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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.18 no.1 Ribeirão Preto Jan./Jun. 2017

 

ARTIGOS

 

Práticas de nomeação nas relações familiares contemporâneas

 

Nomination practices in contemporaneous family relations

 

Prácticas de nombramiento en las relaciones familiares contemporáneas

 

 

Terezinha Féres-Carneiro1; Rebeca Nonato Machado2; Renata Mello3; Andrea Seixas Magalhães4

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo é parte de investigação mais ampla sobre a percepção de pais e filhos em relação ao exercício da parentalidade nas diferentes configurações familiares contemporâneas. Foram realizadas entrevistas semiestruturas com 132 membros de famílias heteroparentais e homoparentais, dos segmentos médios da população carioca, casadas, separadas, recasadas e monoparentais. Participaram do estudo 41 mães, 41 pais, 26 filhos crianças e 24 filhos adolescentes. As entrevistas foram analisadas pelo método de análise de conteúdo e discutidas a partir da literatura revisada. Na investigação mais ampla, emergiram das narrativas cinco categorias de análise: nomeação; conflitos, poder, limites e expectativas; papéis de gênero; projeto educativo; e exercício da parentalidade. Neste estudo discutiremos a categoria nomeação, cujo objetivo é investigar as práticas de nomeação nas relações familiares contemporâneas. A atribuição de nomes específicos, por pais e filhos, aos membros da família, expressa a necessidade de reconhecimento e diferenciação dos lugares e das funções familiares. Concluímos que as práticas de nomeação apontam mais para o respeito às tradições do que para a busca pela criação, apesar das grandes transformações dos laços familiares, regidos pela valorização dos laços socioafetivos.

Palavras-chave: relações familiares; contemporaneidade; parentalidade; nomeação; laços socioafetivos.


ABSTRACT

This paper is part of a broader investigation on the perception of parents and children towards parenthood, within the various contemporaneous family structures. We conducted semi-structured interviews with 132 members of heterosexual and homosexual-parent families, belonging to the middle-class of Rio de Janeiro, married, divorced, remarried, and single-parent. The study involved 41 mothers, 41 fathers, 26 young children, and 24 teenage children. We analyzed the interviews using the content analysis method and discussed them using reviewed literature. During the broader investigation, we identified five categories of analysis emerging from the narratives: nomination; conflicts, power, limits and expectations; gender roles; educational project; and parenthood. In this paper, which aims to investigate naming practices among contemporaneous family relations, we discussed the nomination category. The attribution of specific names, by parents and children, to family members, express the need for recognition and differentiation of family places and functions. We concluded that nomination practices point to the respect for traditions rather than the search for creation, despite major transformations of family bonds, which are governed by the appreciation of socio-affective connections.

Keywords: family relations; contemporaneity; parenthood; nomination; socio-affective bond.


RESUMEN

El presente estudio es parte de una investigación más amplia sobre la percepción de padres e hijos en relación al ejercicio de la parentalidad en las diferentes configuraciones familiares contemporáneas. Fueron realizadas entrevistas semiestructuradas con 132 miembros de familias heteroparentales y homoparentales , pertenecientes a la clase media de Rio de Janeiro, casados, divorciados, recasados y monoparentales. Participaron del estudio 41 madres, 41 padres, 26 niños y 24 hijos adolescentes. Las entrevistas fueron analizadas mediante el método de análisis de contenido y discutidas a partir de la literatura revisada. En la investigación más amplia, surgieron de las narrativas cinco categorías de análisis: nombramiento; conflicto, poder, límites y expectativas; roles de género; proyecto educativo; y ejercicio de la parentalidad. En este estudio, cuyo objetivo es investigar las prácticas de nombramiento en las relaciones familiares contemporáneas, discutimos la categoría nombramiento. La atribución de nombres específicos, por padres e hijos, a los miembros de la familia, expresa la necesidad de reconocimiento y diferenciación de lugares y de las funciones familiares. Concluimos que las prácticas de nombramiento apuntan más hacia el respeto a las tradiciones que a la búsqueda por la creación, a pesar de las grandes transformaciones de los vínculos familiares, regidos por la valoración de los vínculos socioafectivos.

Palabras clave: relaciones familiares; contemporaneidad; parentalidad; nombramiento; vínculos socioafectivos.


 

 

As famílias contemporâneas vêm sendo cada vez mais constituídas sob as bases da busca pela satisfação, que passa a determinar o tempo e a estabilidade do vínculo entre os membros familiares. Acompanhamos o aumento crescente do número de separações e recasamentos, bem como, a multiplicação do número de famílias monoparentais e homoparentais (Féres-Carneiro & Magalhães, 2011; Jacob-Alby & Vives, 2015; Vilhena, Souza, Uziel, Zamora, & Novaes, 2011). Nesse sentido, deparamo-nos, atualmente, com a coexistência de diferentes modelos ou mesmo com a presença de modelos híbridos de família, que expressam uma contínua renegociação de posições e de valores. Consequentemente, surge a necessidade de se criarem novas nomeações que deem conta dessa complexidade de funções e de lugares na dinâmica familiar.

