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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.18 no.1 Ribeirão Preto Jan./Jun. 2017

 

ARTIGOS

 

Pedofilia: história de vida e o retorno para a família por meio de alta progressiva

 

Pedophilia: life story of individuals and their return to family by means of gradual discharge

 

Pedofilia: historia de la vida y el retorno a la familia por medio de alta progresiva

 

 

Caroline Velasquez Marafiga1, I; Denise Falcke2, I; Maycoln Leôni Martins Teodoro3, II

IUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo-RS, Brasil
IIUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O transtorno pedofilico faz parte do grupo das parafilias sexuais e se caracteriza pela prática de conteúdo sexual por adultos com crianças e adolescentes de até 14 anos de idade. Muitos homens que apresentam este diagnóstico estão cumprindo medida de segurança em Hospitais de Custódia por crimes sexuais contra vulneráveis, passando pela prática de desinternação gradual, chamada Alta Progressiva (AP). Este estudo objetivou investigar a história de vida e o retorno para as famílias, por meio da AP, de pacientes diagnosticados como pedófilos. O método utilizado foi o estudo de casos múltiplos e a construção dos casos foi feita pela análise das entrevistas e do prontuário dos pacientes, além de entrevistas realizadas com parentes dos mesmos. Este estudo corroborou achados da literatura, no sentido de que, nos dois casos analisados, constatou-se que um ambiente repressor e violento na infância pode estar relacionado com atos violentos quando adultos. Também foi evidenciado que o envolvimento da família no tratamento do paciente e na fase da AP mostrou-se fundamental, pois o sofrimento e a sobrecarga foram minimizados, aumentando a empatia e a interação entre eles. Essa alternativa de reabilitação psicossocial parece favorecer a reinserção no mundo fora do ambiente institucional.

Palavras-chave: pedofilia; alta progressiva; hospital de custódia; medida de segurança.


ABSTRACT

Pedophilic disorder is a sexual deviation characterized when adults sexually offend children and teenagers up to the age of 14. A large number of men diagnosed with such disorder are admitted in mental prison hospitals (as they have committed sexual crimes against vulnerable people) are subject to the so-called gradual discharge. The present study aims to investigate the life story and the return to family by gradual discharge process of patients with pedophilic disorder. The method used was the study of multiple cases and investigation was carried out by analyzing patients' interviews and their medical records. This study corroborates the findings in literature, considering both cases of study, in which a repressive and violent environment in childhood may be related to violent acts in adulthood. It was also proved that family engagement with the patients' treatment, especially during gradual discharge process, is of crucial importance as it minimizes patients' suffering and their burden of misery, thus developing empathy and interaction with each other. This model of psychosocial rehabilitation seems to favor social insertion outside an institutional environment.

Keywords: pedophilia; gradual discharge; mental prison hospital; preventive detention.


RESUMEN

El trastorno pedófilo es parte del grupo de parafilias sexuales y se caracteriza por la práctica de contenido sexual para adultos con niños y adolescentes de hasta 14 años de edad. Muchos hombres con este diagnóstico están cumpliendo las medidas de seguridad en los hospitales de custodia para los crímenes sexuales contra los vulnerables, a través de la práctica de la suspensión gradual de internamiento, llamado Alta Progresista (AP). Este estudio tuvo como objetivo investigar la historia de vida y el retorno a la familia, por medio de AP, de pacientes con trastorno de pedofilia. El método utilizado fue el estudio de caso múltiple y la construcción de los casos se realizó mediante el análisis de las entrevistas y los registros de los pacientes. Este estudio corrobora los hallazgos en la literatura, en el sentido de que, en los dos casos de estudio, un ambiente represivo y violento en la infancia puede estar relacionado con los actos de violencia en la vida adulta. También se demostró que la participación de la familia en el tratamiento del paciente y en la etapa de Alta Progresista es fundamenta, ya que el sufrimiento y la carga se reducen al mínimo mediante el aumento de la empatía y la interacción entre ellos. Esta alternativa de rehabilitación psicosocial parece alentar el retorno al mundo fuera del entorno institucional.

Palabras clave: pedofilia; alta progresista; custodia del hospital; medida de seguridad.


 

 

O problema da violência sexual contra crianças e adolescentes é complexo e árido (Dell'Aglio, Moura, & Santos, 2011). Estima-se que a prevalência de violência sexual na população mundial seja de 11,8%, a partir de metanálise realizada por Stolenborgh et al. (2011). O estudo abrangeu 331 amostras independentes, totalizando 9.911.748 participantes, sendo importante considerar que a prevalência foi 30 vezes maior nos estudos que envolviam autorrelato do que nos baseados em dados estatístico oficiais. Diante disso, a violência sexual possui um caráter endêmico, convertendo-se num problema de saúde pública (Habigzang, Dala Corte, Hatzenberger, Stroeher, & Koller, 2008; Soares, Silva, Matos, Araújo, Silva, & Lago, 2016), cujo enfrentamento torna-se um grande desafio para a sociedade.

