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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.19 no.2 Ribeirão Preto July/Dec. 2018

 

EDITORIAL

 

"Por que só no fim do livro?": revisitando a grupalidade com crianças

 

 

Fabio Scorsolini-Comin1, I; Adriano Alves da Silva2, II

IUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil
II
Colégio Logos, Orlândia-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Vocês hão de perguntar: por que só no fim do livro?
E eu respondo:
- É porque no começo e no meio vou contar algumas histórias de bichos que eu tive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem querer.
Estou com esperança de que, no fim do livro, vocês já me conheçam melhor e me deem o perdão que eu peço a propósito da morte de dois "vermelhinhos" – em casa chamávamos os peixes de "vermelhinhos".
(A mulher que matou os peixes, 1968, Clarice Lispector)

 

A confissão de um crime motivado pela negligência em relação aos peixinhos dos filhos é o mote para o início da obra "A mulher que matou os peixes", de Clarice Lispector. Nesta obra, desde o início, a narradora se coloca na posição de quem precisa ser compreendida – e perdoada – pelo leitor. Ela mesma, de antemão, revela não apenas que o livro trata de um crime, mas também pede a clemência do seu público, composto por crianças, a fim de que o episódio não a encarcere simbolicamente. É desse modo que Clarice começa o seu diálogo com as crianças.

Ao ler este livro no ensino fundamental, a cena que observamos é a de uma sala toda atenta e julgadora, tal qual em um tribunal. Todos aguardam o fim do enredo para o veredito final: estaria a narradora absolvida? É possível se redimir de um crime como esse? A narradora teve ou não culpa? Merece ser perdoada? As crianças, então, se põem a conversar sobre argumentos, explicações, justificativas, algumas narram suas próprias experiências – que também envolvem a morte de seus bichos e semelhantes situações de negligência, de "esquecimento" ou de "descuido", como queiram. Todos humanizados e reconhecidos na fragilidade da confissão, está iniciado um processo de construção grupal com crianças. Todas se põem a conversar, levantando ideias e buscando cúmplices, pontos de vistas semelhantes, diferenças, aproximações e distanciamentos. Algumas mudam de ideia após ouvirem o que o outro tem a dizer. Todas se posicionam e se reposicionam. Estamos trabalhando com o grupo.

A grupalidade infantil tem sido abordada na Psicologia, muitas vezes, em termos da oferta de apoio psicológico a crianças, o que remonta aos desafios e especificidades da própria clínica infantil (Guimarães, Malaquias, & Pedroza, 2013), em boa parte influenciada por autores como Freud, Klein e Winnicott, apenas para citar alguns exemplos da psicanálise, que sempre trouxe à baila uma sólida reflexão sobre o desenvolvimento infantil. A grupalidade pensada tanto como possibilidade de oferta de atenção profissional especializada nesse público como também uma forma de organização e de acesso ao universo infantil vem recebendo diversas contribuições na contemporaneidade. Nosso convite nesse espaço de interface com a obra de arte é pensar a grupalidade infantil a partir de um convite que dialoga diretamente com a literatura produzida para crianças. Mais especificamente, este texto se debruça a pensar essa grupalidade por meio da obra infantil produzida por Clarice Lispector.

A obra de Clarice Lispector (1920-1977), no contexto da literatura nacional após o modernismo, destaca-se pela ousadia com que trata de questões como a corporeidade, o papel social da mulher e temáticas existencialistas ligadas à finitude e à angústia, por exemplo. Predominantemente suas obras abordam não somente o corpo físico e dividido (mente-corpo), mas também o corpo como um veículo ativo, carregado de significados que são construídos ao longo das narrativas (Scorsolini-Comin & Santos, 2010).

A literatura de Clarice persiste em seus motivos primeiros, fiel a um dado de experiência intensa, tratando da angústia que emerge da fala e que desmonta antigos sistemas de sentidos já pré-estabelecidos, anunciando, assim, um novo vir-a-ser, que se vislumbra em privilegiados instantes da vida, e de corpos vivos (Gotlib, 1995). Muito da obra da autora é reflexo de sua trajetória e de sua experiência pessoal – como mulher, mãe, esposa, jornalista -, e ela mesma já fez apelos para ser vista como uma pessoa, simplesmente pessoa, e abominou o caráter profissional mecanicista do fazer literário, pelo pavor do automatismo. No entanto, nunca perdeu a noção de seu valor como experiência estética humana, o que é refletido em sua obra, nas experiências e sensações de suas personagens. Os traços de originalidade e imprevisibilidade são características fundamentais suas, destacando-se pela observação profunda que surpreendia seu interlocutor, colocando em pauta questões que estariam cobertas (Gotlib, 1995). Clarice Lispector também é uma das autoras mais pesquisadas no contexto científico, sendo alvo das investigações nos campos da Literatura, da Psicologia e da Filosofia (Dinis, 2003; Fonseca, 2009; Góis, 2007; Pozenato, 2010; Scorsolini-Comin & Santos, 2010; Scorsolini-Comin & Silva, 2018; Silva, 2014; Silva & Nascimento, 2014).

