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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.19 no.1 Ribeirão Preto Jan./Jun. 2018

 

ARTIGOS

 

Clima Familiar e os problemas emocionais e comportamentais na infância

 

Family climate and the emotional and behavioral problems in childhood

 

Clima familiar y los problemas emocionales y de comportamiento en la infancia

 

 

Joanna Ferreira Leusin1, I; Giovanna Wanderley Petrucci2, II; Juliane Callegaro Borsa3, I

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
II
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse estudo investigou a relação entre clima familiar e problemas emocionais e comportamentais na infância. Participaram 237 mães, pais ou cuidadores de crianças matriculadas em escolas do ensino fundamental da cidade do Rio de Janeiro. Os dados foram coletados por meio do Inventário de Clima Familiar e do Child Behavior Checklist (CBCL 618). Correlações de Pearson e regressões lineares múltiplas indicaram associação negativa entre apoio e coesão familiar e problemas emocionais/comportamentais infantis. Além disso, conflito e hierarquia relacionaram-se positivamente com estes problemas. Os resultados apontaram para a importância dos processos proximais, em especial do clima familiar, como fatores de proteção para o desenvolvimento infantil.

Palavras-chave: família; clima familiar; problemas emocionais/comportamentais; crianças.


ABSTRACT

This study investigated the relationship between family climate and emotional/behavioral problems in childhood. A total of 237 mothers, parents or caregivers of children enrolled in elementary schools in Rio de Janeiro participated in the study. Data were collected through the Family-Climate Inventory and the Child Behavior Checklist (CBCL 6/18). Pearson's correlations and multiple linear regressions indicated a negative association between family support and cohesion and children's emotional/behavioral problems. Thus, conflict and family hierarchy were positively associated with these problems. The results showed the importance of the proximal processes, and especially the family climate, as an important source of protection for children's development.

Keywords: family; family climate; emotional and behavioral problems; children.


RESUMEN

Este estudio investigó la relación entre el clima familiar y los problemas emocionales/comportamentales en la infancia. Participaran 237 madres, padres o cuidadores de niños matriculados en escuelas del sistema educativo fundamental de Río de Janeiro. Los datos fueron recogidos por medio del Inventario de Clima Familiar y el Child Behavior Checklist (CBCL 6/18). Correlaciones de Pearson y regresiones lineares múltiples indicaran asociación negativa entre apoyo y cohesión familiar y los problemas emocionales y de comportamiento de los niños. Además conflicto y jerarquía presentaran relación positiva con estos problemas. Los resultados indican que los procesos proximales, específicamente el clima familiar, son una importante fuente de protección para el desarrollo de los niños.

Palabras clave: familia; clima familiar; problema emocional/comportamental; niños.


 

 

Diferentes perspectivas teóricas acerca do desenvolvimento humano reportam a influência do contexto no desenvolvimento do indivíduo (Bronfenbrenner, 1996). Especificamente, a família vem sendo amplamente estudada no campo das ciências humanas ao longo das últimas décadas, por considerada o primeiro e mais importante contexto interpessoal para o desenvolvimento humano (Boing, Crepaldi, & Moré, 2008; Bronfenbrenner, 1996; Minuchin, 1995).

Existem diferentes fatores do contexto familiar que podem exercer influência nas trajetórias de desenvolvimento, dentre eles o clima familiar, que se refere às características das relações intrafamiliares, conforme avaliadas pelos seus membros (Teodoro, Allgayer, & Land, 2009). Segundo Teodoro et al. (2009), o clima familiar é composto por quatro dimensões: conflito, hierarquia (polo negativo), apoio e coesão (polo positivo).Conflito diz respeito à relação agressiva, crítica e conflituosa entre os membros da família. Hierarquia é definida como uma distinção rígida de poder e de controle nas relações intergeracionais dentro da família. Apoio, por sua vez, refere-se à existência de suporte material e emocional entre as pessoas da família. Por fim, Coesão diz respeito ao vínculo emocional entre os membros da família (Teodoro et al., 2009).

O clima familiar positivo está associado a diferentes desfechos desenvolvimentais, como melhor desempenho nas habilidades sociais (Leme, Dell Prette, Koller, & Del Prette, 2015; Valencia & López, 2011) e acadêmicas (Marturano & Elias, 2016), menor probabilidade de ocorrência de abuso sexual (Svedin, Back, & Derback, 2002), de vitimização (Ortega-Barón, Buelga, & Cava, 2016), melhor qualidade nas relações interpessoais (Fosco & Ryzin, 2016) e menores níveis de problemas emocionais e comportamentais (Schultz & Shaw, 2003; Teodoro, Binsfeld, Saraiva, & Cardoso, 2014).