A violência sexual contra crianças e adolescentes é caracterizada como uma prática sexual com indivíduos menores de 14 anos, com consentimento ou não dos mesmos, destacando que eles não são considerados capazes de tomar decisões desta natureza (Scortegagna & Amaral, 2013). Ela pode incluir desde carícias, olhares perturbadores, até crimes de extrema violência e morte. Pode-se considerar que a violência sexual infantil é uma forma de agressão que envolve poder (Morais, Santos, Moura, Vaz, & Koller, 2007), coação e/ou sedução, combinando duas desigualdades básicas: de gênero e de geração (Eguiarte & Antillón, 2005; Laks, Werner, & MirandaSá, 2006; Vagostello, Oliveira, Silva, Donofrio, & Moreno, 2006), evidenciando a interdependência das relações sociais e as formas conjugadas de opressão (Hirata, 2014). Normalmente, estão associadas ao abuso sexual infantil outras formas de violência, como a negligência e os abusos físicos e emocionais (Habigzang et al., 2008).

Segundo o DSM V (APA, 2014), a ocorrência de violência sexual infantil durante seis meses, seja ela intra ou extra familiar, é considerada pedofilia. Fazendo parte do grupo das parafilias, o transtorno pedofílico é classificado como um transtorno sexual caracterizado por fantasias, comportamentos recorrentes, intensos e sexualmente excitantes em relação a crianças e adolescentes em fase pré-pubere (até 14 anos de idade). Os critérios diagnósticos incluem a prática destas fantasias e dos impulsos sexuais de indivíduos que tem, no mínimo, 16 anos, e é pelo menos cinco anos mais velho do que a criança com quem se relaciona sexualmente.

O elemento comum nos indivíduos que apresentam o transtorno pedofílico é o abuso sexual de crianças, as quais são seduzidas e usadas com distintos propósitos de satisfação sexual (Duque, 2004; González, Martinez, Leyton, & Bardi, 2004). Tal satisfação normalmente envolve um conteúdo de humilhação e/ou sofrimento (Baltieri, 2013).

Alguns autores de violência sexual contra crianças e adolescentes se encontram cumprindo medida de segurança em hospitais de custódia, em decorrência do nexo de causalidade entre o crime e a avaliação do seu estado mental. Para que o indivíduo seja considerado irresponsável pelos seus atos, é necessário considerar o grau de evolução da doença ou da perturbação mental, bem como a natureza do crime (Peres & Nery Filho, 2002). Em alguns hospitais de custódia do país, fazem-se presentes práticas de desinternação gradual de indivíduos considerados como inimputáveis. Estas práticas visam reabilitar psicossocialmente os pacientes que cumprem medida de segurança, propiciando aos internos boas condições para consolidação de uma readaptação à sociedade efetiva (Menezes, 2005).

O Instituto Psiquiátrico Forense Dr. Maurício Cardoso (IPF), localizado no Estado do Rio Grande do Sul, desenvolveu uma prática de reabilitação para seus internos chamada de "Alta Progressiva" (AP). A AP se configura como um beneficio que o Poder Judiciário designa aos indivíduos internados em manicômio judiciário. Através deste benefício, é possível que os pacientes viabilizem algumas saídas do instituto, durante o cumprimento de suas medidas de segurança (Marafiga, Teodoro, & Coelho, 2009). Estas saídas podem se configurar em passeios diários, para os quais os indivíduos são liberados do instituto algumas horas por dia para trabalhar ou para caminhar pela cidade, fazer compras e visitar familiares. De acordo com a remissão dos seus sintomas, aderência ao tratamento e o apoio familiar, essas saídas têm seu tempo aumentado gradualmente, até chegar a um momento em que os pacientes ficam fora do IPF durante meses, retornando apenas para a realização de entrevistas de avaliação do seu estado mental. Entretanto, para que este benefício ocorra, os pacientes devem apresentar evolução em seu tratamento e diminuição de seus sintomas, bem como a evidência da capacidade de aceitação de suas famílias (Menezes, 2005; Pacheco, 2006).

Em nossa sociedade, a família é encarada como instância encarregada da proteção e do caráter afetivo de seus membros (Matias, 2006; Pelisoli, Teodoro, & Dell'Aglio, 2007). Tendo em vista a compreensão da importância da família no processo de reinserção social dos indivíduos, este artigo tem como objetivo investigar a história de vida e o retorno para as famílias, por meio da AP, de pacientes diagnosticados como pedófilos.

 

MÉTODO

DELINEAMENTO

Trata-se de um estudo de casos múltiplos (Yin, 2005). O Estudo de Caso foi escolhido como estratégia por se tratar de um método que privilegia a abordagem contextualizada de um fenômeno contemporâneo. Ele permite investigar o fenômeno de maneira robusta, por meio da triangulação de instrumentos e fontes de dados, nesse caso, pacientes e familiares.