Embora o senso comum tenha se aproximado bastante dessa escritora, nem tanto pelo que ela, de fato, escreveu, mas fundamentalmente pelo que se atribui, erroneamente, à sua autoria, paira um grande desconhecimento sobre Clarice. Esse desconhecimento revela obras que ainda chegam pouco ao grande público, como é o caso dos seus escritos voltados especificamente às crianças, o que também pode ser explicado pela grande efervescência de seus escritos voltados ao público adulto. Escrevendo originalmente para os próprios filhos, Clarice narra experiências com bichos de estimação, animais que foram convidados para entrar em casa (cachorros, gatos, coelhos...) até mesmo com os bichos que ela denomina como aqueles que não foram convidados (a exemplo das baratas, dos escorpiões, dos insetos em geral). O universo infantil em Clarice, além do que já foi explorado por diversos pesquisadores, revela uma potência no sentido de envolver as crianças em uma narrativa que pode ser disparadora de diferentes reflexões sobre pertencimento, fantasia, cuidado com os animais, escolhas, intimidade, punição, entre os mais diversos temas que se manifestam em suas obras (Scorsolini-Comin & Silva, 2018).

O projeto disparador dessas reflexões tem sido realizado em uma escola particular de uma cidade do interior do Estado de São Paulo. O objetivo deste projeto de Cultura e Extensão tem sido aproximar os alunos do ensino fundamental da literatura produzida por Clarice Lispector voltada especificamente ao público infantil. Os livros que compõem a literatura infantil de Clarice Lispector são "O mistério do coelho pensante" (1967), "A mulher que matou os peixes" (1968), "A vida íntima de Laura" (1974), "Quase de verdade" (1978) e "Como nasceram as estrelas" (1987). Essas obras conservam traços de sua prosa comprometida fundamentalmente com questões da ordem do cotidiano, operadas por uma poética específica que trata aspectos do existencialismo e da mundanidade das coisas. A partir de uma exploração da "humanidade" presente nos bichos, Clarice busca uma aproximação com uma vida mais instintiva e básica, ligada às paixões e a emoções que circundam o universo infantil.

Segundo Dinis (2003), essa literatura não está relacionada às lições de moral geralmente presentes nos contos de fada, por exemplo, nem mesmo busca socializar a criança ou inseri-la no universo do adulto, mas propõe à criança a experimentação de um mundo constantemente recriado pela imaginação. As personagens principais dessas obras dialogam com sentimentos tanto do mundo adulto como do universo infantil, trazendo à baila elementos que também colocam a escritora Clarice como mediadora dessas recriações. As temáticas do ciclo de vida (nascimento, desenvolvimento e morte), da natureza (cadeia alimentar, eventos climáticos), das espécies (o que é do humano e o que é do mundo dos bichos) e das relações interpessoais mediadas pelo amor, pela inveja, pela competição e pela busca pelo conhecimento, em diálogo com instituições como a escola e a família, recortam as narrativas dessas obras.

A grupalidade presente nessa experiência tem colocado os alunos e as alunas em um contato mais próximo da autora Clarice, reconhecendo traços de sua escrita que se alinham a questões de sua biografia, como a própria escrita voltada a crianças. Ao escrever inicialmente para os próprios filhos, permite que os alunos também se coloquem nessa posição de quem recebe histórias carregadas de um cotidiano compartilhado em família, tal como uma história que poderia ter sido contada também por um pai, uma mãe, uma avó. Mais do que isso, Clarice promove uma conversa direta com as crianças e adentra em um universo com poucos códigos conhecidos. A grupalidade infantil, fomentada pelas histórias da Clarice mãe de dois meninos, convoca que também essas crianças, alunas e alunos do ensino fundamental, possam se posicionar, encontrar soluções, questionar e suspender o que se sabe a respeito do que é ser criança. Essa abertura para o novo, inaugurada a partir da escrita de Clarice, tem incentivado não apenas um maior movimento no sentido de ler e escrever, mas de compreender a obra de arte como um convite à reflexão e para o estar no mundo.

Compreendemos que essa articulação pode promover aspectos importantes na formação de nossas crianças, com uma reflexão aprimorada acerca de amizades, relações familiares, o lugar da mulher em nossa sociedade e também de favorecer a emergência de comportamentos considerados importantes nos relacionamentos interpessoais, como a empatia e o desenvolvimento de habilidades sociais. As rodas de discussão têm sido uma oportunidade de refletir sobre aspectos psicológicos disparados em cada obra relacionados a experiências de diversidade, respeito, generosidade, compaixão, aceitação, descoberta e finitude, por exemplo.

