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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.19 no.1 Ribeirão Preto Jan./Jun. 2018

 

ARTIGOS

 

Manejando imprevistos na facilitação grupal: um estudo de caso com o exercício como se

 

Handling the unexpected in group facilitation: a case study of an as if exercise

 

Manejo de lo inesperado en la facilitación grupal: estudio de caso del ejercicio como si

 

 

Gabriela Martins Silva1, I; Carla Guanaes-Lorenzi2, I; Ottar Ness3, II

IUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil
II
Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia - NTNU, Noruega

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da ideia de grupo como construção social, existem vários recursos dialógicos e colaborativos para o trabalho com grupos. Contudo, nem sempre as proposições teóricas para a facilitação grupal vêm acompanhadas de exemplos empíricos, que demonstrem a complexidade desse processo. Diante disso, este artigo visa contribuir com a literatura a respeito da preparação do/a facilitador/a para práticas grupais dialógicas, com um estudo de caso de um processo grupal que não se desenrolou como previsto, na aplicação do exercício como se. Assim, procuramos dar destaque às situações de imprevisto e difícil manejo na facilitação, o que nos permite refletir sobre a importância primordial da preparação dos contextos para que práticas que se propõem dialógicas funcionem como tal.

Palavras-chave: interações dialógicas; discussão em grupo, dinâmica de grupo; construcionismo social.


ABSTRACT

Based on the idea of group as a social construction there are several dialogical and collaborative resources for working with groups. However, theoretical propositions for group facilitation are not always accompanied by empirical examples that demonstrate the complexity of this process. Therefore, this article contributes to the literature about preparation of the facilitator for dialogic group practices, from a case study of a group process that did not unfold as expected, in the application of the as if exercise. We seek to highlight unexpected situations of difficult management in the facilitation, allowing us to reflect on the preparation of the contexts as a central point to permit that practices that are proposed to be dialogical can work as such.

Keywords: dialogic interactions; group discussion; group dynamics; social constructionism.


RESUMEN

Partiendo de la idea del grupo como una construcción social, existen varios medios dialógicos y de colaboración para trabajar con grupos. Sin embargo, las proposiciones teóricas para una facilitación grupal no son siempre acompañadas de ejemplos empíricos que demuestran la complejidad de este proceso. Así, este artículo visa contribuir con la literatura, en la preparación del facilitador para prácticas grupales dialógicas, con un estudio de caso de un proceso que no se desarrolló como previsto en la aplicación del ejercicio como si. Analizamos las situaciones imprevistas y de difícil manejo en la facilitación, reflexionando sobre la primordial importancia de preparar el contexto para que las prácticas dialógicas funcionen como tal.

Palabras clave: interacciones dialógicas; grupo de discusión; dinámica de grupo; construccionismo social.


 

 

O trabalho com grupos tem sido discutido a partir de contribuições de diferentes teorias, as quais sustentam diferentes propostas para compreensão do grupo, seu modo de organização e funcionamento. Deriva de cada teorização, contribuições específicas sobre o papel do coordenador na facilitação de diálogos (Guanaes-Lorenzi, 2017). A partir de uma orientação construcionista social, temos a noção de processos grupais e de grupo como construção social, como questionamento da noção essencialista de grupo, bem como desafiando a ideia de individualidades como instâncias componentes do grupo (Rasera & Japur, 2004).

Assim, o grupo é considerado uma realidade construída nas relações sociais, que configuram as práticas consideradas legítimas e relevantes dentro de cada contexto. Nesse sentido, pode ser entendido como um recurso conversacional (Guanaes, 2006), sendo espaço privilegiado para a promoção da dialogia, a partir da intervenção do/a facilitador/a. Desta forma, o/a facilitador/a deve ser um/a especialista do processo dialógico, compreendendo as maneiras pelas quais é possível colocar em movimento a construção e transformação de sentidos.

Compartilhando a ideia de grupo como construção social, vários/as autores/as se dedicaram na proposição de recursos dialógicos e colaborativos que podem ser aplicados em diferentes contextos grupais (Anderson, 1997; Guanaes, 2006; McNamee & Shotter, 2004; Rasera & Japur, 2004). Contudo, nem sempre as proposições teóricas para a facilitação grupal vêm acompanhadas de exemplos empíricos, que facilitariam a compreensão pelo/a facilitador/a de como cada teoria engendra diferentes possibilidades de prática. Além disso, quando estes exemplos existem, eles priorizam processos de sucesso, o que nos convida a uma certa idealização sobre os possíveis efeitos das técnicas na abertura de possibilidades dialógicas.

Diante disso, visando contribuir com a literatura a respeito da preparação do/a facilitador/a para práticas grupais dialógicas, este artigo se foca no estudo de caso de um processo grupal no qual foi realizado o exercício dialógico as if (Anderson, 1991, 1997), que em tradução literal para o português significa como se. Esta foi uma experiência que não se desenrolou como o planejado, em acordo com as orientações propostas por sua criadora. Desta forma, esse estudo nos permite refletir sobre a importância primordial da preparação dos contextos para que práticas que se propõem dialógicas funcionem como tal.

 

DEFINIÇÃO DO EXERCÍCIO

O exercício como se consiste na discussão de uma determinada situação considerada problemática e trazida por um/a consultante, a partir da escuta e análise da mesma pelos/as integrantes de um grupo que se posicionam como se fossem pessoas que participam da situação-problema narrada.