Em decorrência disso, nos parece importante pensar no modo como essa renegociação está sendo representada na dinâmica familiar, por meio das práticas de nomeação originadas na interação intersubjetiva geracional. A ideia é ampliar não só o entendimento sobre as especificidades das configurações familiares (Costa & Dias, 2012), mas também sobre o processo de criação de nomeação, representante da constituição de sentido dos lugares na cadeia genealógica.

Ainda são poucas as investigações que articulam as práticas de nomeação e os aspectos psíquicos envolvidos no processo de criação dos signos, assim como é escasso o desenvolvimento de uma reflexão sobre os sentidos das nomeações na dinâmica familiar. A literatura acaba priorizando o entendimento deste aspecto das práticas de nomeações nas famílias recasadas, na medida em que a complexidade das funções na cadeia genealógica fica mais evidente, ao envolver o surgimento de figuras como enteados, madrastas e padrastos, meio-irmãos e irmãos socioafetivos (Pereira & Arpini, 2012; Saraiva, Levy, & Magalhães, 2014).

PROCESSO DE NOMEAÇÃO

O ser humano realiza uma busca incessante de dar sentido às suas vivências e ao que lhe rodeia. Levando em consideração essa busca, o ato de nomear equivale a dar sentido a algo, possibilitando que a sua existência seja compartilhada no meio social para o reconhecimento mútuo. Não por acaso, a noção de linguagem e sua relação com a realidade, apresenta-se como um campo fértil de interlocução para a Psicologia (Ibrahim & Vilhena, 2014). A discussão se baseia em como "o uso da linguagem é uma forma de atuação no real e não uma simples maneira de descrever a realidade" (Avzradel, 2006, p.12). O nomear e o significar surgem simultaneamente na relação entre os indivíduos, pertencendo ao campo do social, já que a língua é o conjunto de hábitos linguísticos que permite aos sujeitos compreenderem e se tornarem compreendidos.

Fazendo referência às proposições de Saussure (1916), Bally e Sechehaye (2006) argumentam que todo meio de expressão, aceito em uma sociedade, está calcado num hábito coletivo, em uma convenção. Por isso, o signo possui um caráter arbitrário intrínseco, cuja definição é ser o representante da totalidade da combinação entre o conceito (o significado) e a imagem acústica (o significante). O significante é arbitrário em relação ao significado, não tendo nenhum laço natural na realidade.

A língua é sempre o produto de fatores históricos herdados de gerações anteriores. Existe no coletivo uma resistência a qualquer substituição do signo, por conta da legitimidade coletiva em que fora criado e transmitido. Ao mesmo tempo em que há o caráter de fixidez da língua, por ela estar ligada ao peso da coletividade e situada no tempo. Paradoxalmente, existe o caráter de mutualidade do signo que é constituída pela participação, a todo instante, da influência de todos os sujeitos (Bally & Sechehaye, 2006).

Singly (2007) avalia que devemos sempre estar atentos à lógica contida nos mecanismos de atribuição das nomeações. Segundo o autor, a escolha do nome próprio, ou no caso de outras formas de nomeação, significa uma antecipação do tipo de investimento afetivo que os familiares desejam realizar uns nos outros. Eiguer (2012) denominou a estruturação da história familiar de "cúpula do vínculo", ao referir-se ao conjunto de produções inconscientes que estruturam e enquadram uma série de representações e de narrativas que compõem a identidade grupal. O senso de pertencimento implica em reconhecer-se como alguém singular na cadeia genealógica e, ao mesmo tempo, em reconhecer a semelhança com aqueles que formam os laços de parentesco. As concepções explanadas fundamentam o quanto as práticas de nomeação sugerem um modelo interacional, devendo ser analisadas em um contexto intersubjetivo.

CONFIGURAÇÕES FAMILIARES CONTEMPORÂNEAS

Nas mais diversas configurações familiares da contemporaneidade, perpassa uma crise transicional, construída por dois modelos de sociedade contraditórios e inconciliáveis (Caillé, 2010). Esses modelos são descritos, por este autor, em termos de mitologias, que representam esforços no sentido de colocar ordem nas práticas dos indivíduos.

Uma das mitologias refere-se a uma sociedade tradicional, na qual o indivíduo se inscreve na ótica da dependência da família, de uma classe social, de uma moral religiosa. Dessa forma, o indivíduo só tem sentido no coletivo institucional. Na outra mitologia, ao contrário, há a escolha pessoal, distinta da influência do contexto e liberada dos tabus. Essas mitologias são trazidas pelo autor para o espaço das famílias, classificando-as em famílias neotradicionais e em famílias centradas na configuração afetiva. A família neotradicional tende a reconhecer um casal parental único como permanente.

A família com ênfase na configuração afetiva aspira a valorizar o potencial existencial em cada um, e tende a disponibilizar estruturas, não hierárquicas, onde a coesão se instala na reciprocidade. As relações passam a ser regulamentadas pela afetividade, pelo consenso que ela exige e a predominância de uma maior simetria nas relações familiares e, ainda, tendo o hedonismo como valor central. Habituados ao hedonismo na vida privada, os jovens, ao serem pais, vão exercer uma prática parental fortemente marcada pela influência da mídia e pelos ideais de felicidade difundidos por ela (Singly, 2007).

