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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.18 no.2 Ribeirão Preto  2017

 

ARTIGOS

 

Aspectos éticos das pesquisas em Psicologia: vulnerabilidade versus proteção

 

Ethical aspects of research in Psychology: vulnerability versus protection

 

Aspectos éticos de las investigaciones en Psicología: vulnerabilidad frente a la protección

 

 

Vitor Hugo Loureiro Bruno Costa1; Ilana Camurça Landim2; Juliane Callegaro Borsa3

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A vulnerabilidade é definida como um estado de autodeterminação reduzida ou impedida, de pessoas ou grupos, no que concerne à resistência e participação em pesquisas. Segundo a Resolução 466/2012, tais indivíduos poderiam participar de pesquisas caso não pudessem ser desenvolvidas, preferencialmente, com indivíduos de autonomia plena. A Resolução 510/2016 representa um avanço, na medida em que adota como premissa a participação desses indivíduos não apenas na ausência daqueles com autonomia plena. Esta última enaltece o compromisso social do pesquisador quanto à redução dos danos ou situações de riscos dos participantes envolvidos. Assim, este estudo tem como objetivo discutir a prática de pesquisa em Psicologia com indivíduos em diferentes condições de vulnerabilidade.

Palavras-chave: ética; vulnerabilidade; Psicologia.


ABSTRACT

Vulnerability is defined as a state of reduced or impeded self-determination of people or groups, regarding resistance and participation in research. According to the Resolution 466/2012, such individuals could participate in research in case it could not be conducted, preferably, with individuals with full autonomy. Resolution 510/2016 represents a step forward because it adopts the participation of vulnerable individuals not only in the absence of those with full autonomy .It is understood that the latter praises the social commitment of the researcher regarding harm reduction or risk situations of the participants involved. This study proposes a discussion on the practice of research in Psychology with individuals in different conditions of vulnerability.

Keywords: ethics; vulnerability; Psychology.


RESUMEN

La vulnerabilidad se define como un estado de autodeterminación reducida o impedida de personas o grupos, em lo que concierne a la resistencia y participación em investigaciones. Según la Resolución 466/2012, tales indivíduos podrían participar em investigaciones si no pudieran ser desarrolladas preferentemente com individuos de autonomía plena. La Resolución 510/2016 representa un avance pues adopta como premisa la participación de indivíduos vulnerables no solo em la ausencia de aquellos com autonomía plena. Se entiende que esta última enaltece el compromiso social del investigador encuanto a la reducción de los daños o situaciones de riesgo de los participantes involucrados. Este estúdio propone una discusión sobre la investigación em Psicología com indivíduos en diferentes condiciones de vulnerabilidad.

Palabras clave: ética; vulnerabilidad; Psicología.


 

 

Os primeiros passos para a constituição da ciência moderna, ainda nos séculos XVI e XVII, com Galileu, Descartes e Newton, fundamentaram as bases para o estudo e a compreensão dos fenômenos naturais com o advento de um método objetivo, imparcial e distanciado do objeto de investigação (Crump, 2001). A revolução científica possibilitou uma nova forma de pensar, pautada na lógica e razão, confiante nos dados científicos e vez menos na lógica metafísica (Rosa, 2012).

O forte desenvolvimento técnico-científico, principalmente nos dois últimos séculos, permitiu o advento de inúmeras melhorias à sociedade, incluindo o aumento da produção de alimentos e da expectativa de vida, redução da mortalidade infantil, novos e mais eficazes tratamentos médicos, meios de transporte e comunicação mais ágeis entre muitas outras conquistas (House, 2001). Porém, nem sempre houve uma reflexão ética sobre os possíveis impactos positivos e negativos das pesquisas científicas sobre a qualidade de vida e bem-estar dos indivíduos (Kottow, 2008). Irradiação testicular, injeções de células tumorais vivas entre outros experimentos atrozes realizados pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial ou também o caso do Experimento Tuskegee, em que cientistas norte-americanos passaram décadas observando a evolução dos sintomas de 399 homens negros infectados com o vírus da sífilis (Lefor, 2005) são alguns exemplos de pesquisas envolvendo seres humanos marcados pela falta de preocupação com uma dimensão ética de respeito à integridade do indivíduo humano.