Foi desenvolvido por uma autora chamada Harlene Anderson, com o objetivo de ampliar as perspectivas e sentidos sobre uma situação considerada problemática pelo/a consultante, a partir da consideração das diferentes formas de compreender e significar esta situação que as diferentes pessoas participantes da mesma podem ter. Visa-se, com isso, criar um espaço para diálogos que possibilitem a dissolução do que é considerado problemático, a partir da noção de problema como um sistema linguístico. Pode ser adaptado a diferentes contextos – terapêutico, consultoria ou educacional – e ao número de integrantes de cada grupo, pois aproveita as diferentes vozes presentificadas pelas pessoas no grupo como forma de trazer para o diálogo as diferentes perspectivas sobre um mesmo fenômeno (Anderson, 1991, 1997).

O exercício começa com o desejo de uma pessoa, chamada de consultante, por compartilhar alguma situação para a qual busca ajuda do grupo. Facilitador/a e consultante se posicionam, inicialmente, no centro da roda formada pelos/as participantes, frente-a-frente, ou em algum local a partir de onde todo o grupo possam vê-los/as e ouvi-los/as. O/a facilitador/a, então, pede ao/à consultante que liste as personagens participantes da situação para a qual quer ajuda. Estas personagens são pessoas que, junto com o/a consultante, participam do sistema linguístico que configura a situação problemática, como exemplos: integrantes de uma equipe de trabalho e/ou membros de uma família (Anderson, 1991, 1997).

A partir disso, cada pessoa do grupo escolhe uma personagem a partir da qual ouvirá o relato do/a consultante. Essa escuta deve ser uma escuta silenciosa e curiosa, exercitando se posicionar no lugar deste outro, entrando em contato com sentimentos e pensamentos que surgirem, a partir dessa posição. Após essas orientações e preparação do grupo, o exercício acontece em quatro etapas: apresentação, escuta, reflexão e discussão (Anderson, 1997).

A primeira etapa consiste na apresentação da situação pelo/a consultante ao grupo, o que é feito com o intermédio do/a facilitador/a. O/a consultante deve imaginar que as personagens estão presentes e fazer seu relato abordando: porque selecionou a situação para pedir ajuda; sua expectativa com relação à consulta; o que achar que os/as demais presentes precisam saber sobre a situação para ajudá-lo/a.

Esses pontos visam demarcar as posições de fala e escuta, guiando o relato do/a consultante e a forma de escuta pelos demais integrantes do grupo de forma a colocar como central a ideia de que o/a consultante apresentará a história do modo como ele/a considera relevante, e não como os/as ouvintes acham que deve ser. Assim, o/a consultante faz o seu relato enquanto os demais integrantes do grupo exercitam a escuta silenciosa e curiosa, como se fossem as personagens da história.

A segunda etapa, de escuta,é o momento de ouvir os/as demais integrantes. Após finalizar o seu relato, o/a consultante é convidado/a a ouvir os/as demais integrantes do grupo, que são orientados/as a manterem suas posições como as personagens da situação e, a partir dessas vozes, expressarem seus sentimentos e pensamentos sobre o que ouviram do/a consultante. Espera-se que eles/as contem o que os/as deixaram confusos/as, o que os/as fizeram sentir vontade conversar mais ou se têm alguma recomendação para o/a consultante, a partir das suas posições de personagem. Nesse processo, o conteúdo das falas não é o foco. O importante é o processo de vivenciar o contato com diferentes perspectivas e vozes.

A terceira etapa, de reflexão, consiste na reflexão pelo/a consultante sobre o compartilhado pelo grupo na posição como se. Primeiramente, o/a consultante divide com o grupo seus pensamentos e sentimentos com relação ao que ouviu. Depois, os/as demais participantes, já despidos das posições como se, falam também de seus sentimentos e pensamentos com relação ao que ouviram dos/as outros/as e do/a consultante, ainda com base na situação problema trazida pelo/a consultante.

A quarta e última etapa é a discussão, o momento em que o/a consultante e o/a facilitador/a se juntam ao grande grupo, em roda, para que todos/as possam compartilhar seus pensamentos e sentimentos com relação ao exercício recém vivenciado.

Com essa apresentação da proposta do exercício visamos preparar o/a leitor/a para compreender o estudo de caso realizado. Temos como objetivo analisar o exercício dando visibilidade ao processo de manejo da facilitação.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo de caso de um processo grupal no qual foi realizado o exercício como se. O grupo foi composto de oito profissionais de saúde mental de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de uma cidade paulista e foi constituído para a realização de um processo de educação permanente para o trabalho com famílias na saúde mental, como parte de uma pesquisa de doutorado (referência omitida, para evitar identificação). Os/as profissionais participantes eram das áreas de enfermagem, psicologia e serviço social.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Todas as considerações éticas foram observadas, sendo obtidos os termos de consentimento para cada participante, com a garantia de anonimato de todos/as, em todas as fases do estudo, como uso de nomes fictícios.

O exercício aconteceu em uma do total de cinco reuniões de educação permanente realizadas com o grupo de profissionais citado e foi facilitado pela primeira autora deste artigo. Desta forma, se deu num contexto formativo.

O exercício foi sugerido pela facilitadora como formato para discussão da história da paciente Marcela e sua família, que fora proposto pelas/os profissionais como um problema que necessitava discussão e estudo, com vistas a construção de possibilidades de ação para a equipe. O relato foi feito por Débora, uma profissional da equipe, no papel de consultora. No grupo, havia tanto pessoas que conheciam a paciente quanto pessoas que não a conheciam.