Estudos sobre o contexto familiar são complexos, já que a família pode assumir diferentes configurações estruturais e relacionais (Boing, et al., 2008; Dessen, 2010; Dias, 2011; Teodoro et al., 2009). Modelos teóricos sistêmicos, como a teoria bioecológica do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1996) têm sido amplamente utilizados para explicar a interação da pessoa com o contexto (Diniz & Koller, 2010; Petrucci, Borsa, & Koller, 2016). Nela, o desenvolvimento humano é compreendido como o resultado da interação de diferentes fatores individuais e contextuais, sendo os processos proximais considerados como importantes motores do desenvolvimento. Esses processos referem-se às atividades cotidianas da pessoa em interação com outros indivíduos, objetos e símbolos do seu ambiente externo imediato, ou seja, do seu microssistema (Bronfenbrenner, 1996).

No microssistema familiar, os processos proximais podem ser exemplificados pelas relações que a criança estabelece com os pais, irmãos e demais membros. Assim, o clima familiar pode ser considerado um exemplo de processo proximal que, dependendo da qualidade, pode resultar em efeitos de competência ou de disfunção (Bronfenbrenner, 1996). Um clima familiar positivo pode resultar em efeitos de competência, como habilidades sociais, empatia, competência acadêmica, entre outros. Já um clima familiar negativo pode resultar em importantes efeitos de disfunção, como a ocorrência de problemas emocionais e comportamentais e outros padrões de interação social disruptivos (Bolsoni-Silva & Del Prette, 2003; Leme et al., 2015).

OS PROBLEMAS EMOCIONAIS E COMPORTAMENTAIS NA INFÂNCIA

Os problemas emocionais e comportamentais são definidos como padrões sintomáticos, caracterizados por excessos ou déficits, que causam prejuízos ao próprio indivíduo e/ou às pessoas que convivem com ele (Bolsoni-Silva & DelPrette, 2003). Atualmente há diferentes formas de definir e compreender esses problemas não havendo um consenso na literatura. De acordo com a proposta de Achenbach (2001), eles podem ser classificados como internalizantes ou externalizantes. Os problemas internalizantes envolvem preocupação em excesso, retraimento, tristeza, insegurança e costumam ser manifestados por meio de transtornos depressivos, de ansiedade, queixas psicossomáticas e isolamento social. Esses tipos de problemas tendem a acontecer no âmbito privado e por isso são mais dificilmente observados pelos cuidadores. Os problemas externalizantes, por sua vez, são manifestados no ambiente e por isso mais facilmente percebidos; incluem impulsividade, agressividade, hostilidade, hiperatividade, oposição, desobediência aos limites impostos e comportamentos delinquentes (Achenbach, 2001). Estudos apontam para a alta prevalência de problemas emocionais e comportamentais na infância (Anselmi, Fleitlich-Bilyk, Menezes, Araújo, & Rohde, 2010; Borsa, Souza, & Bandeira, 2011; Feitosa, Ricou, Rego, & Nunes, 2011) e alertam para o impacto negativo destes comportamentos ao longo do desenvolvimento, já que dificultam a adaptação da criança ao ambiente, interferindo no seu desenvolvimento psicossocial (Fleitlich & Goodman, 2002; Gonçalves & Murta, 2008; Homem, Gaspar, Azevedo, & Canavarro, 2013).

A literatura tem se dedicado a compreender que variáveis individuais e contextuais estão associadas ao desenvolvimento dos problemas emocionais e comportamentais na infância (Assis, Avanci & Oliveira, 2009; Bordin et al., 2009). Além das características individuais (por exemplo, temperamento, personalidade e habilidades cognitivas, entre outros), as relações familiares podem atuar como importantes fatores de risco ou de proteção para o desenvolvimento (Marturano & Elias, 2016; Teodoro et al., 2014; Teodoro, Cardoso, & Freitas, 2010; Vilela, Silva, Grandi, Rocha, & Figlie, 2016). Entende-se por fatores de proteção, as variáveis que favorecem o desenvolvimento saudável, mesmo quando a criança vivencia eventos estressores ou negativos. Já os fatores de risco são características que expõem a criança a resultados adversos, impactando de forma negativa seu desenvolvimento (Assis et al., 2009; Gauy & Rocha, 2014).