É importante pontuar como são nomeadas, neste trabalho, as diferentes configurações familiares contemporâneas. Consideramos famílias separadas como aquelas cujos pais tiveram um casamento (ou uma união estável) que foi posteriormente rompido (a), legalmente ou não, com filhos desta união (Féres-Carneiro & Diniz-Neto, 2010). As famílias recasadas, por sua vez, são tomadas como aquelas cujos pais tiveram um casamento (ou união estável) anterior, com filhos desta união, seguido de outro casamento (legal ou não) de um deles ou de ambos (com filhos deste recasamento, ou não). Trata-se, então, de uma configuração familiar complexa tecendo uma vasta rede de relações entre adultos e crianças que, muitas vezes, não podem ser identificadas ou nomeadas. Tal complexidade não deve ser confundida com disfuncionalidade (Féres-Carneiro& Ziviani, 2009).

As famílias monoparentais são constituídas por um dos pais (pai ou mãe) e seus filhos, cujo contato com o outro pai (mãe ou pai) costuma ser inexistente ou muito esporádico. Estas famílias apresentam uma definição bastante ampla, resultante, segundo Macedo (2008), de fatores demográficos, como a ocorrência de novos fluxos migratórios, da diminuição da fecundidade, do aumento do número de divórcios e das chamadas "produções independentes".

Por fim, destaca-se o modelo de família homoparental, caracterizada por um vínculo conjugal entre duas pessoas do mesmo sexo. Este arranjo familiar vem tomando espaço cada vez maior em nossa sociedade. Zambrano (2006) aponta que o termo homoparentalidade é alvo de muitos questionamentos, uma vez que ele pode associar a orientação sexual dos pais aos cuidados não adequados para com os filhos. São muitos os impasses na consolidação de uma nova ordem na família homoparental, a qual é constituída sobre alguns pilares, como ausência de papéis fixos entre os membros, o que significa que a estrutura do grupo familiar deve suportar trocas e deslocamentos de papéis e lugares (Passos, 2005).

No âmbito destas considerações, constatamos que as funções materna e paterna não são mais exercidas segundo identidades tradicionais rígidas associadas à condição de ser homem ou ser mulher. De acordo com Borges (2005), pais e mães exercem suas funções parentais segundo suas próprias condições psicoemocionais, sem estabelecer diferenciação de gênero, e revezam entre si, quanto a seu exercício. Tem-se discutido muito o quanto as funções parentais contemporâneas estão desatreladas dos papéis de gênero, porém relacionadas às suas especificidades, tendo como efeito a redefinição dos modelos parentais tradicionais (Vieira, Bossardi, Gomes, Bolze, Crepaldi, & Piccinini, 2014).

MODELOS DE NOMEAÇÃO NAS FAMÍLIAS

As nomenclaturas "mãe" e "pai" são vocábulos sócio-históricos construídos culturalmente. Nas sociedades ocidentais, o que se habituou a nomear como família é o modelo nuclear constituído pelo casal parental e seus filhos – pai, mãe, filhos/irmãos (Watarai, 2010). Segundo a origem etimológica, a palavra "mãe" vem do latim "matrem", "madre", "mae", com sentido que remete a progenitora, mulher carinhosa. A palavra "pai", por sua vez, também tem sua origem etimológica no latim "patrem", "padre" com o significado de genitor, progenitor chefe da família, aquele que deu o ser aos filhos. Os signos "mãe" e "pai" trazem significações que vão para além da biologia e da capacidade de reprodução. Assim, tais definições abrangem também as responsabilidades sociais, tais como, educação, alimentação, saúde dos filhos, apoio financeiro e de necessidades materiais (Manfroi, Macarini, & Vieira, 2011).

Com o nascimento do primeiro filho, os sujeitos que estavam anteriormente na posição de filho(a) passam a ser chamados de pai ou mãe. As alterações na estrutura familiar são sentidas em todas as esferas, dentro da cadeia genealógica e nas relações sociais, formando uma nova imagem de si mesmo para aquele sujeito, que antes era exclusivamente reconhecido como filho de seu pai (Fiamenghi Júnior & Messa, 2007). Nesse sentido, a nomeação das funções familiares tem um importante papel na formação da identidade e da subjetividade do indivíduo, pois oferece um sentido que faz parte da promoção dessa integração do Eu e de seu lugar no mundo.

Na clínica, encontramos a problematização das nomeações de funções e dos papéis na cadeia familiar, de uma maneira mais acentuada, nas famílias recasadas. Nesse contexto, várias nomenclaturas surgem para designar os novos membros da família. Temos encontrado enteados/enteadas utilizando alternativas criativas para nomear padrastos/madrastas, como por exemplo, "mãe emprestada", "pai do coração", "mãe postiça", "segundo pai", "pai-amigão" (Saraiva, Levy, & Magalhães, 2014; Wagner & Falcke, 1997). Soares (2009) identifica que há a criação de variados termos utilizados para identificar as novas figuras que compõem e estão presentes na vida familiar. A esse propósito, Wagner, Tronco, Gonçalves, Demarchi e Levandowski, (2012) ressaltam que os termos "padrasto" e "madrasta" são, muitas vezes, evitados pelos membros de famílias recasadas, por estarem relacionados a uma conotação negativa e pejorativa. Por isso, uma característica marcante, neste contexto, é a necessidade de criatividade, para que novos signos sejam formulados a fim de identificar e de legitimar o lugar do novo membro da família.