Parte-se do pressuposto de que a obra de arte se relaciona constantemente com o sujeito; o sujeito receptor que percebe a obra, a maneja, a incorpora e é transformado por ela, e o sujeito artista, criador, idealizador da obra, que lapida as emoções e os sentimentos. O artista apropria-se das tensões e experiências do sujeito com a realidade, e as transforma na manifestação artística. Pode-se entender estas questões como processos psicológicos envolvidos na recepção e criação da obra de arte. Vale ressaltar que o leitor, por meio das diferentes interpretações e leituras, também cria, imagina, elabora, estimulando assim um pensamento produtivo e criador, semelhante ao artista em seu processo de criação (Baiocchi & Niebielski, 2009). Assim, essas crianças são levadas também a criar, muitas vezes em resposta à Clarice, dando continuidade aos enredos e também trazendo à baila novos elementos da narrativa, elementos esses que remontam às histórias passadas dessas crianças, suas experiências, seus desejos, angústias e desconhecimentos acerca do mundo.

Permanecemos no desafio de demonstrar que a criação literária pode ser estudada com os recursos da Psicologia. Observa-se, também, que na obra literária, embora a personagem seja criada pelo ficcionista nela se percebe uma realidade indiscutível e, nesse caso, não é a Psicologia que esclarece a Literatura, mas a Literatura é que pode auxiliar a Psicologia, em sua busca de critérios para descrever a individualidade (Leite, 2002), singularidade esta que também atravessa o grupo, promovendo aproximações, reconhecimentos e estratégias que são permanentemente negociadas pelas crianças quando unidas não apenas em torno de uma mesma tarefa, mas de uma mobilização emocional que aguarda, ansiosa, até o final do livro.

O grupo, respondendo a isso, mostra a sua potencialidade ao destacar que essas histórias justamente não se findam quando se encerram os enredos, mas que permanecem enquanto houver diálogo, problematizações e convites à produção de conhecimentos e novas formas de compreender o humano. Em resposta a esse movimento, convidamos nossos leitores, crianças ou não, para uma atenção reflexiva sobre o que pode e o quanto pode essa grupalidade.

 

REFERÊNCIAS

Baiocchi, A., & Niebielski, D. (2009). Psicologia e literatura: um diálogo possível. Travessias, 3(3), 153-160.         [ Links ]

Dinis, N. F. (2003). Pedagogia e literatura: crianças e bichos na literatura infantil de Clarice Lispector. Educar (Curitiba), 21, 271-286.         [ Links ]

Fonseca, A. S. S. (2009). Clarice Lispector: imagens imaginadas sobre a vida, as emoções e o corpo. In B. J. Souza (Org.), Imaginário: fronteiras, desafios e múltiplos olhares (pp. 119-131). Natal: IFRN Editora.         [ Links ]

Góis, E. C. A. (2007). O dever da faceirice: corpo e feminidade no colunismo e na ficção de Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília, Brasília.         [ Links ]

Gotlib, N. B. (1995). Clarice: uma vida que se conta. (5ª ed.). São Paulo: Ática.         [ Links ]

Guimarães, M. C., Malaquias, J. H. V., & Pedroza, R. L. S. (2013). Psicoterapia infantil em grupo: possibilidades de escuta de subjetividades. Revista Mal Estar e Subjetividade, 13(3-4), 687-710.         [ Links ]

Leite, D. M. (2002). Psicologia e literatura. (5ª ed.). São Paulo: Editora Unesp.         [ Links ]

Pozenato, J. C. (2010). Clarice Lispector: o olhar da mulher. Antares, 3(1), 161-178.         [ Links ]

Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2010). Todos passam pela via crucis: a corporeidade em Clarice Lispector. Psicologia em Estudo, 15(3), 623-632.         [ Links ]

Scorsolini-Comin, F., & Silva, A. A. (2018). A mulher que salvou os peixes: Clarice Lispector e o universo infantil. Ribeirão Preto, SP: INEPAD – Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração.

Silva, J. C. (2014). Corpo e transgressão em perto do coração selvagem: as vastas interpretações de Joana. Trabalho de Conclusão de Curso, Graduação em Letras, Universidade Estadual da Paraíba, Paraíba.         [ Links ]

Silva, C. M., & Nascimento, B. D. (2014). Clarice Lispector: trajetórias de uma escritura. Letras em Revista, 5(1), 55-66.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin
E-mail: fabio.scorsolini@usp.br

 

 

1 Fabio Scorsolini-Comin é professor do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e editor da Revista da SPAGESP.
2 Adriano Alves da Silva é historiador e professor do Colégio LOGOS da cidade de Orlândia-SP.

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