Famílias com interações satisfatórias e adequadas podem ser consideradas como importantes fatores de proteção para o desenvolvimento (Sá, Bordin et al., 2010; Petrucci et al., 2016; Zappe & Dell'Aglio, 2016). Por outro lado, eventos familiares negativos, como presença de conflitos, abuso e substâncias, entre outros, são apontados como importantes fatores de risco, sobretudo para a ocorrência de problemas comportamentais e emocionais na infância (Murray, Anselmi, Gallo, Fleitlich, & Bordin, 2013; Vilela et al., 2016).

Com base na teoria bioecológica, Whittaker, Harden, See, Meische Westbrook (2011) investigaram o efeito das características da família sobre o desenvolvimento da competência socioemocional na infância. Os resultados indicaram que a presença de conflito familiar influenciou o estresse parental e impactou na qualidade da relação efeito com os filhos. Já o estudo de Marturano e Elias (2016) testou um modelo de predição de problemas de comportamento em crianças, tendo como variáveis preditora apoio e adversidade familiar. Os resultados apontaram a relação da adversidade familiar e os problemas internalizantes e externalizantes das crianças. Especificamente, duas modalidades de apoio familiar (rotina regular no dia a dia e atividades de lazer no tempo livre) parecem implicadas na atenuação desses problemas.

Considerando a importância da família e, em especial, do clima familiar como fator de risco ou de proteção para o desenvolvimento infantil, o presente estudo teve por objetivo investigar a relação entre clima familiar e problemas emocionais/comportamentais de crianças residentes na cidade do Rio de Janeiro.

 

MÉTODO

PARTICIPANTES

Participaram do estudo 237 mães, pais ou cuidadores de meninos (n = 110; 46,4%) e meninas (n = 127; 53,6%), com idades variando entre7 e 13 anos (M = 9,35; DP = 1,33), matriculadas em escolas públicas (n = 114; 48,1%) e privadas (n= 123; 51,9%) do ensino fundamental do Rio de Janeiro. Dentre os respondentes, 168 (70,6%) eram mães, 39 (16,4%) eram pais e 30 (13%) não informaram o grau de parentesco com a criança.

No que se refere ao nível de escolaridade dos pais, 46 (19,4%) tinham ensino fundamental incompleto, 21 (8,9%) tinham ensino fundamental completo, 76 (32,1%) tinham ensino médio completo, 50 (21,1%) tinham ensino superior completo, 34 (14,3%) tinham pós-graduação completa e 10 (4,2%) não informaram a escolaridade. Em relação à escolaridade das mães, 27 (11,4%) tinham ensino fundamental incompleto, 29 (12,2%) tinham ensino fundamental completo, 71 (29,9%) tinham ensino médio completo, 62 (26,2%) tinham ensino superior completo, 46 (19,4%) tinham pós-graduação completa e duas (0,8%) não informaram. Por fim, em relação à renda da família, seis (2,5%) ganhavam até um salário mínimo, 52 (21,9%) ganhavam entre um e três salários mínimos, 49 (20,7%) ganhavam entre três e cinco salários mínimos, 26 (11%) ganhavam entre seis e nove salários mínimos, 30 (12,7%) ganhavam entre nove e doze salários mínimos e 71 (30%) ganhavam mais de doze salários mínimos.

INSTRUMENTOS

Inventário do Clima Familiar – ICF (Teodoro et al., 2009). O ICF é composto de 22 itens que avaliam a percepção dos pais acerca das características das relações familiares a partir de quatro fatores: conflito (ex.: "Os conflitos são comuns"), hierarquia (ex.: "É comum que algumas pessoas proíbam outras de fazer determinadas coisas sem explicar o porquê"); apoio (ex.: "Procuramos ajudar as pessoas da nossa família quando percebemos que estão com problemas") e coesão (ex.: "As pessoas sentem-se felizes quando toda a família está reunida").