Contudo, a definição dos estatutos de padrastos e madrastas, de irmãos socioafetivos e de meio-irmãos ainda é problemática, em função da falta de representações culturais pré-estabelecidas, que orientem esse tipo de relação de parentesco. Por outro lado, talvez, essa falta de estatutos prévios favoreça entre os sujeitos envolvidos a construção de um laço afetivo eletivo (Théry, 2001).

Estudos recentes apontam que a qualidade da relação entre padrasto/madrasta e enteados(as) recebe forte influência do papel designado, pelos pais, à participação dos atuais cônjuges na vida de seus filhos. Dentre outros fatores significativos, estão o período de convivência e a idade com que os enteados passam a se relacionar com o padrasto ou a madrasta (Saraiva, Levy, & Magalhães, 2014; Sousa & Dias, 2014; Soares, 2009). A distância afetiva entre o enteado e o novo parceiro da figura parental parece ser um obstáculo a ser superado nas situações de recasamento, pois pode suscitar interações conflituosas na família.

A relação de madrastas e padrastos com enteados passa pela necessidade de reconhecimento recíproco, para alcançar maior proximidade, inclusive afetiva, e perceber os primeiros como pessoas que são mais do que apenas companheiras(os) de seu pai ou de sua mãe. Assim, o relacionamento entre eles pode tornar-se afetuoso, não sendo necessariamente negativo, como nas representações do senso comum e nas diversas fábulas e contos (Théry, 2001). Assim sendo, é necessária uma adoção emocional de duas vias, para que ambos se relacionem afetivamente mesmo na ausência de qualquer vínculo biológico (Ribeiro, 2005).

Outro aspecto particular dessa configuração são as relações fraternas. Oliveira (2005) explica que a chegada de um meio-irmão pode ser sentida pela família como uma renovação, constituindo um sentimento de concretização da formação familiar. Amaral e Dias (2011) encontraram algo semelhante em seu estudo, que constatou sentimentos de felicidade, proteção e amor entre os meio-irmãos. Segundo Pereira e Arpini (2012), a convivência aparece como um forte fator de demarcação do elo fraterno, apesar do fato de os irmãos possuírem apenas o pai ou a mãe em comum.

Contudo, quanto aos irmãos socioafetivos, segundo Oliveira (2005), é raro que os adolescentes chamem os mesmos de "irmãos". Quando existe uma relação distante ou negativa entre eles, os jovens geralmente utilizam os termos "filha(o) da(o) namorada(o)" ou "filha(o) da(o) mulher/marido do meu pai ou da minha mãe", que parecem explicitar o distanciamento e a falta de envolvimento entre eles. No entanto, quando estas relações são positivas e/ou próximas, as crianças e adolescentes passam a optar por termos como "irmão-torto", demonstrando que, apesar de existir esta relação, ela ainda conta com alguma "deficiência".

No âmbito dessas considerações, o presente estudo, que é parte de investigação mais ampla sobre o exercício da parentalidade nas diferentes configurações familiares da atualidade, tem como objetivo investigar as práticas de nomeação nas relações familiares contemporâneas. Supomos que, por meio destas práticas, representações vão sendo criadas na tentativa de designar o lugar e a identidade de cada sujeito na família. Buscamos, assim, colaborar para a reflexão sobre os sentidos, as vicissitudes, os desafios e as potencialidades das nomeações criadas na dinâmica das famílias nos dias de hoje.

 

MÉTODO

PARTICIPANTES

Participaram desta pesquisa 132 sujeitos, membros de diferentes arranjos familiares, pertencentes aos segmentos médios da população carioca: 41 membros de famílias casadas (35 hétero e 6 homoparentais), 30 de famílias separadas (25 hétero e 5 homoparentais), 42 de famílias recasadas (37 hétero e 5 homoparentais) e 19 monoparentais (17 hétero e 2 homoparentais). Os membros das famílias estavam assim distribuídos: 41 mães, 41 pais, 26 filhos com idades de 7 a 12 anos, e 24 filhos com idades de 13 a 17 anos.

INSTRUMENTO

Como instrumento de investigação, foram realizadas entrevistas gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas integralmente. O roteiro semiestruturado das entrevistas foi formulado a partir da revisão da literatura acerca do tema, contemplando questões abertas sobre o exercício da parentalidade nas diferentes configurações familiares contemporâneas, dentre as quais, as práticas de nomeação.

PROCEDIMENTO

Os participantes foram indicados pela rede de sociabilidade dos membros do grupo de pesquisa, constituindo uma amostra de conveniência. O contato inicial para a marcação das entrevistas foi feito por telefone. As entrevistas foram efetuadas, individualmente, pelos membros da equipe de pesquisa, em local determinado pelos participantes, e tiveram duração média de uma hora e trinta minutos. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, e analisadas pelo método de análise de conteúdo (Bardin, 2010). Foi utilizada a técnica categorial, por meio da qual são destacadas categorias temáticas, organizadas a partir da frequência e da semelhança entre os elementos contidos no material coletado. Para tal, procedeu-se a uma "leitura flutuante", agrupando-se dados significativos, identificando-os e relacionando-os, a fim de se destacarem as categorias.