PARTICIPANTES

Participaram deste estudo dois homens diagnosticados como pedófilos (de acordo com os critérios diagnósticos do DSM V, APA, 2014), por cometeram crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Esses indivíduos foram absolvidos pelo juizado por ser constatada, através de perícia psiquiátrica e psicológica, a existência de transtorno mental relacionado ao ato ilícito que praticaram. Um dos participantes estava cumprindo medida de segurança no IPF para tratamento. Este indivíduo tinha recebido o benefício da AP e o perdido por reincidir no crime. O outro participante já havia cumprido o tempo de sua medida de segurança e estava em sua respectiva residência, usufruindo do benefício da AP, retornando ao instituto a cada três meses para avaliação. Também participou do estudo um familiar de cada participante (irmã e prima).

INSTRUMENTOS

Ficha sociodemográfica, contendo questões sobre idade, renda mensal da família, escolaridade, profissão e estado civil dos participantes. Ela teve como finalidade recolher informações que possibilitaram descrever o paciente em processo de AP.

Entrevista semiestruturada, buscando investigar os sentimentos e as percepções dos pacientes e de seus familiares sobre o retorno dos primeiros às suas famílias e residências, por meio da prática da AP. Também objetivou explorar a história de vida dos participantes.

Análise de prontuário, com a finalidade conhecer a história pregressa dos participantes e a história do crime cometido. Além disso, permitiu conhecer a evolução do paciente no instituto, desde sua entrada até o recebimento do beneficio da AP.

PROCEDIMENTO

COLETA DE DADOS

Foi feito, primeiramente, um contato formal com o IPF. Posteriormente, o projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Parecer 046/08, de 23 de julho). Após a aprovação uma cópia do documento foi encaminhada ao Ministério Público e ao Juiz da Vara de Execuções das Penas e Medidas Alternativas (VEPMA) para avaliação. Após a aprovação, foi iniciado o processo de recrutamento. Estes indivíduos deveriam ser ou terem sido, em algum momento de suas vidas, pacientes do hospital de custódia, além de receberem o diagnóstico de pedofilia (conforme DSM V, APA, 2014), com ou sem comorbidades, na ocasião da perícia de responsabilidade penal, realizada por peritos forenses do IPF. Os pacientes também deveriam estar passando, ou já terem passado pelo processo de desinternação gradual, chamado Alta Progressiva. Também participou do estudo, um membro da família de cada participante.

Aos participantes foram informados os objetivos do estudo bem como o manejo dos dados, deixando-os livre para participar. Após, ocorreu às assinaturas do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foi preenchida a Ficha Sociodemográfica. As entrevistas individuais (primeiramente com os pacientes, em seguida com os familiares) foram realizadas no IPF, em salas de atendimento psicológico, com cerca de duas horas de duração, gravadas em áudio e posteriormente transcritas. Além dos pacientes e dos seus familiares, o diretor geral da instituição também assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, considerando que os participantes estavam ou estiveram sob custódia. A identidade do participante foi preservada.

ANÁLISE DOS DADOS

A interpretação dos dados seguiu os cinco componentes descritos por Yin (2005). O primeiro é a elaboração das questões de pesquisa; o segundo às proposições teóricas (revisão de literatura sobre à temática, que direcionam a atenção do pesquisador para o que deve ser examinado); o terceiro componente está relacionado à unidade de análise, neste estudo agressor e familiar; o quarto componente refere-se à lógica que vinculará os dados coletados às proposições teóricas e o quinto aos critérios de análise. Com relação a estes dois últimos tópicos, foi feita uma descrição geral do caso, orientada pelos objetivos do estudo.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

CASO 1

Marcos é o terceiro filho de uma família composta por pai, mãe, um irmão mais velho e uma irmã do meio. O paciente afirmou ser solteiro, não possuir filhos e completou dizendo que nunca teve namorada. Ele relata que teve uma infância complicada, sendo internado em hospitais por diversas vezes em função de meningite e pneumonia. Além disso, comenta que sua mãe não conseguia exercer os cuidados maternos, pois era acometida de diabetes e complicações renais. Em função destes problemas, sua irmã assumiu os cuidados com Marcos. Ele comenta que manteve uma boa relação com os pais durante a infância, entretanto, ressalta que considerava o pai "radical" em suas atitudes. O paciente afirma que seu pai tinha costume de humilhar os membros da família. O pai era alcoolista e segundo o paciente:

O meu pai dava bebida pra mim quando eu era pequeno... de brincadeira... pra dizer que: 'bah, meu filho é homem!'. Com 10 anos, tomei um porre de vinho. Era tímido. Tinha vários preconceitos de mim mesmo. Autoestima baixa, entendeu? Daí, eu comecei a usar para ver se me levantava o astral.

Em 2001, Marcos foi até a casa do pai e da madrasta portando uma arma de fogo. Muito alcoolizado, começou a discutir com o pai. Ele relata:

Eu guardava muito rancor, muita raiva dele, entendeu? É! Eu atirei no meu pai, na minha madrasta, nessa sogra do meu pai e na enteada dele. Eu prefiro esquecer, sabe? Porque aquele momento eu fiz vítima, mas eu também fui vitima depois, entendeu? Eu não matei só o meu pai, eu matei a mim mesmo um pouco.