Child Behavior Checklist – CBCL 6/18 (Achenbach, 2001). O CBCL 6/18 anos é um questionário destinado aos pais/mães ou cuidadores para que forneçam respostas referentes aos problemas emocionais e comportamentais de crianças com idade entre 6 e 18 anos. Esse instrumento é composto de 138 itens, sendo 20 para avaliação da competência social da criança e 118 para avaliação dos problemas de comportamento. Os itens estão distribuídos em onze escalas que correspondem a diferentes problemas emocionais/comportamentais da criança. Três dessas escalas (Atividades, Social, Escolar) compõem a Escala de Competência Social. As outras oito escalas (Ansiedade-Depressão, Isolamento-Depressão, Queixas Somáticas, Problemas Sociais, Problemas de Pensamento, Problemas de Atenção, Comportamento de Quebrar Regras/Delinquencial, Comportamento Agressivo) compõem a Escala Total de Problemas de Comportamento. Para este estudo foram usadas apenas as oito escalas que compõem a Escala Total de Problemas de Comportamento.

PROCEDIMENTOS ÉTICOS E DE COLETA DE DADOS

O presente estudo é parte de um projeto de pesquisa mais amplo, intitulado "Prevalência dos comportamentos agressivos em escolas da cidade do Rio de Janeiro". O mesmo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (CAEE: 57966816.3.0000.5282). A coleta de dados consistiu na aplicação (presencial) de um protocolo de instrumentos com as crianças e também do envio de um protocolo de instrumentos para seus pais ou responsáveis, com o objetivo de conhecer a prevalência de comportamentos agressivos em estudantes do Rio de Janeiro. Para o presente estudo, foram utilizados apenas os dados advindos dos questionários respondidos pelos pais, sendo eles o ICF e CBCL. Os participantes foram informados sobre o objetivo e procedimentos da pesquisa, bem como da privacidade e confidencialidade dos dados e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DOS DADOS

Para fins de análise de dados, foram realizadas correlações bivariadas de Pearson entre os quatro fatores do ICF (i.e. apoio, coesão, conflito e hierarquia) e os oito fatores do CBCL (i.e. ansiedade-depressão, isolamento-depressão, queixas somáticas, problemas sociais, problemas de pensamento, problemas de atenção, comportamento de quebrar regras/delinquencial, comportamento agressivo). Buscando pormenorizar tais resultados e avaliar como o clima familiar impacta nos problemas emocionais e comportamentais a criança, foram realizadas análises de regressões lineares múltiplas (Método Enter).

 

RESULTADOS

A Tabela 1 apresenta o resultado das correlações entre os fatores do ICF e do CBCL, os fatores conflito e hierarquia apresentaram correlação significativa e positiva com todos os indicadores de problemas de comportamento. Os fatores apoio e coesão apresentaram correlação significativa e negativa com os fatores isolamento-depressão, queixas somáticas e problemas de atenção. Além disso, o fator coesão correlacionou-se negativamente com problemas de pensamento e comportamento agressivo. Em relação ao conflito, a maior correlação foi encontrada com comportamentos agressivos (r= 0,468; p< 0,01). Em relação à hierarquia, a maior correlação se deu com problemas de atenção (r = 0,272; p< 0,01). Em relação ao apoio, a maior correlação foi com o fator queixas somáticas (r = -0,208; p<0,01) e problemas de atenção (r = -0,208; p< 0,01). Por fim, em relação à coesão, a maior correlação foi com o fator queixas somáticas (r = -0,267; p<0,01). Dentre todos os fatores do ICF, o fator conflito foi o que apresentou correlações mais elevadas com os fatores do CBCL (Tabela 1).

 

 

Com vistas a pormenorizar os resultados das análises de correlação, foram implementadas regressões lineares múltiplas (método Enter) para investigar a relação entre o clima familiar e os problemas de comportamento das crianças (Tabela 2). Foram inseridos todos os fatores do ICF, inclusive os que não apresentaram correlações significativas, uma vez que a inserção de todas as variáveis em um único modelo pode apresentar padrões diferentes de associações.

 

 

Em relação ao fator ansiedade-depressão, o ICF explicou 9% de sua variância. Apenas o fator conflito apresentou predição estatisticamente significativa (β = 0,30, p< 0,01). Para o fator isolamento-depressão, o ICF explicou 4% da variância, sendo que apenas o fator hierarquia apresentou impacto marginalmente significativo (β= 0,14, p = 0,06). Em relação às queixas somáticas, 10% da variância foi explicada, mas apenas o fator coesão apresentou impacto marginalmente significativo (β= -0,16, p= 0,06). Em relação aos problemas sociais, o ICF explicou 13% de sua variância, mas apenas o fator conflito teve impacto estatisticamente significativo (β= 0,31, p< 0,01). Em relação aos problemas de pensamento, o ICF explicou 10% da variância, mas apenas o fator conflito impactou significativamente (β= 0,30, p< 0,01). Para problemas de atenção, o ICF explicou 22% da variância, sendo que conflito impactou positivamente (β= 0,36, p< 0,01) e apoio impactou negativamente (β = - 0,15, p< 0,05). Para comportamento de quebrar regras, o ICF explicou 13% da variância, mas apenas conflito impactou significativamente (β= 0,33, p< 0,01). Por fim, em relação ao comportamento agressivo, o ICF explicou 22% da variância, sendo que, mais uma vez, apenas conflito apresentou impacto estatisticamente significativo (β= 0,47, p< 0,01).