Os dados coletados foram submetidos ao método de análise de conteúdo, na sua vertente categorial, com a finalidade de avaliar, a partir do material discursivo, as significações atribuídas pelos entrevistados aos fenômenos (Bardin, 2011). Por meio da técnica categorial, foram destacadas categorias temáticas, organizadas a partir da semelhança entre os elementos contidos no material coletado. Para tal, procedeu-se a uma "leitura flutuante", agrupando-se dados significativos, identificando-os e relacionando-os, até se destacarem as categorias de análise.

Na investigação mais ampla sobre a percepção de pais e filhos em relação ao exercício da parentalidade nas diferentes configurações familiares contemporâneas, da qual este estudo é parte, emergiram das narrativas dos entrevistados as seguintes categorias de análise: nomeação; conflitos, poder, limites e expectativas; papéis de gênero; projeto educativo; exercício da parentalidade. Para atingir os objetivos formulados no trabalho que ora apresentamos, discutiremosa categoria nomeação. As demais categorias foramdiscutidas em outros trabalhos.

CUIDADOS ÉTICOS

O projeto que deu origem à pesquisa foi aprovado por Comitê de Ética da universidade onde o estudo foi desenvolvido. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, permitindo a utilização dos dados em ensino, pesquisa e publicação.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para a apresentação dos resultados, os diferentes arranjos familiares foram nomeados da seguinte forma: Fam (família), Casa (casada), Sepa (separada), Reca (recasada), Mono (monoparental), Hete (heteroparental) e Homo (homoparental). Os filhos foram denominados Fo, as filhas Fa, enquanto os pais foram designados de P (pai) e M (mãe) e ordenados dentro de cada arranjo familiar, sendo a nomeação seguida da idade de cada participante.

Ao serem questionados sobre as práticas familiares de nomeação, a maioria dos entrevistados, tanto crianças e adolescentes quanto pais e mães, parecia descrever algo óbvio e pouco relevante, transmitindo um sentimento de que aquela temática não precisava nem mesmo ser questionada.Parecia que não existia o reconhecimento sobre o quanto às práticas de nomeação representam e revelam os afetos, bem como, os sentidos implícitos à interação intersubjetiva, designando o lugar e as respectivas funções de cada membro familiar na cadeia genealógica (Salomão, 2012).

É normal isso (nomeação). Tipo, eu chamo meu pai de pai, minha mãe de mãe, minha mãe me chama de D. (apelido), meu pai me chama de D. (nome), quando eles estão irritados geralmente eles me chamam de E., meu pai chama minha mãe de R., e minha mãe chama meu pai de M. ...Normal! (FamCasaHete Fa03 – 12 anos).

Por outro lado, parecia que os entrevistados não eram guiados por outra lei, senão a da tradição para nomearem-se, corroborando com as postulações de Saussure (1916), Bally e Sechehaye (2006). Observamos, a partir das entrevistas, que de fato o rompimento com o passado é apenas relativo, posto que as práticas de nomeação mostraram poucos aspectos em transformação. Uma das mães (M5), membro de uma família monoparental com dois filhos adotivos, confirma com sua fala o quanto os signos "mãe" e "irmão", originados na mitologia da família tradicional (Caillé, 2010), ainda representam a identidade e constituem o reconhecimento do senso de existir de uma família, independentemente de sua configuração. Constatamos esse mesmo aspecto no discurso de algumas mães de famílias homoparentais, nas quais os signos usados eram "mães" para ambas, do casal feminino.

Mãe, claro, não é isso? Nós somos uma família. (FamMonoHete, M5, 53 anos)

Mamãe e mamãe, chama as duas de mamãe. Às vezes, ele sai com uma mamãe V. e mamãe S. (FamCasaHomo, M3, 36 anos)

Sim, ele ainda não diferencia, mas a gente sabe quem ele tá chamando. Ele chama "mamãããeeee" é a C. e também pelo horário que ele chama, a gente sabe quem ele está chamando, mas ele chama as duas de mamãe. (FamRecHomo, M2, 56 anos)

Eu de mãe e ela de apelido que ele colocou quando era pequeninho. (FamCasaHomo, M1, 56 anos)

Percebemos que as práticas de nomeação são influenciadas por uma cultura tradicional, apesar de constituírem novas modalidades de interação. Nas famílias entrevistadas, regidas pela mitologia da afetividade (Caillé, 2010), o sentido de ser mãe é determinado pelo laço afetivo, e independe do laço biológico e da existência de um pai presente. O ser mãe está respaldado na existência apenas do filho, ocupando lugar daquele que a faz reconhecer-se neste lugar geracional e nesta função.

