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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.19 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

Rotina e qualidade de vida de usuários em terapia renal substitutiva

 

Routine and life quality of patients from a renal replacement therapy service

 

Rutina y calidad de vida de usuarios en terapia de reemplazo renal

 

 

Suellen Reis Contente1; Lília Iêda Chaves Cavalcante2; Simone Souza da Costa Silva3; Sabine Heumann4

Universidade Federal do Pará, Belém-PA, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o objetivo de descrever a rotina e a qualidade de vida de usuários de um serviço de terapia renal substitutiva em Belém-PA, foram aplicados o Inventário de Rotinas (IR) e o Questionário Brasileiro de Qualidade de Vida (SF-36) em 20 pacientes divididos em dois grupos, segundo o tempo de duração do tratamento (até cinco anos ou mais). Os resultados demonstram que esses participantes apresentaram baixos escores em domínios referentes à qualidade de vida (inferiores a 76). Quanto à rotina, predominaram atividades realizadas durante o dia, geralmente na companhia de cônjuges e filhos, ou então sozinho. Os resultados contribuem para a compreensão do impacto da doença e do tratamento na rotina e na qualidade de vida dessa população.

Palavras-chave: insuficiência renal crônica; diálise renal; qualidade de vida.


ABSTRACT

Aiming to describe the routine and life quality of users of a renal replacement therapy service in Belém-PA, we have applied the Routines Inventory and the Quality of Brazilian Life Questionnaire (SF-36) in 20 patients, divided into two groups according to the treatment time (more or less than five years). The results indicate that participants have low scores in areas relating to the quality of life (below 76). As for the routine, there are few activities during the day, usually in the company of spouses and children, or alone. The results contribute to the understanding of the impact of disease and treatment in the routine and quality of life of this population.

Keywords: chronic renal failure; renal dialysis; quality of life.


RESUMEN

Con el objetivo de describir la rutina y la calidad de vida de los usuarios de un servicio de terapia de reemplazo renal en Belém-PA, hemos aplicado el Cuestionario Brasileño de Calidad de Vida (SF-36) y de Inventario Rutinas en 20 pacientes, divididos en dos grupos de acuerdo con el tiempo de tratamiento (más o menos de cinco años). Los resultados indican que la población tiene bajos puntajes en las áreas relacionadas con la calidad de vida, y todas por debajo de 76. Cuanto a la rutina, hay pocas actividades durante el día, generalmente en compañía de sus cónyuges e hijos, aunque la mayoría permanece solo en considerable periodo de tiempo. Los resultados contribuyen a la comprensión del impacto de la enfermedad y tratamiento en la rutina y calidad de vida de esta población.

Palabras clave: insuficiencia renal crónica; diálisis renal; la calidad de vida.


 

 

A saúde é um direito constitucional, conforme prevê o Art. 3º da Lei Orgânica da Saúde – LOS (Brasil, 1990), que para sua completa efetivação depende de fatores como alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer, enfim o acesso a bens e serviços essenciais. Nesse sentido, admite-se que os níveis de saúde de uma dada população, em última instância, expressam a organização social e econômica do seu país. Ou seja, o modo como uma sociedade se organiza do ponto de vista econômico, social e político, pode afetar não apenas as condições materiais de reprodução social de indivíduos, famílias, populações inteiras, mas também a sua condição de saúde e qualidade de vida.

A literatura sobre qualidade de vida considera este construto mais do que um simples somatório de aspectos físicos, psicológicos, religiosos ou sociais, mas sim um campo de debate conceitual abrangente (Barbosa & Valadares, 2009), já que sua definição compreende o estilo de vida do indivíduo e as características do ambiente onde são realizadas as suas atividades diárias. A rotina, definida por Jensen, James, Boyce e Hartnett (1983) como um conjunto de comportamentos observáveis que ocorrem com certa regularidade e previsibilidade, tem impacto no bem estar e na saúde dos membros de determinado grupo. Este conjunto de atividades regulares define os contornos de um estilo de vida específico, sendo um elemento estruturante na organização da família e no padrão de relação entre seus membros (Anes & Ferreira, 2009; Boehs, Grisotti, & Aquino, 2007; Silva et al., 2009).