A discussão e a implementação de normas éticas na condução de pesquisas com seres humanos fazem-se importante na sociedade à medida que possibilita a formalização de diretrizes norteadoras aos pesquisadores sobre como devem proceder para que seus trabalhos sejam considerados adequados à preservação do indivíduo (Guerriero & Minayo, 2013). E foi com esse intuito que os responsáveis pela condução dos julgamentos de Nuremberg elaboraram um documento, sem força de lei, mas reconhecido internacionalmente por nortear os princípios éticos sobre as pesquisas com seres humanos, chamado de Código de Nuremberg (Ghooi, 2011). Dentre as contribuições éticas, o documento sugere que o consentimento voluntário dos participantes seja obrigatório, o experimento deve respeitar as necessidades dos indivíduos participantes, evitando sofrimentos e danos desnecessários aos mesmos e gerar resultados positivos à sociedade (Lefor, 2005). Ou seja, devem respeitar os princípios da Autonomia, Não-Maleficência, Beneficência e Justiça (Motta, Vidal, & Siqueira-Batista, 2012).

No Brasil, o primeiro mecanismo regimental com o objetivo de normatizar as pesquisas com humanos foi a Resolução 001/1988 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a qual apresentou pouca efetividade perante sua defasagem em relação às legislações éticas internacionais (Marques Filho, 2007; Witten, 2010). Foi somente em 10 de outubro de 1996, que o CNS aprovou a Resolução 196 (CNS, 1996), baseada nos preceitos da bioética e em documentos como o Código de Nuremberg, Declaração dos Direitos do Homem, Declaração de Helsinque e o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, representando o primeiro instrumento efetivo de regulamentação dos princípios éticos em pesquisa com seres humanos no Brasil (Novoa, 2014). A partir dela foram criados a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), sendo que o primeiro assume função consultiva, deliberativa e educativa no que tange à implementação de normas e diretrizes sobre as pesquisas com humanos e os CEPs são compostos por grupos de pessoas cujo papel é de revisar os protocolos de pesquisas com indivíduos, certificando-se que os preceitos éticos dos voluntários serão respeitados (CNS, 1996; CNS, 2007).

Após dezesseis anos, as novas descobertas científicas, principalmente nas áreas da biomedicina, fizeram com que a Resolução 196/1996 necessitasse de revisões em seu conteúdo (Novoa, 2014). Assim, o Conselho Nacional de Saúde, a partir de consulta pública, viabilizou a elaboração da Resolução 466/2012, com o objetivo principal de contemplara ética também em pesquisas sobre o genoma humano e pesquisas genéticas, mantendo os princípios básicos da bioética acerca do reconhecimento da dignidade, liberdade, autonomia, beneficência, não maleficência, justiça e igualdade entre os indivíduos (CNS, 2012). Ademais, foi inaugurada a Plataforma Brasil, uma base de dados nacional que concentra informações e registros de pesquisas com humanos em todo sistema CEP/CONEP (CNS, 2012). Embora a Resolução 466/2012 represente uma atualização quanto à abrangência e heterogeneidade das pesquisas no Brasil, a mesma continua contemplando majoritariamente as necessidades de pesquisa das áreas biomédicas (Barbosa, Corrales, & Silbermann, 2014). Os documentos acrescidos para a sua formulação foram a Declaração Universal do Genoma Humano, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos e a Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos, suscitando um enfoque maior sobre o organismo nas suas dimensões prioritariamente biológicas (Barbosa et al., 2014).

As críticas mais comuns à Resolução 196/1996 são relativas à forte influência do modelo biocentrista de pesquisa e o fato de não mencionar as especificidades dos métodos de investigação com seres humanos no âmbito das ciências não biológicas (Barbosa et al., 2015). Sendo assim, pesquisas em Antropologia, Psicologia, Sociologia ou quaisquer outras áreas das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, Humanas (CSH) teriam que ser submetidas a uma análise que não abarcaria seus arcabouços teóricos e metodológicos (Guerreiro & Minayo, 2013). Esperava-se que, além das alterações concernentes às inovações científicas decorrentes das últimas décadas, a Resolução 466/2012 também abarcasse as peculiaridades próprias às CSH, porém, foi mantida, na estrutura do documento, grande parte do conteúdo da resolução anterior e a visão de modelo biocêntrico de pesquisa (Leitão, Falcão, & Maluf, 2015; Zaluar, 2015).