Marcos foi encaminhado ao IPF em 2001 pelo crime de homicídio qualificado, tendo seu pai como vítima, além de tentativa de homicídio contra a madrasta e os familiares da mesma. Segundo o perito responsável pela avaliação, Marcos teve o diagnóstico de transtorno de humor, tipo bipolar, uso abusivo de álcool, retardo mental leve, considerado totalmente inimputável. Em 2005, Marcos passou a usufruir do benefício da AP. No ano de 2006, passou a trabalhar fora do IPF. Em uma ocasião, na qual estaria indo trabalhar, foi pego molestando sexualmente uma menina, com idade aproximada de 12 anos, conforme prontuário, em um supermercado que se localizava em frente ao Instituto. Marcos inicialmente negou o fato, mas logo depois afirmou que estaria "passando a mão na bunda dela". A irmã acabou se afastando de Marcos logo após a ocorrência deste episódio. O irmão também declarou que não gostaria mais de levá-lo para passeios, pois tem uma filha ainda criança e temia pela questão do crime sexual. Além do distanciamento dos familiares, Marcos perdeu o benefício da AP e foi submetido a uma nova avaliação pericial multidisciplinar (psiquiátrica e psicológica). Durante a avaliação, com foco mais específico no crime sexual, foram identificadas outras situações de violência sexual contras crianças e adolescentes, inclusive com penetração, mas que Marcos não reconhecia, em um primeiro momento, como situações de violência. Nessa ocasião que Marcos recebeu o diagnóstico de transtorno pedofílico.

Durante as entrevistas, Marcos comentou que existiam outros casos de homens em sua família que abusaram sexualmente de crianças e adolescentes:

Tem um tio meu que era assim, que é assim. Uma vez ele foi posar lá em casa e tentou agarrar a minha irmã a força. Aí o meu pai, ao invés de mandar ele embora, né? Não! Só botou a minha irmã pra dormir com eles lá... no caso, meu pai e minha mãe, né? Deixou ele ali. Então, é esse tipo de coisa que as relações favorecem, que tu seja inclinado a uma certa coisa, entendeu? Tu tá num ambiente que aquilo ali é normal.

Além do caso deste tio, Marcos comenta que escutou que seu pai teria abusado sexualmente de uma menor: "Eu sei que ele tinha uma afilhada que era aleijada, sabe? Ficava na cadeira de rodas. Disseram que pegaram ele molestando a guria, entendeu? E ela era menor!". Contudo, o paciente expõe que este assunto não fora muito comentado com os membros da família, principalmente pelo pai: "nunca... nunca ia debater sobre aquilo ali!".

O paciente afirma nunca ter sido abusado sexualmente pelo pai, apesar de ter sido vítima de violência sexual aos dez anos de idade: "eu tive um problema com isso... Me molestaram. Só que eu não quero dizer quem foi". Quando questionado sobre seus sobrinhos, imediatamente respondeu que nunca abusou deles. Entretanto, refere: "Já pensei, mas eu resisti. Graças a Deus! Eles são do meu sangue, né? Aí, eu fico me sentindo mal depois!".

Marcos comenta que tem o desejo de constituir sua própria família. Porém, afirma saber de suas condições em relação aos impulsos sexuais que sente por crianças. Ele expõe:

Eu procurei ajuda, porque eu tenho que tá preparado pra ter um filho, emocionalmente, entendeu? Porque imagina se eu tenho um filho ou uma filha, pior uma filha. Se eu faço essas mesmas barbaridades que eu fazia com as crianças, com a minha filha. Aí como que vai ser? Vou ficar louco! Que pai que eu vou ser? Que exemplo?

Ana afirma que o irmão nunca havia expressado atitudes violentas até o assassinato do pai. Todavia, salienta que Marcos sempre foi uma pessoa "diferente" dos demais membros da família. Marcos refere que já no início de sua adolescência apresentava atração sexual por crianças/adolescentes. A irmã de Marcos, entretanto, afirma que não tinha conhecimento sobre a atração que seu irmão possuía por crianças. A mesma expõe que só passou a ter ciência da situação quando seu irmão abusou sexualmente da menina no mercado. Sobre a relação com sua família, Marcos comenta que se sente privilegiado em comparação a outros pacientes do IPF: "Olha, eu sou um cara muito de sorte pelo que eu fiz, porque eles são muito presentes... mais presente a minha irmã do que o meu irmão, sabe?". O irmão de Marcos não o visita costumeiramente, pois demonstra relutância em perdoar o irmão pela morte do pai. Entretanto, em todos os momentos em que foi solicitado a comparecer ao IPF, fez-se presente sem causar empecilhos. A irmã acrescenta que a relação do paciente com o irmão também se agravou após a descoberta dos crimes sexuais:

Quando ele teve chance de sair todos os dias, que ele tinha um trabalho, que ia lá e ficava com meu irmão, pelo menos ele tinha outras atividades, não era só ficar aqui dentro, né? Ele ia lá, ia começar a conviver com a família de novo, com meu irmão que é mais difícil também, meu irmão deu uma chance pra ele, ele estragou tudo, né? Ele tem que aprender a valorizar as chances que ele tem, porque é cansativo pra gente.