Estudos recentes têm procurado investigar a qualidade de vida dentro de uma perspectiva que relaciona a discussão desse constructo à abordagem das doenças modernas e à sua inevitável associação com diferentes patologias consideradas crônicas (Farias & Martins, 2016; Freitas, 2016; Pereira, Ferreira, Araújo, Carvalho, & Carvalho, 2016; Silva, Silveira, Fernandes, Lunardi, & Backsel, 2011). Em geral, essas doenças tendem a causar drásticas alterações nas atividades da vida diária do paciente e das pessoas que o acompanham de forma mais frequente, sendo esperado que sua avaliação sistemática resulte em alterações e ajustes na rotina pessoal e familiar, afinal, esse tipo de patologia exige um tratamento agressivo e contínuo, prolongando-se no tempo (Almeida, Alves, & Silva, 2016; Anes & Ferreira, 2009; Cruz, Salimena, Souza, & Melo, 2016). Um exemplo disso são as extensas rotinas de cuidado e a atenção contínua dispensada ao paciente e seus familiares no tratamento da doença renal crônica (DRC).

Esta é uma doença crônica, ainda sem cura, mas que apresenta três tipos de tratamento na atualidade: hemodiálise (HD), diálise peritoneal e transplante. Em comum eles têm o fato de estarem disponíveis para o tratamento renal de pessoas que perderam a função do rim, órgão fundamental para a limpeza do sangue e impurezas do corpo (Mortari, Menta, Scapini, Rockembach, & Leguisamo, 2010).

A DRC é considerada hoje um problema de saúde pública devido a sua prevalência e incidência nas sociedades modernas, além dos custos sociais envolvidos. Desse ponto de vista, conhecer aspectos que envolvem a qualidade de vida de pacientes com DRC em tratamento dialítico exige, inicialmente, identificar elementos descritores da sua rotina diária e, na sequência, conhecer a percepção deles acerca do quanto estes construtos estão relacionados nesse contexto específico. Assim, o presente estudo objetivou descrever aspectos da rotina (atividade, companhia, ambiente e tempo) e o nível da qualidade de vida de usuários de um serviço de terapia renal substitutiva (TRS), em Belém-PA.

 

MÉTODO

Este estudo possui caráter exploratório e procurou descrever aspectos da rotina e qualidade de vida de usuários de um serviço de Terapia Renal Substitutiva (TRS). A coleta de dados teve início após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética da Fundação Pública Hospital de Clínicas Gaspar Vianna - FPHCGV, sob o parecer nº 946.946.

Os participantes da pesquisa foram pacientes renais crônicos que realizavam hemodiálise na Fundação Pública Hospital de Clínicas Gaspar Vianna – FPHCGV. Ao todo, estima-se que 50 usuários faziam parte do Programa de Hemodiálise do Setor de Terapia Renal Substitutiva - STRS, em 2014. A proposta inicial era realizar a pesquisa com 30 pacientes, porém, ao final, 20 foram os que participaram efetivamente em virtude de alguns deles terem sido transferidos para outras unidades da instituição, dentre outras razões. A escolha da amostra da pesquisa foi feita por conveniência, isto é, participaram da pesquisa somente os usuários que aceitaram colaborar com a sua realização quando convidados.

Participaram da pesquisa pacientes portadores de DRC, em hemodiálise, de qualquer idade, sexo e tempo de participação no programa. Em seguida, os participantes foram organizados em dois grupos: o G1 reuniu os que realizavam hemodiálise por período igual ou superior a cinco anos (tempo considerado necessário à adaptação do paciente ao tratamento e as alterações em sua rotina que são esperadas pelo longo tempo de duração dos procedimentos associados), e o G2 envolveu aqueles que realizavam essa modalidade de terapia há mais de cinco anos.

O G1 (n=10) foi composto por participantes do sexo masculino e feminino, sendo 50% de cada, com idades entre 47 e 73 anos e a média de 60 anos, com tempo de tratamento equivalente a três anos em média (tempo mínimo de um ano e máximo de cinco anos). Já o G2 (n=10) foi composto por participantes 60% do sexo feminino e 40% do masculino, com idades que variaram de 36 a 72 anos e a média de 54 anos, e o tempo médio de duração do tratamento fixado em 10 anos, com variações entre 7 e 13 anos.