O fato de a homologação de uma resolução, assim como eventuais alterações da mesma, sempre ter ficado sob as decisões finais do Conselho Nacional de Saúde gerou críticas e descontentamento entre pesquisadores de outras áreas, sobretudo das humanas e sociais (Peixoto, 2016). Como a Resolução 466/2012 manteve a não menção às CSH, foi organizado um Grupo de Trabalho (GT) com pesquisadores representantes dessas áreas sob a meta de traçarem diretrizes, junto à CONEP, para um novo documento que trouxesse menções às peculiaridades das pesquisas não-biomédicas com seres humanos (Duarte, 2017). Aproximadamente, três anos depois, o CNS autorizou a publicação da Resolução 510/2016, a qual, mesmo ainda estando sob o viés de autorização do CNS, representou uma conquista às pesquisas em CSH, reduzindo o biocentrismo e oferecendo uma nova perspectiva de abordagem ética nas pesquisas com seres humanos (Duarte, 2017; Peixoto, 2016). Dentre as mudanças presentes na nova resolução podemos citar a exigência de equidade em número de membros tanto nas áreas biomédicas quanto nas de ciências sociais e humanas em todos os CEP para que a análise ética dos projetos de pesquisa seja conduzida por pareceristas com competência na área (CNS, 2016; Gusman, Rodrigues, & Villela, 2016).

Especificamente, as pesquisas em Psicologia apresentam particularidades que a distinguem de outras ciências. Uma delas é a relação sujeito/objeto e sujeito/investigador que, por sua vez, possuem características comuns e cuja relação se dá pela complexa relação subjetiva entre o sujeito que observa (investigador) e o sujeito observado (objeto de pesquisa) (Borsa & Nunes, 2008). Outra especificidade primordial das pesquisas nessa área é o recrutamento de participantes em condições de vulnerabilidade, o qual pode ser entendido como um potencial maximizador da condição de risco ao desenvolvimento do indivíduo (Masten & Gamerzy, 1985).

O presente estudo tem por objetivo discutir os aspectos éticos das pesquisas em Psicologia, a partir das Resoluções 466 de 2012 e 510 de 2016, principalmente no que diz respeito à prática de investigação com indivíduos vulneráveis. Especificamente, será traçado um panorama inicial sobre a prática e a pesquisa em Psicologia, seguido por uma discussão sobre a dimensão ética nas pesquisas em Psicologia. Dentro do campo, será enfatizado, primordialmente, um contraponto da realização de pesquisas com sujeitos vulneráveis, compreendendo suas dimensões teóricas e práticas.

 

CARACTERÍSTICAS E PARTICULARIDADES DAS PESQUISAS EM PSICOLOGIA

A Psicologia (do grego psykhologuía, "alma", "mente" e logos, "palavra", "razão" ou "estudo") é a ciência que estuda o comportamento e os processos mentais dos seres humanos. O nascimento oficial da Psicologia como ciência data de 1879, ocasião da fundação do laboratório de Psicologia Experimental de Wilhelm Wundt, em Leipzig, Alemanha. Desde então, a Psicologia passou a ser caracterizada por duas correntes majoritárias: a investigação naturalista desenvolvida nas universidades e a investigação clínica comumente realizada nos consultórios de psicoterapia (Figueiredo, 1995). As duas concepções nem sempre parecem convergir, haja vista que a produção naturalista e científica, voltada para a construção de pesquisas de qualidade, sempre esteve atrelada em maior parte ao ambiente acadêmico, principalmente em decorrência da ascensão do Behaviorismo, Cognitivismo e Neurociências na área psicológica (Borsa & Nunes, 2008).

A heterogeneidade epistemológica e empírica caracteriza o campo da pesquisa em Psicologia. A relação dos pesquisadores com o objeto de pesquisa pode acontecer em diferentes contextos e utilizar diferentes métodos como, por exemplo, a pesquisa empírica quantitativa, a observação mediante a inserção de pesquisadores no campo ou a pesquisa caracterizada pelo estudo de caso clínico (Breakwell, Hammond, Fife-Schaw, & Smith, 2010). Apesar das suas notáveis diferenças, todos os delineamentos apresentam uma característica comum: pesquisadores e objeto de pesquisa são seres humanos e como tais contam com um aparato complexo e subjetivo que atua de forma constante na relação estabelecida no contexto da investigação. Dessa maneira, na Psicologia, tudo o que ocorre com o indivíduo-pesquisado é estudado pelos recursos de outro indivíduo-pesquisador, diferindo dos estudos das ciências exatas. A epistemologia específica desse tipo de investigação interfere no objeto investigado e, por isso, não é possível prever uma total neutralidade (Borsa & Nunes, 2008).