 

DISCUSSÃO

O presente estudo teve por objetivo investigar a relação entre clima familiar e problemas emocionais/comportamentais na infância. Ao investigar a relação entre os fatores do ICF e os problemas emocionais e comportamentais das crianças avaliados pelo CBCL, verificou-se que o fator conflito familiar foi o que apresentou maior associação com os referidos problemas, corroborando estudos prévios (Georgiou & Stavrinides, 2013; Sbicigo & Dell'Aglio, 2012; Whittaker et al., 2011). Além disso, o conflito familiar apresentou correlações mais elevadas com o fator agressividade do que com os demais fatores presentes no CBCL. A relação entre conflito familiar e agressividade em crianças é comumente reportada na literatura (Silveira & Wagner, 2011; Fosco & Ryzin, 2016; Ortega-Barón et al., 2016). Destaca-se, por exemplo, o estudo de Georgiou e Stavrinides (2013), o qual identificou relação elevada entre conflito familiar e experiências de bullying e de vitimização entre estudantes.

O inventário de Clima Familiar propõe a existência de dois polos de características, quais sejam, o polo positivo (coesão e apoio) e o polo negativo (conflito e hierarquia) (Teodoro, Allgayer, & Land, 2009). Em geral, o presente estudo indicou que o polo negativo apresentou correlações positivas com os problemas emocionais/comportamentais das crianças. Já o polo positivo apresentou correlação negativas com esses problemas. Esses resultados corroboram os resultados de Teodoro et al. (2014), os quais indicaram que uma maior intensidade de sintomas internalizantes e externalizantes está positivamente relacionada com baixo apoio e baixa coesão, além de altos níveis de conflito e hierarquia familiar. Dessen e Polonia (2007) afirmam que a qualidade da relação pais-filhos é preditora do desenvolvimento saudável e, consequentemente, de interações positivas e afetuosas fora do ambiente familiar. Em contrapartida, famílias com conflitos frequentemente apresentam baixa coesão e baixo apoio entre os membros (De Antoni, Teodoro, & Koller, 2008).

As análises de regressão indicaram que o fator conflito foi o único que apresentou efeito significativo na ocorrência da maior parte dos problemas emocionais e comportamentais da criança, com exceção dos problemas de isolamento-depressão e de queixas somáticas. O fator apoio social teve efeito significativo apenas sobre os problemas de atenção, mas a variância explicada foi inferior à variância explicada pelo fator conflito. Esses resultados corroboraram os dados das análises de correlação já citadas, indicando uma maior associação entre conflito familiar e problemas emocionais e comportamentais. O conflito familiar está associado à falta de vínculos positivos entre os membros da família que, por sua vez, resulta em baixo rendimento escolar, dificuldades de concentração, problemas de memória e comportamentos hiperativos (Matos et al., 2014). Dessa forma, crianças inseridas em ambientes familiares conflituosos podem encontrar dificuldades nas relações interpessoais e no desenvolvimento das suas características individuais (Petrucci et al., 2016). Ao avaliar a relação preditiva entre clima familiar e indicadores de adaptação psicológica em adolescentes, Sbicigo e Dell'Aglio (2012) concluíram que altos índices de apoio e de coesão e baixos índices de conflito na família foram considerados como preditores de autoestima e de autoeficácia geral nos adolescentes do estudo.