A intenção da facilitadora ao propor o exercício foi de propiciar à equipe de trabalho refletir sobre suas práticas profissionais e sobre a construção relacional da problemática em torno da paciente. No entanto, o exercício não se desenrolou como esperado, tendo sido, por isso, interrompido ao final da etapa de reflexão.

Este estudo de caso busca, então, explicitar alguns fatores que podem ter contribuído para este resultado desfavorável. Desse modo, esperamos contribuir com a construção de conhecimento no campo do uso das técnicas de grupo. A reunião teve duração total de 1 hora e 30 minutos, foi áudio-gravada e posteriormente transcrita literalmente, possibilitando a construção do corpus de análise. A análise do corpus foi feita a partir da leitura curiosa, flutuante e sistemática, buscando identificar, nomear e dar visibilidade aos imprevistos e ao manejo deles, em cada uma das três etapas do exercício realizadas: apresentação, escuta e reflexão.

 

RESULTADOS

APRESENTAÇÃO

Ao convidar Débora a fazer o relato do caso, a facilitadora se deparou com o primeiro imprevisto. Débora solicitou que os demais profissionais a ajudassem no relato, justificando que cada um/a deles/as tinha uma percepção sobre o caso. No momento da interação, a facilitadora considerou que essa colocação fosse em decorrência de não ter ficado claro para Débora o principal objetivo do exercício. Explicou, então, novamente, que o exercício visava possibilitar que saíssem da posição de profissionais para então pensarem juntos outras possibilidades de olhar para a história, ressaltando assim que não seria interessante os demais a ajudarem no relato do caso. Disse a Débora que eles a ouviriam da posição das personagens, ressaltando que em seu relato não havia certo ou errado, pois o importante era que pudessem conversar sobre a história.

Assim, retomando a etapa de apresentação, a facilitadora pediu que Débora dissesse ao grupo no que esperava que a equipe a ajudasse com relação ao caso. Débora disse que esperava que a equipe pudesse ajudá-la a lidar melhor com Marcela, uma paciente com diagnóstico de Transtorno de Personalidade Borderline e que parecia ter muitas questões relacionadas a falta de limites.

Em seguida, a facilitadora pediu que Débora contasse então o que ela achava que as pessoas precisavam ouvir sobre o caso para que pudessem ajudá-la com seu pedido. Nesse momento a facilitadora se vê diante de um importante imprevisto: Débora não consegue compartilhar a história e parece paralisada. Esse momento pode ser visualizado no trecho a seguir.

Gabriela: É...e aí, ô Débora, pro grupo poder te ajudar a lidar com essas questões, o que do caso que você acha que o pessoal tem que saber? Porque assim, né, a gente nunca consegue contar tudo sobre um caso, né? Então assim, pra poder te ajudar a lidar com essas questões, o quê que as pessoas precisam ouvir? O quê que esses personagens precisam ouvir aqui? (Pausa)

Débora: No caso, dela?

Gabriela: É! (pausa)

Débora: Como, o que, você fala do comportamento dela? No caso...

Gabriela: É... na sua avaliação, o que você acha que a gente precisa saber pra poder te ajudar? (Pausa) O que você julgar que é importante, do comportamento dela, do relacionamento dela com a equipe, com a família... você que vai... (Pausa)

Débora: Bom, no caso, é a parte mais comportamental mesmo, né...

Gabriela: Então conta pra gente!

Débora: O como que ela era assim, cê fala?

Gabriela: Fala pra nós do comportamento dela então, que você acha que é um aspecto importante que a gente precisa saber.

Débora: Como que ela era, na minha visão, né, isso?

Gabriela: U-hum!

Débora: Ah, eu acho que ela era rebelde, né... o que mais...? e... ah não sei assim, é... rebelde... às vezes agressiva no jeito dela... é... agressiva (Débora fala com muitas pausas, parecendo não saber o que falar). (pausa).

Gabriela: E como que os outros personagens participam dessa história, porque até agora você falou mais da Marcela, né? Ai a gente tem aqui as outras pessoas posicionadas ainda como a mãe, a namorada, o ex-marido, como que essas pessoas participam dessa questão em torno da Marcela?

Débora: Então, uma coisa assim que me chamou atenção, acho que de todos né, é que assim ela, por ser uma moça assim já, né, formada e tudo, e ela, o comportamento, que ela imita a mãe também né, que ela chupa dedo/

Gabriela: Como?

Débora: Ela chupa dedo!

Gabriela: Ah!

Débora: A irmã também, né, no caso.

Paula: Imita a mãe como?

Débora: Todas elas...

Paula: A família inteira?

Cristina: A família inteira!

Débora: Eu acho que assim, é mais difícil do que criança, né?! À toa, assim, que costuma fazer, né?!

Gabriela: U-hum.

Débora: Quer dizer, uma atitude, assim, infantil, né, que é uma fase mais pra infantil, que ela carrega até a fase adulta. E isso ela, no caso, espelha, ah, não sei se ela se espelhou na mãe dela...

Gabriela: E isso causa problemas pra ela?

Débora: Não, o que eu acho que, assim, mas o que eu acho que causou, ela comentou uma vez de que o... o pai dela foi falecido, né, e que, não sei quantos anos ela tinha, não sei te falar.

Franciele: (fala algo que não foi possível compreender na gravação)

Débora: É e o pai dela morreu de acidente, tal, né, aí acho que é um pouco da revolta dela, não sei, que isso agravou também.