Além disso, é importante mencionar que a investigação em Psicologia não se limita às pesquisas do contexto acadêmico as quais tem um propósito explícito de promoção e divulgação do conhecimento científico, construído a partir de métodos sistemáticos de coleta e análise dos dados. Na própria essência da prática profissional, todo o psicólogo é, por si só, um investigador. Afinal, o objetivo do psicólogo, qual seja seu campo de inserção, é a investigação do comportamento e dos processos mentais dos seres humanos, com a finalidade de buscar relações entre queixas explícitas e seus condicionantes históricos, culturais e contextuais (APA, 2015). Em outras palavras, a práxis do psicólogo é sempre a investigação. Ademais, todo psicólogo deve pautar sua atividade no conhecimento técnico, teórico e metodológico, tal qual propõe o Código de Ética do Psicólogo (CFP, 2005), o qual menciona que é de responsabilidade do(a) psicólogo(a)manter o conhecimento atualizado e oferecer um serviço embasado cientificamente. Nesse sentido, a Psicologia integra ciência, teoria e prática para entender e predizer o comportamento, além de promover a adaptação humana, o ajuste e o desenvolvimento pessoal (Sundberg, Winebarger, & Taplin, 2002). Entende-se, por isso, que a pesquisa deve ser uma atividade importante na prática profissional do(a) psicólogo(a), já que cumpre o papel de subsidiar e aprimorar sua prática profissional (Nietzel, Bernstein, & Milich, 1998).

 

PESQUISAS COM INDIVÍDUOS VULNERÁVEIS

Segundo o Dicionário de Psicologia da American Psychological Association (APA, 2015, p. 860), as pesquisas em Psicologia envolvem uma ampla gama de possíveis métodos de investigação para explorar os processos biopsicossociais e emocionais subjacentes ao comportamento humano. Dentre esses métodos, encontram-se os estudos empíricos, experimentais, quase-experimentais, longitudinais, transversais, correlacionais, estudos de caso, entre outros (Sigelmann, 1984). Sendo assim, entende-se que o propósito desse conhecimento é compreender os comportamentos dos seres humanos nos diferentes cenários da vida, assim como tratar funções mentais, emocionais e sociais que apresentem comprometimento em seu desenvolvimento, trazendo, muitas vezes, algum nível de vulnerabilidade (APA, 2015).

O conceito de vulnerabilidade refere-se a pessoas ou grupos fragilizados, jurídica, política, econômica ou socialmente, na garantia e manutenção de seus direitos como cidadãos (Ayres, França Junior, Calazans, & Saletti Filho, 2009, p. 121). Para a Psicologia, caracteriza-se como vulnerável aquele indivíduo ou grupo de indivíduos expostos a um determinado risco de cunho social, emocional ou pessoal, o qual pode, inclusive, contribuir para desencadear sofrimento psíquico (Prati, Couto, & Koller, 2009). São exemplos de situações de vulnerabilidade indivíduos moradores de rua, adolescentes, pacientes com doenças psiquiátricas, pessoas vivendo em condição de pobreza extrema entre outros (Felício & Pessini, 2009; Janczura, 2012). Especificamente, em relação à definição de vulnerabilidade presente nas resoluções do CNS, pode-se demarcar as seguintes diferenciações:

 

 

A Resolução 466/2012 é mais abrangente e imprecisa, enquanto que a Resolução 510/2016preocupa-se em ser mais condizente com o que a literatura sobre bioética sugere quanto ao respeito às decisões do indivíduo, além de apresentar maior consonância com os preceitos teóricos adotados nos estudos em Psicologia (Prati et al., 2009).Além disso, a Resolução 510/2016 considera as diferentes variáveis contextuais que se apresentam como fatores de risco à condição de vulnerabilidade social e que são especialmente importantes em um país historicamente marcado pela desigualdade social cujas políticas públicas não oferecem condições adequadas ao desenvolvimento físico e psíquico saudável dos indivíduos.