Marcos afirma que em muitos momentos se sente apto a voltar para sociedade. O paciente comenta que havia fugido recentemente do instituto. Nesta fuga, foi visitar uma tia e uma prima em Santa Catarina e comenta: "Esses 23 dias que eu fiquei lá, eu fiquei ajudando elas lá, trabalhando. Não bebi, sabe? Fiquei normal!". Foi questionado a Marcos se ele não teria o desejo de ir morar com a irmã e os sobrinhos. O paciente respondeu que ficaria um tanto complicado, já que sua irmã nutre sentimentos como medo dele. Ele comenta:

É que no caso... a minha irmã... fica meio complicado porque ela... ela tem medo de mim. Ela sempre teve medo, depois que eu matei meu pai, entendeu? Da reação de eu entrar em surto e resolver matar ela e as crianças. De eu ficar louco, entendeu?

A irmã de Marcos comenta em diversos momentos da entrevista que não teria condições de abrigar o irmão em sua residência. A mesma afirma: "É uma responsabilidade que eu não tenho condições de assumir! Um acesso assim eu posso dar, entendeu? Eu não vou ficar controlando, eu não quero esse compromisso pra mim, entendeu? Ajudar sim!"

Ao mesmo tempo, Ana comenta que deseja muito que seu irmão saia do instituto, apesar do seu receio em relação à questão da violência sexual. Ela expõe:

Eu quero muito que ele saia daqui, é o meu sonho. Só que eu não tenho tempo disponível, eu não tenho essa situação de vigiar, de ficar cuidando... 'não senta no colo do titio', sabe? Ele tem que sair daqui e tem que tá preparado pra viver. Ele tem que saber controlar essas coisas dele, entende? Eu não vou poder assumir de vigia dele.

ENTENDIMENTO DO CASO 1

Marcos se reconhece como uma pessoa de sorte por ter o apoio familiar que muitos outros pacientes não desfrutam. A convivência familiar, especialmente nos casos de atentados contra a própria família, é muito difícil, principalmente quando o crime do paciente ocorre dentro de sua casa (assassinato do pai) ou coloca em risco as relações (risco de violência sexual contra os sobrinhos). Muitas vezes, os familiares não sabem como lidar com essa convivência (Menezes, 2006; Messias, 2006). No entanto, a família se configura como suporte para o tratamento dos pacientes (Corocine, 2006; Oliveira & Menezes, 2016) e, no caso de Marcos, há participação efetiva da irmã e também do irmão, quando solicitado. Spadini e Souza (2006) identificaram que é uma figura feminina quem, normalmente, assume os cuidados de pessoas com sofrimento psíquico.

Marcos refere, em relação à pedofilia, várias situações inadequadas em seu ambiente familiar (um tio tentou abusar a irmã, o pai teria abusado uma afilhada e ele também teria sido molestado). González (2006) expõe que, de acordo com a teoria da aprendizagem social, muitos abusadores aprenderam o uso da violência em sua adolescência, incluindo maus tratos na infância e vitimização sexual. No mesmo sentido, a teoria de quatro pré-circunstâncias afirma que, para que o abuso ocorra, é necessário que haja motivação para abusar, que pode ser decorrente de experiências próprias traumáticas ou de pessoas adultas próximas (González, Martínez, Leyton, & Bardi, 2004). Estudos relatam que a situação de violência sexual na infância está significativamente associada a um comportamento violento mais tarde, caracterizando o processo de transmissão intergeracional (Colossi, Marasca & Falcke, 2015; Meneses, Stroher, Setubal, Wolff, & Costa, 2016).

Por outro lado, é esse mesmo sistema familiar que pode auxiliar na ressocialização. Marcos relata uma fuga e ida para casa de uma tia, onde se sentiu muito bem. De acordo com Pacheco (2006), a reaproximação com os familiares proporciona aos pacientes, uma maior segurança no momento da alta definitiva. Quanto mais unida e engajada se encontra a família, maiores são as chances de superação das dificuldades, facilitando o tratamento, na tentativa de deixá-lo mais suportável (Borba, Schwartz, & Kantorsky, 2008; Oliveira & Menezes, 2016). Mesmo que, para os familiares destes indivíduos, algumas manifestações de sentimentos e emoções sejam de difícil compreensão e aceitação (como o medo da irmã de Marcos em relação às atitudes dele), o envolvimento da família é fundamental para o tratamento.

CASO 2

Davi compareceu pela primeira vez ao IPF em 1988, por ter cometido o crime de atentado violento ao pudor contra um menino de sete anos. Segundo avaliação psiquiátrica, Davi mostrava-se muito ansioso, alegando que os vizinhos teriam "embolado um plano" contra ele. Conforme laudo pericial (elaborado por peritos psiquiatras forenses do IPF), na ocorrência do exame de responsabilidade penal, a justificativa que Davi usava para isentar-se da acusação de estar mantendo relações sexuais com um menino era "bastante débil e inconsistente". Como conclusão, os psiquiatras diagnosticaram transtorno pedofílico e afirmaram que, por perturbação da saúde mental e desenvolvimento mental incompleto, Davi foi considerado inimputável. Em agosto de 1990, Davi passou a se beneficiar das saídas da AP. Além de Davi, sua prima Maria também participou da coleta de dados da pesquisa.