Franciele: A gente pode falar ou não?

Cristina: Acho que não.

Gabriela: O que mais, Débora, conta mais desse caso, agora mais livremente. Que acho que minhas perguntas mais te confundiram do que ajudaram (fala sorrindo). Conta o que você tinha pensado em contar.

Débora: Ah não, eu pensei que era pra contar assim, na verdade, mais pra mim, é, não imaginava que seria essa maneira que seria abordado, né, eu pensei que ia ser tipo como os que, estudo de caso, assim, dela, no caso, né?! E do comportamento da mãe, assim, que a mãe poderia, o que que a gente poderia, no caso, orientar melhor a mãe, nessa situação. Né?!

Gabriela: U-hum.

Débora: No diagnóstico dela.

Cristina: Posso fazer uma sugestão? No caso, se a Marcela contasse um pouco sobre ela, às vezes ajudaria na.../

Franciele: É, eu entendi que seria mais ou menos assim, que seria/

Cristina: Porque aí ajudaria na, na, a Débora a fazer mais perguntas ou... dizer é... ficar mais fácil pra/

Débora: É, porque assim, eu tive essa percepção, mas assim, ela, pra mim, ela não abriu, ela não se abriu muito assim, né?! Então a gente tem uma percepção às vezes diferente, né?!

Paula: E nem fazer pergunta pode?

Gabriela: Então, acho que, é... porque assim, o que tá, o que tá, pro exercício funcionar a gente precisa de uma história, com os personagens que a gente listou, aí esses personagens ainda não apareceram. Aí, é... e aí eu não sei se você vai querer contar, fazer o relato do caso como você tinha pensado inicialmente, e contar essa problemática toda, ou se de repente esses personagens não vão aparecer, aí a gente muda a dinâmica.

Paula: É que eu entendi que ela já fez o relato (fala rindo).

Franciele: É! Só que os personagens não apareceram.

Gabriela: É, eles não apareceram. (Várias pessoas falam ao mesmo tempo).

Débora: Então, o que eu entendi que seria isso, mas é, eu não abordei o parti, os outros/

Gabriela: Então de repente você pode contar pra gente assim, ó, quando eu te perguntei... bom. Inicialmente, não tem nada errado, tá? A gente tá conversando e tentando pensar uma forma da gente fazer uma reflexão. Mas assim, quando eu te perguntei quem são os personagens importantes, aí você deu uma listinha. Então de repente você conta porque que a namorada é importante, qual é a participação da namorada nessa história?

Débora: Ah, porque, bom, ela é a pessoa que ela diz ser, que ama, né, no caso, no momento que ela gosta, né?! Que tá próxima dela sentimentalmente, né?! Que ela confia. (Páginas 7-10, linhas 222-310).

No início deste trecho vemos que Débora, no momento de começar o relato, pareceu perdida, sem saber muito bem o que fazer. Débora parecia destituída de protagonismo no relato da história e a necessidade de ajuda, antes solicitada por ela, profissional, para lidar com o caso, se tornou uma necessidade da paciente, contradizendo a lógica do exercício.

A facilitadora, então, tenta auxiliá-la no relato do caso, estimulando que Débora contasse o que ela achava importante. Observando que Débora parecia insegura, a facilitadora procurou usar expressões afirmativas, concordando e valorizando a opinião e percepções que Débora já havia expressado.

Em seguida, como o relato de Débora não havia ainda incluído as demais personagens listadas por ela, a facilitadora perguntou sobre como as personagens participavam daquele relato. Assim, Débora menciona a mãe da paciente, mas ainda de uma maneira individualizada, apenas como sendo um modelo supostamente copiado pela paciente, no comportamento de "chupar dedo". Diante disso, como podemos ver, Paula e Cristina começam a participar da história com perguntas e acrescentando informações.

A participação das pessoas que deveriam estar na posição das personagens no decorrer do relato foi um imprevisto que não foi manejado pela facilitadora no momento interacional. Naquele momento, a facilitadora estava bastante preocupada em cuidar de Débora, que havia se preparado para fazer a apresentação do caso de uma maneira diferente do exercício proposto e agora parecia perdida e incomodada. Assim, não pensou em outra possibilidade no momento, a não ser sugerir que Débora continuasse a apresentação de maneira mais livre, mais baseada no que ela havia pensado em apresentar ao grupo, antes da proposta do exercício como se.

Diante do convite feito pela facilitadora, Débora expressa que não estava sabendo muito bem como apresentar o caso, no formato proposto, considerando ainda que a paciente não tinha compartilhado com ela tantas questões como havia feito com outros/as profissionais do serviço. Assim, Cristina sugere que ela, posicionada como a paciente, possa contar sobre a mesma. E Franciele então diz que era assim que tinha imaginado que o exercício aconteceria.

Podemos entender que a participação das pessoas na apresentação pode ter sido efeito da omissão, pela facilitadora, de uma orientação central, no momento de organização do grupo para o exercício: a de que era preciso ouvir o relato de uma maneira silenciosa. Essa omissão foi identificada somente a posteriori pela facilitadora, já no momento desta análise. Com isso, apesar de demonstrarem terem entendido que não deveriam falar no momento da apresentação, como verbaliza Cristina, em resposta a Franciele, esse entendimento se deu como uma regra, porém sema compreensão da sua razão de ser: exercitar a escuta para colocar em suspensão suas certezas sobre suas práticas. Isso, somado à percepção de que Débora estava perdida ao fazer a apresentação da história, os/as levaram a quebrar a regra, inserindo questionamentos e sugestões que poderiam auxiliar Débora a cumprir a tarefa de relatar o caso. Assim, entendemos que a participação das pessoas no momento do relato também foi uma tentativa de ajudar Débora a apresentar a história.