A Resolução 466/2012 aponta que as pesquisas com seres humanos devem ser desenvolvidas preferencialmente em indivíduos com autonomia plena, ou seja, pessoas independentes e cujos impulsos e desejos pessoais possam ser controlados, moderados e aprovados por ela mesma (O'Neil, 2002). Segundo o documento, indivíduos ou grupos vulneráveis não devem ser participantes de pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida por meio de participantes com completa autonomia, a menos que a investigação possa trazer benefícios aos indivíduos ou grupos vulneráveis (CNS, 2012).

Em linhas gerais, a orientação anterior à Resolução 466/2012 é de que o pesquisador deva sempre optar pela pesquisa com indivíduos plenamente autônomos, ou seja, não vulneráveis (CNS, 2012). No entanto, a questão primordial a ser considerada é que as pesquisas em Psicologia comumente envolvem a participação de indivíduos em condições de vulnerabilidade, sobretudo psicológica. São indivíduos em sofrimento psíquico e/ou que vivenciam situações adversas e de risco psicossocial. Nesse sentido, seria inviável prescindir de realizar pesquisas com esses grupos se o desejo for promover avanços para a Psicologia de modo a distingui-la como ciência e prática do conhecimento de senso comum. Em outras palavras, optar pela não realização dos estudos com indivíduos vulneráveis implicaria em uma estagnação do campo da pesquisa científica em Psicologia. Dessa maneira, sendo a Psicologia uma ciência que se propõe, em último fim, a desenvolver a autonomia dos indivíduos, como desprezar, para fins de pesquisa, indivíduos em situação de vulnerabilidade, justamente a quem está direcionado o seu saber e prática?

No que tange à participação de indivíduos em vulnerabilidade, pode-se dizer que o grande avanço obtido pela Resolução 510/2016, foi a importância dada à participação desses indivíduos ou grupos em pesquisas não apenas quando da ausência de indivíduos com autonomia plena. Convoca, inclusive, os pesquisadores, ao compromisso de não corroborarem com situações de risco ou vulnerabilidade, estigma, preconceito e discriminação:

Art. 3º:

V – Recusa de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de indivíduos e grupos vulneráveis e discriminados e às diferenças dos processos de pesquisa;

IX - Compromisso de todos os envolvidos na pesquisa de não criar, manter ou ampliar as situações de risco ou vulnerabilidade para indivíduos e coletividades, nem acentuar o estigma, o preconceito ou a discriminação (CNS, 2016, p. 5).

O conteúdo presente no Art. 3º da Resolução 510/2016 fornece grande benefício às CSH, e a Psicologia se inclui, no sentido em que não exclui nenhum possível público de investigação, desde que seus direitos sejam respeitados e sua segurança garantida. Porém, em termos práticos, quais diferenças podem ser observadas entre ambas as resoluções? Em outras palavras, no que a Resolução 510/2016 avança quanto à prática de pesquisas com indivíduos em situação de autonomia reduzida? Para fins de elucidação, um exemplo hipotético de uma pesquisa experimental sobre bullying escolar na qual foram delineados dois grupos: um grupo experimental que se submete a um novo método de intervenção terapêutica e outro grupo controle, o qual está em sofrimento e não deverá receber o atendimento. No que concerne à obtenção do assentimento e do consentimento dos participantes ou seus responsáveis, ambas as resoluções concordam quanto à necessidade de uma justificativa clara e compreensível tanto por parte dos voluntários, quanto de seus responsáveis. O que muda, a partir da nova Resolução, é que passa a ser permitido que o registro seja feito de diferentes formas e não apenas a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) como era proposto na Resolução 466/2012. Agora, o consentimento e o assentimento podem ser entregues em qualquer meio ou formato, como papel, vídeo ou áudio, por exemplo, desde que fique claro que a pessoa esteja ciente e de acordo com a pesquisa (CNS, 2016).

Diferente da Resolução 466, a qual orienta para que as pesquisas sejam, preferencialmente, realizadas com pessoas de autonomia plena (CNS, 2012), a Resolução 510 propõe que "o pesquisador deverá adotar todas as medidas cabíveis para proteger o participante quando criança, adolescente, ou qualquer pessoa cuja autonomia esteja reduzida (...)" (CNS, 2016, p. 8). Portanto, no exemplo citado, haveria de se pensar numa forma de minimizar o sofrimento do grupo controle fornecendo, por exemplo, tratamento terapêutico após a pesquisa ou alguma outra forma de não prejudicar esses indivíduos, agindo com negligência ou prolongando seu sofrimento.