Maria relata que a mãe de Davi sofria de epilepsia e seguidamente tinha crises. De acordo com ela, em uma tarde, na qual a mãe de Davi estaria em casa sozinha, o pai dele teria ido visitá-la e, em um momento de crise epilética da moça, teria estuprado-a. Maria comenta que sua tia teria engravidado neste dia. Em função disso, os familiares obrigaram o abusador a casar com a moça. Segundo Davi, seu pai teria falecido quando o mesmo tinha dois ou três anos, sendo que ele não soube afirmar a causa da morte. Sua mãe teria falecido quando o mesmo tinha sete anos, por complicações no coração. Com o falecimento materno, ele e seus irmãos ficaram sob os cuidados da avó, que também veio a óbito pouco tempo depois. Davi e seus irmãos passaram a morar com um tio, que os teria colocado para estudar em um internato. O paciente narra que a escola era dirigida por padres e que os mesmos usavam de violência física para tratar os internos. Em entrevista, Davi expõe também situações de violência sexual observadas. Ele comenta: "A relação do padre era ruim, né? Era muito ruim porque... porque ele tinha um dos guri que trabalhava com ele, ele tinha uma relação com esse guri. Aí ele chorando falou pra nós e eu fiquei quieto, né?"

Quando questionado a Davi, se ele e seus irmãos também teriam sido vítimas dos abusos sexuais do padre, prontamente respondeu: "Não, nada! Ele só bateu em nós. Ele bateu, deu de soco em nós, porque ele era muito ruim mesmo". Apesar de negar que tenha sido vítima de violência sexual, a prima de Davi comenta que acredita que o primo tenha sofrido abuso sexual no internato. Ela afirma: "Acredito que já... já! Já porque ele fala. Quando ele tava interno, lá no internato".

Anos mais tarde, Davi teria ido morar numa cidade da região metropolitana de Porto Alegre com seu irmão, perto de seus familiares. Em sua comunidade, Davi conheceu um menino de sete anos, que aqui vamos chamar de Juliano. Com este menino, Davi passou a conversar dando início a uma amizade. Em um dia, Davi teria ido a uma chácara com o menino e durante o percurso:

Ele pegou e chegou assim: 'eu queria ter uma relação contigo'. E eu disse: 'Não Juliano, que é isso? Pensa bem né cara, ou tu é meu amigo ou tu não é!' Aí, quando eu fui ver, eu tava ali. Quando eu fui ver, ele queria que eu fizesse relação com ele ali. E eu disse que não! Eu não quis! Aí, quando eu fui ver, apareceu o primo dele e nos pegou em fragrante, ele pelado ali na minha frente.

Assim, pelo crime sexual contra o menino, Davi foi internado no IPF para cumprimento de medida de segurança. Em 1990, Davi passou a se beneficiar das saídas da AP. Depois de permanecer cinco anos fora do IPF, Davi foi trabalhar em um condomínio. Neste local, o ex-interno desempenhava suas atividades com serviços gerais. Um dia, Davi estaria cuidando das piscinas quando reincidiu no crime, violentando sexualmente uma menina de 10 anos de idade, moradora do condomínio. Ele comenta:

Tava trabalhando, cuidando das piscinas, tudo normal, né? Aí, eu fui no almoxarifado, só que tinha uma mais gracinha que cumprimentou e se engraçou comigo, né? Começou fazendo gracinha e tudo mais, né?! 'Oi, tudo bom?' E, eu disse: 'Bah, tu sabia que não pode entrar aqui no almoxarifado comigo? Que tu tá fazendo aqui?'. Ela não quis sair de dentro do almoxarifado. Aí, quando eu fui vê ela: 'Não, eu só vou sair daqui se tu me der um beijo'. Quando eu fui dar um beijo no rosto dela, ela virou a cara e fez eu dar um beijo na boca dela.

Maria relata que, quando o primo obteve a liberação do instituto para sair em AP, os técnicos conversaram com os dois e, segundo Maria, comentaram: "O Davi tá aqui por isso, isso e isso. Eu vou te avisar, já que tu vai te responsabilizar, já que tu tem uma filha pequena, não pode deixar nunca o Davi só com ela". Apesar das conversas com o corpo técnico responsável pelo caso de Davi, o mesmo nunca confessou para a prima que tivesse abusado de qualquer criança ou adolescente. Segundo ela:

Pra mim não, pra mim ele não admite! Ele não fala! E eu sempre digo: 'espero que tu nunca, que tu controle isso que tu tem dentro de ti, já que tu diz que é uma doença, né? Que tu controle! Não só com a minha filha, mas com qualquer criança. Mesmo que essa coisa te atiça, tenta te controlar, te manter'. E às vezes: 'tá sai de cima do Davi, não quero que tu fique no colo do Davi. Lembra do que eu te falei?' Eu tô agindo pra proteger. Eu tô protegendo ele e ela, não tô?