A coleta de dados foi realizada nas salas de hemodiálise. Durante a pesquisa, três instrumentos foram aplicados, subsequentemente, para a coleta dos dados:

The Short Form (36) Health Survey (Questionário Brasileiro de Qualidade de Vida - SF-36): O instrumento foi traduzido e validado para a língua portuguesa (Ciconelli, Ferraz, & Santos, 2009) tem sido largamente utilizado na área da saúde. Trata-se de um questionário multidimensional formado por 36 itens, subdivididos em oito domínios, que elencam aspectos físicos, sociais e mentais constituintes da qualidade de vida. Os resultados consideraram para efeito de análise os oito domínios, sendo eles: (1) capacidade funcional, (2) limitação por aspectos físicos, (3) dor, (4) estado geral de saúde, (5) vitalidade, (6) aspectos sociais, (7) limitação por aspectos emocionais e (8) saúde mental, cada domínio equivale a uma (ou mais) questões, possuindo um determinado valor para as respostas.

A aplicação do instrumento obteve como resultado um escore final que variou de 0 a 100, no qual o valor mínimo corresponde ao pior nível de qualidade de vida e o máximo ao melhor. Durante a coleta de dados, o questionário era lido aos pacientes e estes indicavam a alternativa de resposta que melhor representava a sua condição ou opinião sobre o aspecto pesquisado. Na sequência as respostas dos participantes passaram por um crivo de correção e os escores finais foram calculados pela fórmula de RawScale. Em seguida os resultados foram analisados através do cálculo da mediana com base nos escores dos participantes do G1 e do G2, em razão do tamanho da amostra. Quando a análise descritiva envolve amostras com um número reduzido de participantes, o cálculo da mediana tem sido preferencialmente utilizado por permitir localizar o ponto de corte que separa os 50% dos escores mais altos e dos mais baixos.

Inventário de Rotinas (IR): este instrumento foi utilizado para descrever, de forma detalhada, as ações no dia a dia de cada um dos participantes da pesquisa. O IR foi proposto por Silva et al (2010) com base em estudos de Boyce, Hartnett, James e Jensen (1983), como um instrumento para acessar dados relativos à rotina em diferentes contextos, abrangendo informações referentes às atividades realizadas, ambientes frequentados e companhias apresentadas ao longo do tempo. Desde então, o IR vem sendo utilizado por diversos estudos (Costa, 2015; Silva & Cavalcante, 2015; Silva & Pontes, 2016; Silva, Pontes, & Silva, 2011), por permitir a descrição de um dia típico de uma população específica através do relato do participante.

Neste estudo, o IR permitiu registrar dados sobre as atividades realizadas em um dia com e sem sessão hemodiálise, indicando a duração, em minutos, de cada uma delas, o local e companhia de sua execução. O instrumento é composto por um conjunto de planilhas nas quais, no espaço das linhas, são lançados dados relativos aos vários períodos do dia (madrugada, manhã, tarde e noite), enquanto que, nas colunas, faz-se o registro das atividades realizadas rotineiramente, o local, a companhia, entre outras observações complementares.

Foi utilizada estatística descritiva dos dados, permitindo apontar a quantidade de tempo destinado a cada atividade, companhia e local envolvidos nas rotinas dos participantes em um dia com hemodiálise e sem hemodiálise, além da referência ao tempo destinado a cada uma destes. Ademais, no que se refere ao nível de qualidade de vida, foram obtidos os escores que sintetizam a avaliação dos oito domínios abordados pelo questionário, tornando possível, dessa forma, calcular a mediana nos escores de cada um dos 10 participantes que integravam o G1 e, da mesma forma, dos 10 participantes do G2.

 

RESULTADOS

A Tabela 1 descreve as atividades e o tempo dedicado a elas em um dia sem hemodiálise e outro com hemodiálise (HD). As atividades relatadas foram relacionadas ao tempo dedicado a cada uma delas, tanto no G1 (realizavam hemodiálise há cinco ou menos anos) quanto no G2 (realizavam hemodiálise há mais de cinco anos). O tempo dedicado pelos participantes às atividades relatadas foi calculado a partir da soma da quantidade de minutos por eles estimada em cada grupo pesquisado.

