desprazer vão mediar as relações do Eu com o objeto. Assim, ama-se o prazer e odeia-se do desprazer. O amor apresenta-se, dessa forma, na fase objetal, como ambivalente, pois está ligado primeiramente nas metas de incorporar ou devorar o objeto, sendo este subjugado pelo sujeito. Desse modo, também essa ambivalência apresenta-se na fase anal-sádica, em que há o ímpeto de apoderamento do objeto, podendo este ser aniquilado. Assim, Freud define: "Só com a instauração da organização genital é que o amor se torna o oposto do ódio" (Freud, 1915/2004, p.161). Acerca do ódio, complementa indicando que este se mostra mais arcaico que o amor, pois demonstra uma posição radical do Eu contra o mundo externo, inicialmente tido como fonte de desprazer.

Ao colocar as coisas neste ponto, Freud já aponta para uma posição, ou tendência radical da relação do sujeito com o mundo externo. Noção que continua sendo desenvolvida em "O Eu e o Id", de 1923, em que o autor também recorre à noção de amor e ódio para tratar dessa ambivalência. Ele afirma que a ambivalência aparece como anterior à maneira como as duas classificações de pulsão (pulsão de vida e pulsão de morte) se articulam, representando um impasse originário, uma mescla das pulsões não consumadas.

Em 1923, Freud define que as pulsões, em geral, visam a uma conservação de um estado que foi perturbado pelo mundo externo. Daí a noção trazida anteriormente de que o ódio se mostra mais arcaico que o amor. Define-se, então, que as pulsões de vida, Eros, ou pulsões sexuais, visam à agregação da substância viva, buscando conservá-la, a vida, sendo possível identificá-las na atuação das pulsões sexuais, inibidas ou desinibidas em sua meta, assim como nas pulsões sublimadas, e também nas pulsões de autoconservação que são submetidas ao Eu. A pulsão de morte, por sua vez, é definida como atuando em um movimento que tende o sujeito ao inanimado, a um estado anterior à vida que, no fim, aponta para a morte.

Nessa dualidade, pulsão de morte e pulsão de vida trabalham em conjunto, sendo a expressão da pulsão de vida mais perceptível. Desse modo, a pulsão de morte, sendo denominada pelo autor também como pulsão agressiva, remontando a essa tendência primordial hostil, que é desviada e, assim, neutralizada a favor do funcionamento da pulsão de vida. A pulsão de morte pode também aparecer, em parte, desligada da pulsão de vida. Nesse sentido, apresenta-se como a radicalidade da morte, sendo uma satisfação da pulsão agressiva direcionada a objetos do mundo exterior. Dessa forma, a pulsão de morte ou agressiva, manifesta-se no que Freud denomina de pulsão de destruição, que concerne ao que podemos chamar, com cautela, de violência, ato em que a expressão da pulsão agressiva é voltada para o mundo externo e outras vidas.

Cabe aqui uma ressalva na correspondência entre os termos violência e agressividade. A polissemia implicada nos termos que se referem à violência pode nos auxiliar na diferenciação de agressividade. Um recurso possível para a apreensão dessas articulações é o da etimologia. Michaud (2001), ao abordar a origem do termo em latim, revela que o verbo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir. O prefixo vis, que significa força, potência, valor, a força vital, na passagem do latim para o grego confirma esse núcleo de significação, já que o is significa músculo, força, vigor e se vincula à bia como força vital, força do corpo (Michaud, 2001). Nesse sentido, encontramos na noção de violência a ideia de força, potência natural, "cujo exercício contra alguma coisa ou contra alguém torna o caráter violento [...]. Ela (força) se torna violenta quando passa da medida ou perturba uma ordem". (Michaud, 2001, p. 8). Há também o sentido de transgressão das normas definidas socialmente, que são dinâmicas e se alteram com o tempo. Nos termos de Michaud, "a violência é definida e entendida em função de valores que constituem o sagrado do grupo de referência" (Michaud, 2001, p. 14).

Assim, o que se viola é uma ordem estabelecida, alterando aquilo que seria um movimento natural das coisas e impondo uma ruptura brusca do convívio do existente (Costa, 2005), seja essa violação da ordem da natureza ou da cultura. Diferente da violência, a agressividade possui um estatuto de conceito psicanalítico e está situada na base da constituição do eu, localizada na ordem humana, libidinal.

Um último paralelo entre agressividade e pulsão aparece com a estruturação da instância psíquica do Supereu. O Supereu é a instância psíquica que se mostra como resultante da relação da criança com a autoridade externa. Nessa relação, a tendência à hostilidade ou agressividade perante esse outro que tolhe tem de ser renunciada. Esse investimento de pulsão que não encontra escoamento na ação (como o ato do parricídio realizado na Horda Primeva) retorna ao Eu, sendo então utilizada pela instância do Supereu. No processo de formação do Supereu, a tendência à agressividade, que não pode ser descarregada, é internalizada e acolhida pelo Supereu, voltando-se contra o Eu. Nesse processo, utiliza-se da energia agressiva reprimida para aplicar ante o Eu a severidade com que gostaria de tratar seus objetos. Toda a noção de necessidade de punição e sentimento de culpa deriva da relação estabelecida em que a agressividade funciona como motor pulsional do Supereu.