Evidenciamos, assim, que a nomeação da função materna pelo signo mãe ainda permanece atrelada ao gênero e não a uma especificidade da função. Para além dessa questão, queremos destacar outro aspecto igualmente presente nos relatos de M2 e de M3, essas duas mães revelam que seus filhos chamam suas companheiras, e elas mesmas, de mãe. Porém, apesar de o mesmo signo ser usado para ambas, a necessidade de haver uma diferenciação fez-se necessária.

Constatamos, que a maioria das mães de famílias homoparentais relatam serem nomeadas de mãe, sem qualquer outro signo ser utilizado. Esses resultados corroboram com a noção apresentada por Zambrano (2006) de que não há confusão quanto ao gênero na parentalidade homoafetiva dos pais e, também, que as crianças não são prejudicadas no que concerne à aprendizagem da diferença entre os sexos, pelo fato de serem filhos de casais do mesmo sexo. Os papéis que regem tais configurações familiares apoiam-se nas identidades de gênero e na parentalidade tradicionais.

Por outro lado, em algumas entrevistas encontramos a presença da diferenciação mental das funções parentais, demarcando a existência de uma diferença, mas desligada de papéis de gêneros da sociedade tradicional. Um exemplo está no relato de um menino de 12 anos, de família recasada heteroparental, que ao explicar como chamava seu pai, fala que o chamava de "mãe" e depois corrige-se automaticamente. Pensamos que possivelmente esse pai poderia exercer fortemente seus aspectos maternos, reconhecidos pelo filho, inconscientemente, e revelados no ato falho. "Eu chamo minha mãe de mãe, meu pai de mãe, não, meu pai de pai, minha irmã de V. e eles me chamam ou de G. ou de filho." (FamRecaHete, Fo, 12 anos).

Outro exemplo está no relato de uma mãe, de família separada homoparental, que se diz chamada pelo filho de mãe e pai em inglês: "É engraçado que às vezes ele faz, ele fala mamidady, como se estivesse falando mãe e pai sabe, não sei de onde ele tirou isso, mas de vez em quando ele me chama assim, eu acho curioso." (FamSepaHomo, M1, 35 anos)

Consideramos que as duas falas acima ilustram o quanto os filhos fazem referência à existência de funções distintas, porém complementares, que estão presentes no exercício da parentalidade. Desse modo, a questão da função materna e paterna mostra-se evidentemente desatreladados papéis de gênero, mas relacionada a suas especificidades, tais como: a continência das ansiedades, a disponibilidade interna para se conectar com as emoções do filho, a separação da relação fusional primitiva e a introdução da criança na cultura. Isso confirma os resultados encontrados por Borges (2005) de que as funções materna e paterna parecem não estar sendo mais exercidas, de acordo com as identidades tradicionais de gênero, mas segundo as condições psicoemocionais para o exercício da parentalidade.

A fala de P1, membro de uma família mono homoparental, claramente, ilustra o quanto a capacidade de reconhecer-se como um pai precisa do reconhecimento do outro, sobretudo, do ato de nomear, para constituir o senso de existir. Parece que sem ser nomeado de pai, o laço de parentesco fica inverossímil. Notamos que, a partir da nomeação, a vivência de ser pai torna-se inquestionável quanto à sua verdade e concretude.

Era estranho né, a primeira vez ele (filho adotivo) me chamava de tio J., tio J., e eu queria que ele me chamasse de pai. Eu ficava com um ódio: "Mas, esse menino"... Todo mundo ficava: "Calma, calma". E aí num dia em que eu não dei atenção pra ele, ele: "Tio, tio, tio...", ele berrou: "Pai"! Aí deu aquele, parou tudo, hum, 'oi'. E daí em diante ele começou a me chamar de pai. Mas assim, ainda... até algum tempo atrás, soava meio estranho ainda, sou eu mesmo? Que legal. É legal, ainda hoje é legal, quando fala pai, é legal. (FamMonoHomo, P1, 42 anos)

Eu acho que é um pouco mais fácil pra mim, mas assim, é gostoso, chamar 'filho, vem cá'. Eu chamo ele muito de filho, é filho, pai, filho, pai, a gente fica meio reforçando esse filho, pai, até pra ouvir também porque é gostoso, ele gosta também, então a gente fala muito isso, é gostoso. (FamMonoHomo, P1, 42 anos)

O discurso de P1 corrobora as postulações de Eiguer (2012) sobre o psiquismo de dois sujeitos, ou vários, funcionar em reciprocidade, influenciando-se em diversos planos. As noções sobre os processos de parentalidade e de filiação são exemplos de transformações psíquicas que possuem como condição a mutualidade. Portanto, percebemos que a nomeação do lugar do sujeito é o ato de inscrever o laço de parentesco no campo mental, viabilizando a vivência de união entre os membros da família na cadeia geracional.

Verificamos que a questão da diferenciação, discutida anteriormente em relação às falas das mães nas famílias homoparentais, é determinada pelo complemento da palavra mãe com o nome próprio de cada uma, ou dando um tom de voz diferente, assim como outros sinais indicando a diferenciação. Pensamos que na própria nomeação do lugar do outro, é preciso haver um componente que singularize e aponte a unicidade daquele membro na família.