Outro exemplo seria uma investigação sobre permanência de pensamentos suicida em indivíduos que atentaram contra a própria vida e que não se encontram em tratamento. O simples fato de abordar o assunto com o indivíduo sem o devido cuidado pode vir a representar um estímulo prejudicial, haja vista que, em casos graves, a orientação é de que o indivíduo possa ser monitorado por familiares e/ou responsáveis ou hospitalizado para receber os cuidados primordiais (OMS, 2006). Seguindo a letra fria da Resolução 466, seria difícil levar adiante uma pesquisa como essa, porque estaria indo diretamente de encontro com o inciso que afirma:

III. 1 - A eticidade da pesquisa implica em:

(...)

j) ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena. Indivíduos ou grupos vulneráveis não devem ser participantes de pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida por meio de participantes com plena autonomia, a menos que a investigação possa trazer benefícios aos indivíduos ou grupos vulneráveis (CNS, 2016, p. 4)

Por outro lado, a Resolução 510 exige que, nesse caso, se mantenha a segurança e o bem-estar do participante, mas de que forma isso seria assegurado? Segundo o Art. 21, "O risco previsto no protocolo será graduado nos níveis mínimo, baixo, moderado ou elevado, considerando sua magnitude em função de características e circunstâncias do projeto" (CNS, 2016, p. 8). No entanto, não é explicitado como deverá ser feita essa separação, tampouco quais são os critérios para aceite do projeto ou mesmo como se deve proceder.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo discutiu os aspectos éticos das pesquisas em Psicologia, a partir das Resoluções 466 de 2012 e 510 de 2016, principalmente no que diz respeito à prática de investigação com indivíduos vulneráveis. Especificamente, discutiu-se sobre a dimensão ética nas pesquisas em Psicologia com sujeitos vulneráveis, compreendendo suas dimensões teóricas e práticas.

Entende-se que a pesquisa em Psicologia envolve diferentes paradigmas e acontece sob diferentes propostas epistemológicas e metodológicas. A pesquisa em Psicologia envolve, sobretudo, diversos impasses éticos que são inerentes à complexidade da sua prática, especialmente quando se trata do acesso a indivíduos em condição de vulnerabilidade física, psíquica e social. Esses, por sua vez, representam o público prioritário para o qual a Psicologia oferece seu saber e prática.

A Resolução 466/2012 (CNS, 2012) é um importante dispositivo que orienta e auxilia a prática do pesquisador nos seus diferentes contextos de inserção. No entanto, as orientações ainda são incipientes e não contemplam as especificidades das pesquisas e os paradigmas da Psicologia. Já a Resolução 510/2016 (CNS, 2016) representa uma importante e necessária conquista científica e, também, política, à medida em que procurou atender, embora com limitações,as demandas das pesquisas das áreas sociais e humanas, fornecendo uma autonomia e um respeito a essas áreas que, até então, não havia sido abalizada nas resoluções anteriores.

Considera-se fundamental acentuar que a busca pela pretensa neutralidade na pesquisa não implica em omissão ou negligência. Nesse sentido, é imperioso que o(a) psicólogo(a) pesquisador(a) atente não somente aos procedimentos metodológicos envolvidos, mas também ao impacto da pesquisa para os participantes. Especialmente, a pesquisa com indivíduos vulneráveis merece cuidados redobrados e deve prever o acolhimento à diversidade, e nunca a exclusão.

Por fim, é importante ressaltar que as resoluções e documentos normativos são guias de orientação e de reflexão, não devendo servir como justificativa para uma conduta acrítica por parte do pesquisador. Da mesma forma que a prática da pesquisa não deve prescindir de uma conduta ética, a análise da conduta ética não deve prescindir da dimensão humana, tão importante às relações estabelecidas neste campo e em especial na abordagem aos indivíduos vulneráveis.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Juliane Callegaro Borsa
E-mail: juliborsa@gmail.com

Recebido: 05/06/2017
1ª revisão: 25/10/2017
Aprovado: 16/11/2017

 

 

1 Vitor Hugo Loureiro Bruno Costa é mestrando do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio e bolsista CNPq.
2 Ilana Camurça Landim é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio e bolsista CNPq.
3 Juliane Callegaro Borsa é docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.

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