Adicionalmente, entendemos que, tal como Débora, o grupo também tomou a história contada como um pedido de ajuda à paciente e não à profissional Débora, como uma representante daquele grupo de profissionais. Com isso e ao não ouvirem silenciosamente, fazendo perguntas, os participantes não colocaram à parte suas hipóteses sobre a história narrada. Ao contrário, acabaram se posicionando como investigadores, no papel de especialistas, para ajudarem a solucionar o caso de Marcela.

Isso se constituiu numa situação de manejo difícil, que levou a facilitadora a considerar interromper o exercício, buscando formas mais significativas de conversa para o grupo. Contudo, ao mesmo tempo, considerou que desistir do exercício naquela altura seria também uma tensão a ser manejada, pois poderia gerar sentimentos de fracasso e culpa, especialmente na consultante. Na tentativa de cuidar disso, a facilitadora pergunta para o grupo se preferiam modificar a dinâmica da conversa. E diante da fala de Débora de que não havia conseguido falar dos demais personagens, a facilitadora sugere que ela conte sobre a participação de cada personagem, uma a uma, no caso narrado, sugestão que é acatada por Débora, iniciando pela namorada da paciente. Assim, Débora conseguiu inserir no relato da problemática outras personagens e parecia que enfim, o exercício poderia tomara forma imaginada.

ESCUTA

Depois que Débora finalizou a apresentação da importância de cada personagem para a problemática apresentada, a facilitadora convidou as demais pessoas, que ouviam na posição das personagens apontadas por Débora, a compartilharem seus pensamentos e sentimentos.Nessa etapa, mais um imprevisto aconteceu: apesar de os demais participantes compartilharem suas percepções em primeira pessoa, como se fossem as personagens representadas, eles o fizeram de maneira desconectada do relato de Débora, a partir do que já sabiam e pensavam sobre o caso, tal como podemos visualizar no trecho a seguir.

Cristina: Eu vou começar...

Gabriela: A Marcela.

Cristina: Eu Marcela. É, eu sou a Marcela, tenho dezenove anos, tenho um problema mental, né, mas eu não sou louca, tá?! Com relação às pessoas que estão aqui [referindo-se ao serviço], eu tenho condições de cura e essas outras pessoas não. E assim, eu, a minha vida parou quando eu tinha... com a morte do meu pai, né, aos dezesseis anos, fazem três anos que meu pai morreu e...é, assim, é, foi muito duro pra mim, né?! E... ah... aí eu casei, né, pra fugir de casa, porque eu não aguentava a minha mãe, e... e aí então eu quis casar, mas eu só casei pra sair de casa mesmo. Eu não gostava dele, né, e então aí depois, é... eu fiquei, fiquei assim, né, meio rebelde e eu gosto das coisas, é, eu não gosto de ser contrariada, né?! Eu, eu quero que as coisas sejam assim, né, tudo rápido. Eu não tenho muita paciência, eu não tenho paciência e eu gosto de conversar, é... (alguém fala algo ao mesmo tempo que Cristina) eu chupo dedo (fala rindo), mas assim, quando eu vou conversar, assim, sabe, eu gosto de falar, mas eu falo um pouco alto, assim, porque eu quero que as pessoas me vejam, sabe, eu quero chamar atenção pra mim, né?! Que eu quero ter atenção, eu preciso dessa atenção/

Gabriela: Deixa eu fazer uma pergunta pra Marcela. Como que você se sentiu vendo a Débora contar de você pra outras pessoas. Como que foi ouvir a Débora, uma profissional de saúde que te atende, falando da avaliação dela sobre você?

Cristina: É... eu senti que ela foi muito boazinha. Que ela foi muito discreta na fala dela.

Gabriela: Então a Marcela espera que as pessoas pensem coisas bem ruins e graves dela, assim?

Cristina: Assim, eu não digo... eu não digo, assim, graves, mas eu gosto de ser o assunto. Eu gosto de fazer parte do assunto, tanto é que eu me exponho, eu conto minha história, se você vier perguntar pra mim o que que acontece comigo eu te conto.

Gabriela: U-hum.

Cristina: Eu não tenho problemas com isso.

Gabriela: Ah... só mais uma... Mas assim, a Marcela conta porque ela gosta de se expor ou esse gostar de se expor já é uma interpretação da Cris sobre a Marcela?