A minha mãe fica chamando todo mundo de Mô, Mô, Mô, aí todo mundo vem. Aí... quando ela chama alguém em especial ela chama Luca, Juca, Jujuba, que é pra J. que é Jujuba. Meu pai adora chamar ela de Jujuba. (FamRecaHete, Fa, 11 anos).

Podemos afirmar, a partir dessas falas, que o processo de nomeação aponta para a necessidade de legitimar o singular de cada sujeito na família, afim de que fique identificado seu lugar e o tipo de relação afetiva que existe na cadeia geracional. Esses dados indicam a pertinência da formulação de Eiguer (2012) sobre a necessidade de preservar a singularidade, ao mesmo tempo em que a história em comum que forma o senso de semelhança e, consequentemente, promove o sentimento de pertencimento.

Nesse sentido, podemos pensar que apesar de as escolhas das nomeações parecerem aleatórias e sem sentido, elas transmitem princípios da interação intersubjetiva, da transmissão psíquica geracional de sentidos e de fortes fontes culturais como a mídia. A esse respeito lembremos que Singly (2007) ressalta o quanto devemos sempre estar atentos à lógica contida nos mecanismos de atribuição das nomeações, pois significa uma antecipação do tipo de investimento afetivo que familiares desejam realizar uns em relação aos outros.

Nas famílias recasadas podemos observar, com muita clareza, a pertinência dessa afirmação deste autor. Percebemos, por exemplo, que as madrastas e padrastos, cuja relação com o enteado é mais distante afetivamente, ou ocorreu recentemente, a nomeação escolhida reflete o vínculo com o cônjuge, e não com o filho do cônjuge. Na fala de alguns filhos entrevistados (Fo4 e Fa5), podemos identificar esse efeito de a nomeação representar o tipo de investimento afetivo contido na relação.

O negócio dos nomes depende muito de como você conheceu a pessoa e como foram as suas primeiras impressões da pessoa também. Por exemplo, meu padrasto, eu chamo ele assim [apelido] porque é uma coisa mais carinhosa e minha madrasta, eu chamo ela assim [pelo nome] porque é uma coisa mais 'cada um no seu canto'. (FamRecaHete, Fo4, 16 anos)

A minha madrasta eu chamo de M.(parte do nome), que o nome dela é M., desde que eu conheci ela, todo mundo chama ela assim na verdade. (FamRecaHete, Fa5, 13 anos)

Esses dados corroboram as postulações de Saraiva, Levy e Magalhães (2014), Souza e Dias (2014) e Soares (2009) ao verificar que a relação entre padrasto/madrasta e enteados parece ser mantida pelo elo com a mãe recasada ou o pai recasado. No caso do entrevistado Fo4, a expressão "cada um no seu canto" nos faz pensar que a madrasta, por conta da distância afetiva, recebe um tratamento mais formal.

Em nossa pesquisa, todos os sujeitos pertencentes às famílias recasadas mencionaram fazer uso dos signos padrasto e madrasta. Apenas, uma das entrevistadas, fez referência aos sentidos pejorativos ligados a este tipo de nomeação. Esses dados vão ao encontro das postulações de Wagner et al.(2012) que ressaltam o quanto os termos "padrasto" e "madrasta" são evitados pelos membros de famílias recasadas, por estarem relacionados a uma conotação negativa e pejorativa.

Eu falo "minha madrasta" quando falo dela pros outros. Mas, quando falo com ela [madrasta], chamo ela pelo nome. (FamRecaHete, Fo4, 16 anos)

Quando eu falo diretamente para você, eu falo madrasta e padrasto. (FamRecaHete, Fa5, 13 anos)

Não observamos, também, nenhuma tentativa significativa de criação de expressões novas para se referir aos novos membros familiares, tais como destacados nas formulações de Pereira e Arpini (2012). Pelo contrário, nas práticas das famílias recasadas, evidenciamos o quanto as nomeações parecem estar calcadas nos modelos tradicionais.

Algumas entrevistadas de famílias recasadas usam signos diferentes para chamar seus padrastos/madrastas, porém estão atrelados às figuras da linhagem de parentesco tradicional. Uma delas (Fa10) chama a madrasta de "vó" pela idade avançada, enquanto outra (Fa5) chama o padrasto de "tio" por conhecê-lo há muitos anos. Um pai de família recasada (P5) e uma mãe/madrasta (M3), também, mencionaram o uso do signo "tia" para nomear a madrasta.

A minha madrasta eu chamo de vó, porque eu cheguei muito pequena lá na casa dela. (FamRecaHete, Fa10, 17 anos)

Ah, o meu padrasto como eu conheci desde criança, eu chamo ele de tio, desde que eu conheço ele. (FamRecaHete, Fa5, 13 anos)

Meu filho não, ele me chama de pai, e minha esposa de tia. (FamRecaHete, P5, 40 anos).

Os dados que encontramos corroboram a noção apresentada por Wagner e Falcke (1997) sobre o uso de apelidos ou de neologismos para a referência de alguns membros da família recasada. O termo "tio", segundo as autoras, é frequentemente utilizado pelos enteados, na tentativa de se apoiarem no modelo original de família, as de primeiro casamento, baseando-se nas relações já estabelecidas e conhecidas Oliveira (2005). Acrescentamos a essa ideia, a hipótese de que esses filhos, também, fazem uso de nomeações respaldadas no modelo clássico como uma tentativa defensiva de legitimar os lugares dessas pessoas na linhagem genealógica.