Sobre a relação com sua prima, Davi comenta que: "Ela é uma mãe pra mim! Ela é a minha responsável". A prima complementa dizendo que, apesar das brigas, Davi é sempre muito carinhoso com ela. Maria narra:

Ele me beija e me abraça. Se eu tiver que ficar nua na frente do Davi, o Davi jamais ia se passar comigo! É como irmão! E a minha mãe diz assim: 'acho que às vezes ele te vê como mãe! Porque tu age como se fosse a mãe dele' Ele me respeita!

Maria diz que, apesar de ser muito difícil conviver com Davi, não irá desistir de ajudar o parente em seu processo de ressocialização. Afirma que sua filha mais velha tem uma boa relação com Davi: "Com a mais velha ele se dá bem, mas de vez em quando eles têm meio que uns atritos, porque ela é meio sem paciência e ele tira as pessoas do sério". O paciente comenta que ao entrar no IPF seus familiares: "ficavam muito sentido com isso e ficavam com medo de entrar também, só isso. Medo de entrar e ficavam sentido, por eu ter entrado aqui, o único da família. Ninguém caiu nessa tentação como eu cai!"

No momento da entrevista, Davi se encontrava usufruindo o benefício da AP em sua casa, tendo contato seguido com sua família. Foi questionado ao paciente como estava sendo sua vida, depois do IPF. Davi comenta: "Graça a Deus, tudo tá indo bem. Eu pretendo me afastar de tudo que há de ruim porque a gente nunca sabe o que pode acontecer, como essa guria... de pegar a gente de surpresa, né?".

Maria comenta que estará sempre atenta, em relação às atitudes de Davi, no momento da alta definitiva. Além disso, a prima expõe que estará sempre em contato com os profissionais do IPF. Ela comenta que, apesar do carinho e dedicação que apresenta pelo primo, muitas vezes se sente sobrecarregada com a situação. Refere que gostaria: "Que ele fosse mais independente! Ah, que não dependesse muito de mim. Eu tô muito sobrecarregada. Eu tô assim ó... estressada!". Logo após ela comenta:

"se bem que o Davi não me incomoda, ele faz as coisas dele e não me incomoda. Só que assim, eu não quero ficar com tanta preocupação do quê que ele tá fazendo na casa dele ou deixando de fazer. Porque vai ser demais pra mim".

ENTENDIMENTO CASO 2

A história de Davi é marcada pela violência sexual desde a sua concepção, quando a mãe engravidou em uma situação de estupro efetuado pelo pai dele. Na infância, após o falecimento dos progenitores, também refere experiências de violência vividas e presenciadas no internato. Pode ser considerado, frequentemente, como um fato relacionado à pedofilia, que o pedófilo também já haveria sofrido traumas e abusos sexuais infantis (Pires & Miyazaki, 2005). González, Martínez, Leyton e Bardi (2004) chamam atenção para o fato de que o surgimento do abuso sexual pode ocorrer tanto por fatores socioambientais, como por variáveis culturais associadas à família de origem do abusador. Situações como experiência de abuso sexual e ausência de um ambiente de cuidado e afeto, podem ocasionar a constituição de um abusador (Aragonés de la Cruz, 1998). Além destes fatores, questões psicológicas individuais, como baixa autoestima (Carvallo, Martínez, Petit, & Calimán, 2007; Pires & Miyazaki, 2005), depressão e habilidades sociais inadequadas, também tornam possível que um indivíduo se torne abusador sexual infantil (González, Martínez, Leyton, & Bardi, 2004).

Davi conta com o apoio da prima em toda a sua história, pois ela chega a exercer uma função materna. Esse apoio foi fundamental no contexto da AP. A reaproximação da família possibilita que a alta passe a ser viável, configurando as saídas terapêuticas como um dispositivo de diminuição da ansiedade no momento da alta definitiva (Pacheco, 2006). A subjetividade do indivíduo institucionalizado, muitas vezes, passa a ser dificultada, pois esse passa a aceitar o cotidiano institucional como algo presente em seu mundo interior. Com isso, a relação com sua família e com o contexto social torna-se difícil por ser significantemente afetada pela falta de independência do indivíduo (Batista, Bandeira, & Oliveira, 2015; Corocine, 2006). Esse fato pode ser observado quando a prima refere o quanto ela se sente sobrecarregada e apreensiva com o que ele pode fazer.

Sabe-se que o processo de ressocialização é bastante complexo, tanto para os pacientes institucionalizados, quanto para suas famílias e até mesmo para a sociedade em geral. O momento da saída definitiva do manicômio é muito esperado, entretanto, na maioria dos casos, este momento vem acompanhado de muita angústia e incertezas em relação à vida fora do ambiente institucional (Spadini & Souza, 2006).