 

Conclusão

Propusemos, neste artigo, investigar a relação entre crime, sujeito e sociedade, a partir da perspectiva psicanalítica. Nesse percurso, foi importante demonstrar de que forma o crime aparece como originário e estruturador tanto da Civilização, no Mito da Horda Primeva, quanto do sujeito em sua relação com o Complexo de Édipo, sendo a representação de uma resposta subjetiva em ato, resposta à tensão que é inerente ao sujeito e à sociedade.

Outro ponto que se apresentou de extrema importância para nossa discussão foi a conceitualização de agressividade e a sua relação intrínseca com a constituição subjetiva, sendo mesmo inerente a todo sujeito. Essa agressividade aparece como um impasse civilizacional, na medida em que urge satisfação em um contexto cultural no qual deve ser recalcada. Aproximamos a noção de agressividade à de Mal Estar, representante da tensão entre sujeito e sociedade. Tal tensão, na contemporaneidade, pode ser expressa pela consideração que, conquanto a violência seja uma dimensão do humano, ela adquire características próprias numa sociedade capitalista com sua cultura individualista/narcisista (Moreira, Kyrillos Neto, Rosário, Souza, & Drawin, 2015).

A partir da investigação da relação do sujeito com a sociedade, pautada na renúncia pulsional, demonstramos que o crime aparece como uma possibilidade humana, no sentido de que os desejos ambivalentes e a agressividade são parte constitutiva de nós, como sujeitos sociais.

No entanto, julgamos necessário maior cautela ao associar a fundação da cultura ao ato violento. Isso porque, embora o ato violento desfaça o arranjo social existente, a fundação da cultura exige mais. Será a partir da identificação e do reconhecimento entre os irmãos que ocorrerá a possibilidade de estabelecimento de um laço social, fundador da cultura. A agressividade, embora seja estruturante do sujeito, não é suficiente para o surgimento deste. É necessário sair de si mesmo em busca do outro por intermédio da identificação e do reconhecimento, que possibilitam o laço social.

Por fim, é importante ressaltar que tal recorte teórico não se propõe para os fins de uma possível resolução acerca da agressividade. Não nos propomos a dar respostas de pedagogização ou normatização da agressividade. Nosso propósito é abrir o campo de debates sobre uma nova forma de discutir as questões criminológicas, seja dos sujeitos que cometeram atos criminosos, seja acerca das instituições jurídicas que intervirão sobre este sujeito.

 

Referências

Assoun, P. L. (2012). Freud e as ciências sociais. Psicanálise e teoria da cultura. São Paulo: Edições Loyola.         [ Links ]

Birman, J. (2009). Cadernos sobre o mal: agressividade, violência e crueldade. Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

Costa, J. F. (2005). As faces da violência. Percurso, 35(2), 97-102.         [ Links ]

Costa, D. B. (2013). Algumas considerações sobre sujeito, lei, culpa e processo civilizatório. In A. B. Rosário & J. O. Moreira (Orgs.). Culpa e laço social: possibilidades e limites (pp. 111-126). Barbacena: Editora da Universidade do Estado de Minas Gerais.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Totem e Tabu. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (v. 13). Rio de Janeiro: Imago Editora (Original publicado em 1913).         [ Links ]

Freud, S. (2004). Pulsões e Destinos da Pulsão. In S. Freud. Obras Psicológicas de Sigmund Freud - Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente (1915-1920). Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em 1915).         [ Links ]

Freud, S. (2006). Além do princípio do prazer. In S. Freud. Obras Psicológicas de Sigmund Freud - Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente (1915-1920). (v. 2). Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em 1920).         [ Links ]

Freud, S. (1996). Psicologia de grupo e a análise do ego. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (v. 18). Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em 1921).         [ Links ]

Freud, S. (2011). O eu e o isso. In S. Freud. Sigmund Freud Obras Completas. (v. 16). São Paulo: Companhia das Letras (Original publicado em 1923).         [ Links ]

Freud, S. (2010). Mal estar na civilização. In S. Freud. Sigmund Freud Obras Completas (v.18). São Paulo: Companhia das Letras (Original publicado em 1930).         [ Links ]

Michaud, Y. (2001). Violência. São Paulo: Ática.         [ Links ]

Moreira, J. O., Kyrillos Neto, F., Rosário, A. B., Souza, J. M. P., & Drawin, C. R. (2015). Análise do discurso de adolescentes em privação de liberdade: reflexões sobre a luta pelo reconhecimento. Curitiba: CRV.         [ Links ]

Zizek, S. (2014). Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fuad Kyrillos Neto
E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br

Recebido: 23/05/2016
1° revisão: 18/07/2016
Aceite final: 20/08/2016

 

 

1 Joana Panzera de Souza Mello é mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei.
2 Fuad Kyrillos Neto é docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei.
3 Roberto Calazans é docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei.
4 Angela Bucciano do Rosário é
doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Creative Commons License