Quanto aos filhos de famílias separadas, nos casos em que um dos pais ou ambos estão em outro relacionamento, alguns se referiram aos novos parceiros dos pais como "namorada do pai", "namorado da mãe", chamando-os pelo nome ou pelo sobrenome, evidenciando a falta de intimidade existente nestes relacionamentos

É, mas eu falo "namorada do meu pai" e "namorado da minha mãe". (FamSepaHete, Fo1, 13 anos)

Eu chamo ele [namorado da mãe] de B. [sobrenome]. Mas normalmente era para chamar ele de P. [nome]. [A namorada do pai] chamo pelo nome, 'K'. (FamSepaHete, Fa6, 14 anos)

Minha mãe chamo de mãe, meu pai eu chamo de pai. Eles me chamam de G (apelido, parte do nome), meu pai me chama de um monte de coisa maluca. Chamo a I de I (apelido, parte do nome) e a T de T (apelido, parte do nome), E elas me chamam de G (diminutivo do nome). S. (como as irmãs por parte de pai chamam a madrasta), não chamam de mãe óbvio né, elas são grandes e elas não são filhas dela. (FamRecaHete, Fa, 10 anos)

Em relação aos meio-irmãos ou irmãos socioafetivos, alguns filhos se referem aos meio-irmãos e irmãos socioafetivos como "irmãos". Um dos filhos entrevistados (Fo4) que chama os irmãos socioafetivos de "irmãozinhos", contudo, ressalta fazer isto brincando, de forma a sugerir que este termo é carinhoso, mas denunciando uma diferenciação no tipo de vínculo fraterno. Outra entrevistada (Fa9) se refere à irmã socioafetiva, que mora com o pai dela, de "filha da namorada", evidenciando que esta nomenclatura se dá em função da falta de intimidade entre elas. Enquanto, outra entrevistada (Fa7) se refere ao irmão socioafetivo de "filho do G." [nome do padrasto] ou "quase-irmão".

É, porque isso de meio-irmão não é legal. Sei lá, para mim eles são meus irmãos. Ou é irmão ou não é, sabe? (FamRecaHete, Fa6, 14 anos)

Mas quando vou apresentar elas [irmãs socioafetivas] sempre falo que sou irmã delas, tipo, direto. (FamRecaHete, Fa8, 16 anos)

E os filhos da minha madrasta, eu falo, brincando, "meus irmãozinhos". (FamRecaHete, Fo4, 16 anos)

A filha da namorada! Por a gente não ser muito amiga, eu não considero uma meia-irmã. (FamRecaHete, Fa9, 15 anos)

Eu falo "filho do G. [padrasto]", mas às vezes eu brinco "meu quase-irmão". (FamRecaHete, Fa7, 15 anos)

Os dados encontrados corroboram a postulação de Pereira e Arpini (2012) sobre a convivência se apresentar como um forte fator de demarcação do elo fraterno.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observamos que as famílias, apesar de regidas pela mitologia da afetividade, ainda permanecem fiéis, em relação às práticas de nomeação, aos signos constituídos na mitologia da família tradicional. Analisamos, a partir das entrevistas, que de fato o rompimento com o passado é apenas relativo e parcial, porque mesmo em configurações contemporâneas as práticas de nomeação mostraram poucos aspectos de transformação. Pudemos constatar que as famílias homoafetivas apresentaram uma maior capacidade criativa nas práticas de nomeação em relação às funções parentais.

A presença de funções distintas no exercício da parentalidade foi apontada, assim como a necessidade de o ato de nomear e demarcar a singularidade de cada sujeito na cadeia geracional. Evidenciamos, assim, que o processo de nomeação se constitui como uma prática respaldada na reciprocidade da relação, por meio da qual busca-se legitimar o singular de cada sujeito,no grupo familiar, a fim de que fique identificado o seu lugar e a qualidade da relação afetiva entre os membros da família.

As diversas nuances da interação cotidiana entre os membros da família nas novas configurações familiares, muitas vezes, escapam ao que está formalmente estabelecido pelo contexto social e pela legislação. Uma das limitações do estudo está relacionada ao fato de os participantes pertencerem apenas aos segmentos médios da população carioca. Outra refere-se ao número limitado de participantes pertencentes a famílias homoafetivas. Consideramos importante o desenvolvimento de futuras pesquisas acerca do tema, principalmente, buscando compreender, de maneira mais ampla, os processos de nomeação em outros contextos socioeconômicos, e em famílias homoparentais e recasadas, nas quais a questão da nomeação apresenta maior relevância.

 

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Endereço para correspondência
Terezinha Féres-Carneiro
E-mail: teferca@puc-rio.br

Recebido: 24/06/2016
1ª revisão: 10/10/2016
Aceite: 15/10/2016

 

 

1 Terezinha Féres-Carneiro é Professora Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
2 Rebeca Nonato Machado é Pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
3 Renata Mello é Pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
4 Andrea Seixas Magalhães é Professora Associada do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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