Cristina: Não! É ela mesma! Eu tô fazendo, eu tô falando com as palavras da, os relatos que eu ouvi dela, do mesmo jeito, eu não estou sendo a Cris, entendeu? Porque assim, eu tive bastante contato com ela, por causa dos meus dois vínculos, né, eu faço, tarde, faço noite e tarde todos os dias, noites, assim, então a gente teve bastante contato, né, e ela, é, assim, agora eu estou falando como profissional, tá? Ela gostou de mim, mas por quê? Porque assim, nos dias dos plantões que eu fiz, isso que eu vejo a dificuldade, né, é... parte das pessoas que trabalharam comigo não fazem como nós durante o dia na imposição de limites. Entendeu? Então eu não posso, eu como única pessoa da equipe, contrariar os outros três, quatro que estiverem comigo, entendeu? Então assim, alguns limites que eu acho que deveriam ter sido dados, não foram dados pra evitar conflitos. Entendeu?! Então assim, é, agora assim, esse fato de chamar atenção, isso é nítido porque ela se expõe, né, e uma pessoa que, por exemplo, chega no posto de enfermagem, senta lá naquela, naquele quadradinho e briga pra ficar sentada no quadradinho, o que que ela tá querendo? Entendeu?! Chamar atenção! Ou, provocar as pessoas! Né?! Ou você vê por um lado ou por outro, né?! Eu não consigo ter uma visão de outro ângulo, né?! Sentar no chão dentro do posto de enfermagem pra conversar com a gente é uma coisa assim, ou você tá provocando, né, também, né, ou você tá querendo chamar atenção. (...)

Paula: Eu posso fazer um comentário antes de falar?

Gabriela: Sim.

Paula: Assim, pra mim tá um pouco difícil me colocar porque eu não tenho muito dado pra tá no papel, eu senti, por isso que queria fazer pergunta, até como, cada vez que fala eu fico com mais dúvida sobre essa pessoa.

Gabriela: É, ô Paula, antes de fazer as perguntas... (Paula fala junto: mas eu posso tentar!). É, eu queria te perguntar... você acha que é... a partir do que você imagina que uma mãe de uma paciente como a Marcela poderia pensar, você acha que você poderia fazer uma fala?

Paula: Sim.

Gabriela: Não precisa dos dados concretos.

Paula: Sim! Dá pra tentar!

João: Eu tenho uma sugestão também, assim, caso todos concordem, até ela mesmo, de passar o papel da mãe pro Reinaldo, que teve também bastante contato com a mãe. (Paula fala junto: eu concordo). Mas também não que vá perder em... é uma outra experiência também. (Páginas 12-15, linhas 381-475).

Neste trecho, que começa com o compartilhar de Cristina, na posição da paciente, vemos que ela apresenta informações sobre o caso que não estavam no relato de Débora, bem como algumas interpretações, pronunciadas pela voz de Marcela. Cristina fala sobre informações de prontuário, ao invés de sobre pensamentos e sentimentos surgidos a partir da escuta de Débora. Fala de uma posição de especialista, com hipóteses sobre a paciente, a partir de uma posição realista, em busca de uma explicação para os fatos.Essa postura, analisada posteriormente ao momento interacional, é condizente com a configuração que o exercício tomou de ser uma ajuda à paciente e não aos profissionais presentes.

Na interação, tentando convidar Cristina a se colocar no lugar da paciente, a facilitadora pergunta como Marcela havia se sentido ouvindo o relato e avaliações de Débora. Contudo, essa pergunta carregava uma tensão pois, ao mesmo tempo em que convidava Cristina a se colocar no papel de Marcela, colocava sob avaliação o que havia sido dito por Débora. Mas, a resposta de Cristina foi no sentido de legitimar o que Débora havia falado sobre Marcela e, então, a facilitadora tenta novamente convidar Cristina à reflexão a partir da posição da paciente, questionando se a avaliação era da Marcela ou da profissional Cristina. Essa pergunta, todavia, gerou o efeito contrário, como pudemos ver: ao invés de aproximar Cristina de Marcela, gerou a separação e diferenciação entre as duas, soando como um convite para Cristina justificar suas avaliações sobre a paciente a partir de evidências.

Nesse momento fica claro para a facilitadora que o exercício não servira para os fins imaginados. Isso se torna ainda mais claro com a insegurança compartilhada por Paula, com relação à sua fala posicionada como a mãe da paciente. Considerando que ela não tinha muitos dados sobre o caso, ela compartilha que não estava se sentindo preparada para falar. Diante disso, a facilitadora tenta convidá-la ao exercício da empatia, imaginando como uma mãe de uma paciente como a Marcela poderia se sentir, convite que é aceito por Paula, mas questionado por João, que sugere que Reinaldo (um participante do grupo que chegara atrasado, entrando no meio do processo) tomasse para si o papel da mãe, por conhecê-la melhor.

Dessa forma, se voltando a pensar em como ajudar a paciente e não a profissional consultante, Cristina pôde, contudo, identificar um aspecto importante que dificultava as ações de cuidado à Marcela pela equipe. A partir da sua experiência em diferentes turnos do serviço, ela percebeu que não havia uma continuidade nas ações das equipes dos diferentes turnos com relação a forma de se relacionar com a paciente, o que se tornou uma questão importante para a equipe na continuidade das conversas, após o exercício.

REFLEXÃO

Após o momento de escuta, a facilitadora, dando seguimento ao exercício, convidou Débora a compartilhar o que havia pensado e sentido, ouvindo o compartilhar das pessoas posicionadas como participantes do caso. O trecho a seguir mostra essa interação.

Gabriela: (...) Ô Débora, agora que você ouviu o pessoal, a opinião, as reflexões e tal, a partir dessas posições, é... como que foi pra você, que avaliação você faz, você pensou alguma coisa? Enquanto você ouvia?

Débora: É, assim, no caso, da realidade mesmo, né, do que acontece mesmo na família?

Gabriela: U-hum.

Débora: Ah... é, conflitos né, tem mesmo, que tem, mas o que é, no caso, o que sobressai mesmo é o quê que tá o problema dela no caso... no caso eu acho que também faltou um pouco de educação dela também. Não sei se isso também, a mãe é culpada disso tudo, sabe? Porque ela tenta, a mãe tenta, né, mas também vai do filho obedecer ou não, né?! E isso, não sei, se isso já é do transtorno, é da doença ou é da pessoa, sabe?