É reconhecido o valor que a família tem ao se tratar de apoio ao portador de sofrimento psíquico em reabilitação. Com a ajuda dos familiares, a qualidade de vida do portador de sofrimento psíquico aumenta, pois se tem o entendimento de que a participação da família é fundamental para o tratamento (Spadini & Souza, 2006). Segundo Narvani e Hirdes (2008), a família deve ser vista como aliada na reabilitação psicossocial do paciente, pois deve atuar na promoção da saúde, no bem-estar e na produção de sentidos do individuo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da história de vida dos dois pacientes permite reconhecer semelhanças no caso de Marcos e de Davi, como a ausência de uma família protetora e afetiva, especialmente no que se refere ao papel dos genitores. De acordo com Padilha e Gomide (2004), um ambiente repressor e violento propicia a transmissão intergeracional da violência. Segundo a teoria da transmissão intergeracional da violência, pessoas que foram vítimas de violência na infância, tendem a reproduzir os atos na adultez. Além desta situação, a questão da vitimização sexual também faz parte da história dos dois indivíduos. Marcos comentou em entrevista que foi vítima de violência sexual na infância. Mesmo não tendo informações a respeito do perpetrador da violência, sabe-se que esta deixou marcas profundas na vida do interno. Em relação a Davi, o abuso sexual encontra-se enraizado desde a sua concepção, ainda que não se tenha certeza sobre uma vitimização direta do mesmo na infância. Em seus relatos, ele não confirma ter sido abusado sexualmente. Entretanto, a prima de Davi relata que o mesmo já teria comentado, por diversas vezes, que teria sido abusado pelos padres do mesmo internato o qual seu colega foi vitimizado.

Maria, prima de Davi, expôs que sofreu muito ao saber que o primo estaria internado em um manicômio judiciário. Ela comenta que se sente sobrecarregada por ter que administrar a vida dele, assim como a irmã de Marcos, confirmando dados da literatura (Batista, Bandeira, & Oliveira, 2015). Ambas também evidenciam preocupação com eles em relação aos seus filhos, considerando, principalmente, o risco do abuso sexual. Apesar das dificuldades em tutelar um ex-interno de instituição psiquiátrica, as familiares acreditam na recuperação deles. Para a irmã e a prima, as adversidades do tratamento são menores do que a força de vontade em ajudar os pacientes a recuperar sua autonomia. De acordo com Borba, Schwartz e Kantorski (2008), o envolvimento da família no tratamento do paciente que possui sofrimento psíquico é fundamental. Assim, o sofrimento e a sobrecarga são minimizados, aumentando a interação e a empatia entre eles. Além destas questões, é imprescindível que a família receba orientações em relação aos procedimentos e cuidados com o integrante portador de transtorno mental.

Ana, irmã de Marcos, expôs em entrevista que está menos disposta em ajudar o irmão do que um dia já esteve. Mesmo assim, quando Marcos recebeu o benefício da AP, Ana diz ter tentado ajudar o irmão de todas as formas possíveis. De acordo com a mesma, falar sobre o irmão lhe causa grande sofrimento. Ana afirma que gostaria muito que seu irmão saísse do instituto, para recuperar sua vida e até formar uma família. Porém, ela expõe que não teria condições psicológicas e nem financeiras de assistir o irmão, de vigiá-lo. Mesma expressão utilizada pela prima de Davi. A sobrecarga do cuidado com o paciente que sofre psiquicamente é, muitas vezes, insuportável, pois pode tornar-se uma relação sustentada pela tolerância e paciência. Muitos membros das famílias portadoras de pessoas com transtornos mentais, assim como Ana e Maria, apresentam sobrecarga emocional com a situação da doença do familiar (Borba, Schwartz, & Kantorski, 2008; Batista, Bandeira, & Oliveira, 2015). Nesse sentido, profissionais de saúde devem estar atentos também às demandas dos familiares no contexto da alta progressiva.

O presente estudo teve algumas limitações, especialmente relacionadas à dificuldade de acesso aos participantes, considerando a necessidade de terem o diagnóstico de transtorno pedofílico, realizado na avaliação pericial de responsabilidade penal, bem como terem sido beneficiados com a alta progressiva. Todavia, apesar de contar com apenas dois participantes e seus familiares, o estudo de caso mostrou-se como um método adequado para a compreensão em profundidade do fenômeno de estudo. Os resultados permitiram destacar a necessidade de um olhar para além da punição aos ofensores sexuais infantis, mas com atenção para o seu diagnóstico, tratamento e reabilitação psicossocial. Além disso, destaca-se a necessidade de atentar para as interações familiares que podem dar suporte à reinserção social.

 

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Errata

(http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702017000100005&lng=pt&tlng=pt), na página 50, há ausência de uma informação relevante que pode causar problemas na compreensão da ideia expressa. Sendo assim:

Onde se lia:

"Segundo o DSM V (APA, 2014), a ocorrência de violência sexual infantil durante seis meses, seja ela intra ou extra familiar, é considerada pedofilia".

Leia-se:

"Segundo o DSM V (APA, 2014), a existência de fantasias sexualmente excitantes, impulsos sexuais ou ocorrência de violência sexual infantil durante seis meses, seja ela intra ou extra familiar, é considerada pedofilia".

 

Endereço para correspondência
Caroline Velasquez Marafiga
E-mail: carolvmarafiga@hotmail.com

Recebido: 01/09/2016
1ª revisão: 20/11/2016
Aceite: 25/11/2016

 

 

1 Caroline Velasquez Marafiga é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
2 Denise Falcke é docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
3 Maycoln Leôni Martins Teodoro é docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.

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