A teoria bioecológica do desenvolvimento humano considera o microssistema familiar como uma importante fonte de segurança e apoio para o desenvolvimento saudável da criança. Porém, muitas vezes os processos proximais que acontecem nesse sistema podem ser disfuncionais devido aos eventos de vida estressantes (Bronfenbrenner, 1996). Segundo Petrucci et al. (2016), crianças que vivem em ambientes familiares que oferecem suporte às suas necessidades socioemocionais geralmente se adaptam mais facilmente a novos contextos, apresentando maiores níveis de competência social e menores níveis de problemas comportamentais. A perspectiva sistêmica proposta pela teoria bioecológica de Bronfenbrenner contribui ao sugerir que as características familiares estão associadas às competências ou dificuldades sociais no indivíduo (Brofenbrenner & Morris, 1998), conforme pode ser observado no presente estudo. Essa perspectiva fica evidente, por exemplo, no estudo de Zappe e Dell'aglio (2016) que investigou os comportamentos de risco, fatores de risco e de proteção ao longo da vida em adolescentes que vivem em diferentes contextos: família, acolhimento institucional e instituições para cumprimento de medidas socioeducativas. Os resultados apresentados pelas autoras identificaram que os comportamentos de risco foram mais alto entre os adolescentes institucionalizados que entre os adolescentes que viviam com suas famílias.

Por fim, é importante ressaltar que o suporte e a coesão familiar auxiliam as crianças no enfrentamento das demandas da sociedade e na aceitação de si mesmas (Rohenkohl & Castro, 2012). O sentimento de pertença é primeiramente desenvolvido na família, por meio do diálogo, da relação conjugal integrada e da liderança compartilhada com os filhos de forma democrática e não coerciva (Souza, Baptista, & Alves, 2008). De acordo com De Antoni, Teodoro e Koller (2009), a coesão familiar influencia o bem-estar psicossocial de todos os integrantes da família, além de desenvolver as habilidades emocionais e sociais das crianças. Famílias com relacionamentos coesos tendem a ser mais funcionais, diminuindo a presença de conflitos e de outros tipos de problemas relacionais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa teve por objetivo investigar a relação do clima familiar, avaliado pelo ICF e os problemas emocionais/comportamentais na infância, avaliados pelo CBCL. Conforme propõe o modelo bioecológico do desenvolvimento humano, cada contexto em que o indivíduo está inserido apresenta características importantes, impactando no desenvolvimento e, sobretudo, nas manifestações emocionais e comportamentais. A família é considerada o primeiro contexto de interação da criança, podendo atuar como fator de risco ou de proteção para o desenvolvimento, dependendo da qualidade dos seus processos proximais, como é o caso do clima familiar. Os fatores positivos do clima familiar (apoio e coesão) relacionaram-se negativamente com os problemas infantis, enquanto os fatores negativos relacionaram-se positivamente com tais problemas, corroborando a relação entre a qualidade dos processos proximais e os efeitos de competência ou disfunção (Leme et al., 2015).

Desta forma, entende-se que investir na qualidade das relações familiares pode permitir com que seus membros se sintam mais acolhidos, seguros e felizes para enfrentar as demandas ambientais, permitindo o desenvolvimento de comportamentos funcionais e adaptativos. Além disso, intervenções psicoeducativas que visem capacitar os pais sobre como educar seus filhos e como manejar os problemas intrafamiliares podem aumentar a qualidade de vida dos membros da família, resultando em crianças mais preparadas para a conviver harmoniosamente em sociedade.

O presente estudo tem caráter transversal, tendo sido realizado em uma amostra de participantes residentes na cidade do Rio de Janeiro. Portanto, os dados não podem ser generalizados, sugerindo a necessidade de novos estudos, em diferentes contextos regionais. Estudos longitudinais podem ser úteis para esclarecer em qual sentido ocorre a relação entre as variáveis da família e os problemas emocionais e comportamentais na infância, ampliando e atualizando as evidências empíricas sobre o tema. Apesar das referidas limitações, a amostra contou com famílias com diferentes perfis socioeconômicos, incluindo alunos provenientes de escolas particulares e públicas. Entende-se que estes resultados reforçam a importância do contexto familiar para o desenvolvimento infantil, corroborando os achados da literatura. Especificamente, este estudo demonstra o impacto do conflito familiar sobre os problemas emocionais e comportamentais na infância, indicando a relevância de novas investigações que visem auxiliar na promoção de relações intrafamiliares funcionais e positivas.

 

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Financiamento: Estudo desenvolvido com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Edital Universal, 2013-2016).

 

 

Endereço para correspondência
Juliane Callegaro Borsa
E-mail: juliborsa@gmail.com

Recebido: 18/01/2017
Reformulado: 15/07/2017
Aceito: 20/07/2017

 

 

1 Joanna Ferreira Leusin é mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. Bolsista CAPES.
2 Giovanna Wanderley Petrucci é doutoranda em Psicobiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
3 Juliane Callegaro Borsa é docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica (PUC-Rio).

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