Gabriela: U-hum.

Débora: Do caráter da pessoa... não sei. (Páginas 16-17, linhas 530-541).

Seguindo a lógica das conversas desenvolvidas até então, Débora também não compartilha seus sentimentos e pensamentos a partir do que foi falado pelos colegas, mas fala de hipóteses sobre as origens do transtorno e comportamento considerado inadequado de Marcela. Desta forma, orientando-se em ajudar a paciente, faz alusão a informações de prontuário da mesma, que giram em torno de questões familiares e intrapsíquicas que teriam gerado o transtorno e comportamentos de Marcela.

Como todas as conversas possibilitadas pelo exercício, até então, se deram em torno dessa busca por explicações para os problemas da paciente e de sua família, tomados como uma realidade independente da relação com os/as profissionais, consideramos que não havia base relacional para que Débora trouxesse, no momento da reflexão, outros sentidos e outras vozes.

Inclusive, esse momento foi tomado pela facilitadora como mais uma oportunidade de valorizar a dedicação e disposição de Débora em ocupar o lugar de consultante, ao invés de continuar investindo na configuração da proposta inicial do exercício. Daí a facilitadora ter optado por acolher o que Débora tinha a dizer, de maneira completamente aberta.

A partir desse instante, como todas as pessoas já tinham tido oportunidade de falar sobre o exercício, a facilitadora deixou que a conversa fluísse, sem buscar conduzir a conversa para a etapa de discussão e fechamento. Desta forma, a equipe se dedicou, no restante desse encontro, a conversar sobre a questão da descontinuidade de ações entre as equipes de diferentes turnos, trazida por Cristina anteriormente; bem como sobre o que chamaram não disseminação das informações sobre os casos atendidos entre todas os/as profissionais das equipes. Essa discussão culminou no levantamento de algumas ideias sobre como cada equipe poderia elaborar um histórico sistematizado sobre os/as pacientes atendidos, de modo a facilitar que todos tivessem acesso a essas informações.

Entendemos que essas não são ideias que colocam em perspectiva a participação das diferentes disciplinas e profissionais na configuração dos problemas enfrentados no cotidiano dos serviços de saúde mental, tal como o exercício proposto buscava proporcionar. Ao contrário, elas reificam a ideia tradicional de que os transtornos psiquiátricos têm causas familiares e individuais que devem ser identificadas e tratadas por profissionais. Contudo, se tratou de um passo importante dado pela equipe no sentido de encontrar formas de caminharem juntos num cuidado que se propõe interdisciplinar.

 

DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da análise do exercício, podemos identificar que a falta de construção do contexto conversacional (Japur & Ruffino, 2014), isto é, de preparação das pessoas para interações dialógicas, foi a principal questão que inviabilizou o desenvolvimento do exercício como o planejado. No caso específico, deveria ter feito parte da construção do contexto conversacional a sensibilização dos/as profissionais do grupo para a compreensão de que o manejo dos casos clínicos é atravessado pelos posicionamentos que, como profissionais, assumimos e atribuímos às pessoas. Nesse sentido, a implicação do/a profissional na análise de seus próprios sentimentos e posições é relevante para a compreensão "do caso" – visto aqui como a própria dinâmica relacional.

De modo contrário, já no início, identificamos que Débora ocupou a posição de consultante com uma questão que não era sua. A ajuda que ela buscava para "lidar melhor com a paciente", dita inicialmente, não se configurou, no desenrolar de seu relato, como uma ajuda para ela, enquanto representante de um grupo de profissionais, mas para a paciente. Assim, a doença mental foi tomada como uma instância que existe para além das relações, não havendo possibilidade para que as práticas de cuidado da equipe fossem colocadas em análise.

Isso nos convida a pensar na importância do processo de escolha do/a consultante na aplicação deste exercício com grupos de profissionais. Colocar isso como um passo na preparação para o exercício pode ajudar o/a facilitador/a a identificar, na equipe, alguém que possa fazer um relato de uma situação desafiadora a partir de uma posição pessoal, relativa à sua própria prática.Além disso, pode ajudar o/a facilitador/a a compreender se o exercício poderá ser útil ao contexto, promovendo conversas transformadoras, se configurando em uma diferença que fará diferença para o grupo (Bateson, 1972).

Exercícios reflexivos devem buscar inserir diferenças adequadamente incomuns no diálogo, tornando o familiar não-familiar, o comum incomum, expandindo as possibilidades de significação (McNamee & Shotter, 2004). Nesse estudo de caso, concluímos que a proposta do exercício se configurou numa diferença inadequadamente incomum para o grupo, naquele momento. Isso porque, além das possibilidades colocadas pelo momento interacional, as histórias de vida e tradições culturais das quais as pessoas fazem parte também determinam suas possibilidades de significação. A facilitadora, tendo anos de experiência de facilitação de processos grupais, talvez tenha tomado como certo que bastaria explicar o exercício, mudar algumas palavras ao se referir ao caso e convidar as pessoas para entrarem em contato com sentimentos e pensamentos para que elas se abrissem para a consideração do caráter relacional e dialógico dos problemas. Não se deu conta de que precisaria considerar de onde aqueles/as profissionais falavam, a partir de qual paradigma faziam suas análises do caso, e de que maneira estavam habituados/as, como equipe, a conversar sobre casos de pacientes.

Havia, no grupo, o padrão de se conversar sobre casos de maneira a se procurar por explicações causais, com base na ciência médica e psicológica tradicionais. Assim, os problemas considerados relevantes diziam respeito ao diagnóstico e as causas ligadas à individualidade da paciente, incluindo sua personalidade e as questões familiares. Com isso, nem mesmo a ideia de se olhar para o relato de caso como uma possibilidade de narrativa pôde ser considerada, porque, na perspectiva dos/as participantes, não se tratava de uma história, mas de um conglomerado de fatos que deviam ser descobertos, analisados e colocados na ordem correta que possibilitasse à equipe visualizar formas de resolver o problema.

A experiência aqui estudada nos chama atenção, ainda, para a tensão existente na aplicação do exercício "como se" com um grupo que participa, de alguma forma, da situação problema relatada pela consultante. Considerando que a consultante deve fazer seu relato a partir da sua relação com o problema para o qual deseja ajuda, podemos pensar que a situação ficaria, assim, necessariamente configurada como algo separado dos/as demais participantes do grupo, mesmo que eles/as façam parte da equipe da consultante. Todavia, o fato de o exercício aqui analisado ter sido realizado com o grupo de profissionais que tem contato com o caso relatado por Débora, parecer ter convidado a avaliações sobre o caso, para além da narrativa trazida pela consultante. Desta forma, isto se configura em mais um aspecto que deveria ter sido considerado pela facilitadora na construção do contexto conversacional.

A partir da configuração que se deu no exercício estudado, tanto a consultante quanto os/as demais participantes em posição de escuta fizeram seus apontamentos como observadores/as externos de um fenômeno dado, não os/as considerando parte da constituição daquele fenômeno. De maneira distinta, as abordagens críticas em psicologia, como o construcionismo social,nos convidam a olhar para como nossas maneiras culturais de pensar e agir promovem o que chamamos de problemas mentais (Gergen, 2015).

A partir do construcionismo, somos convidados/asa revisitar alguns conceitos psicológicos e práticas profissionais, examinando-os em sua performatividade, isto é, a partir do que eles produzem como possibilidade de vida. Desta forma, devemos examinar o que as pessoas fazem juntas em seus processos comunicacionais (McNamee, 1996).

A partir disso, valoriza-se a reflexividade, a pluralidade, o contexto e a polissemia como promotoras de diferentes formas de pensar, estar e agir. Daí que o exercício "como se" seja considerado produtivo, numa abordagem construcionista, pois pode possibilitar que diferentes vozes e narrativas se façam presentes, por sua vez viabilizando a construção de narrativas com mais possibilidades de ação para os/as envolvidos/as.

Diante dessa experiência, contudo, pudemos entender que nenhum recurso é dialógico por si mesmo, por mais que as bases teóricas que o compõem o sejam. Assim, a aplicação de exercícios dialógicos, como o como se, demandam a construção cuidadosa do contexto conversacional, mas também a permanente tolerância do/a facilitador/a à imprevisibilidade que caracteriza o diálogo e a interação em grupo.

 

REFERÊNCIAS

Anderson, H. (1991). Opening the door for change through continuing conversations. In T. Todd & M. Selekman (Eds.), Family therapy approaches with adolescent substance abusers (pp. 176-189). Needham: Allyn & Bacon.         [ Links ]

Anderson, H. (1997). Conversation, language, and possibilities: A postmodern approach to therapy. New York: Basis Books.         [ Links ]

Bateson, G. (1972). Steps to an ecology of mind. Chicago: University of Chicago Press.         [ Links ]

Gergen, K. J. (2015). An invitatin to social construction (3rd ed.). Londres: Sage.         [ Links ]

Guanaes, C. (2006). A construção da mudança em terapia de grupo um enfoque construcionista social. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Guanaes-Lorenzi, C. (2017). Recursos para facilitação de grupos em um enfoque construcionista social. In M. Grandesso (Ed.), Práticas colaborativas e dialógicas em distintos contextos e populações: um diálogo entre teoria e prática (pp. 397-416). Curitiba: CRV.         [ Links ]

Japur, M., & Ruffino, C. M. C. (2014). Formação do mediador de conflitos numa perspectiva construcionista social. In C. Guanaes-Lorenzi, M. S. Moscheta, C. M. Corradi-Webster, & L. V. e Souza (Eds.), Construcionismo social: discurso, prática e produção do conhecimento (pp. 325-340). Rio de Janeiro: Noos.         [ Links ]

McNamee, S. (1996). Out of the head and into the discourse. Dialog Og Refleksjon, 35, 118–130.

McNamee, S., & Shotter, J. (2004). Dialogue, creativity, and change. In R. Anderson, L. Baxter & K. Cissna (Eds.). In Dialogic approaches to communications (pp. 91–104). Thousand Oaks: Sage.

Rasera, E., & Japur, M. (2004). Grupo como construção social: aproximação entre o construcionismo social e a terapia de grupo. Vetor.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Gabriela Martins Silva
E-mail: gabrielampsico@gmail.com

Recebido: 18/01/2017
Revisado: 17/04/2017
Aceito: 22/07/2017

 

 

1 Gabriela Martins Silva é psicóloga e doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2 Carla Guanaes-Lorenzi é psicóloga e professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
3 Ottar Ness é professor de Aconselhamento na Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia - NTNU, Noruega.

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