 

 

Tanto no G1 quanto no G2, em dias com e sem HD, como mostra a Tabela 1, a atividade que ocupa maior porção do tempo dos participantes é o Sono. Em dias sem HD, em ambos os grupos, a segunda atividade que ocupa mais tempo é assistir TV/Filmes, sendo que em dias com HD, essa configuração é alterada e a segunda atividade que ocupa mais tempo em ambos os casos passa a ser a realização da própria hemodiálise (ocupando 2400 minutos dos participantes). Comparativamente, as características de um dia com e sem HD, nos dois grupos, observou-se ainda uma maior quantidade de tempo destinada às atividades como alimentação, tarefas domésticas, atividades sociais (festas) e eventos religiosos em dias sem HD. Já nos dias com HD, é possível notar uma maior quantidade de tempo destinada a atividades como despertar, higiene pessoal, deslocamento, hemodiálise e descansar. Neste sentido, admite-se que o tempo de sono, em G1 e G2, apresentou-se menor em dias com HD, assim como aquele gasto com a realização de tarefas domésticas e alimentação.

A Tabela 2 ilustra a companhia e o local em que as atividades foram realizadas e o tempo destinado a elas em minutos. Observou-se a frequência de tempo com que estes elementos da rotina aparecem em um dia sem e outro com HD. Em relação à companhia, durante a realização das atividades, o G1, em um dia sem hemodiálise, indicou uma participação maior do cônjuge e filhos, enquanto que, em um dia com hemodiálise, amigos e parentes próximos foram a companhia mais lembrada, ainda que os pacientes tenham informado que permaneciam sozinhos uma parte expressiva do tempo. Isso indica que em um dia com hemodiálise, os pacientes do G1, além da companhia frequente de cônjuges e filhos, fizeram menção à presença de amigos e parentes próximos, ainda que permaneçam grande parte do tempo sozinhos. Já os participantes do G2, em um dia sem HD, indicaram a participação rotineira de cônjuges e filhos na realização das atividades descritas, mas também de parentes próximos.

 

 

A Tabela 3 relaciona os oito domínios da qualidade de vida do G1 e G2. Os resultados demonstram que pacientes que realizavam hemodiálise há menos de cinco anos (G1) apresentam escores elevados - acima de 50 - nos domínios capacidade funcional, vitalidade, aspectos sociais e saúde mental. Já no grupo que realiza hemodiálise há mais de cinco anos, os domínios com maiores escores – considerando acima de 50, novamente – foram: capacidade funcional, vitalidade, aspectos sociais, limitações por aspectos emocionais e saúde mental. Observa-se ainda que em muitos domínios os valores apresentados na tabela são semelhantes, sendo que há maior diferença entre os escores nos domínios que consideram as limitações por aspectos físicos (maior no G2), a dor (maior no G1) e as limitações por aspectos emocionais (maior no G2).

 

 

DISCUSSÃO

A partir dos resultados apresentados, verificou-se que ambos os grupos têm a companhia de familiares e amigos, porém, em um dia com hemodiálise, tanto os participantes do G1 como do G2 informaram ficar mais tempo sozinhos do que em relação a um dia sem HD. Anes e Ferreira (2009) discutem que sobre a relação entre qualidade de vida e situação familiar os pacientes com condições favoráveis são aqueles que não vivem sozinhos ou que possuem fontes de apoio social. Essa é uma condição que pode fazer a diferença em termos do quanto este será capaz de receber o apoio social que demanda no dia-a-dia.

A Tabela 1 reúne dados que permitem identificar e relacionar atividades exercidas em um dia com e noutro sem HD. Sobre a questão, Barbosa e Valadares (2009) assinalam que o dependente de HD vivencia uma repentina mudança no seu cotidiano e o modo pelo qual enfrentará a situação é particular, porém de grande relevância para a assistência multidisciplinar, uma vez que a experiência da doença, enquanto processo, integra corpo, mente e entidade fisiológica, que precisa ser compreendida num contexto sociocultural. As atividades são mais limitadas para esse perfil de pacientes, porém elas são executadas rotineiramente, ainda que com uma menor duração, o que dificulta a interação plena entre paciente-tratamento-qualidade de vida. Em um dia sem HD, tanto os participantes do G1 quanto os participantes do G2, realizam atividades segundo o modo de participação e interação social. Logo, isso indica que o fator tempo de tratamento para os dois grupos parece não interferir no cumprimento das atividades, mas pode influenciar na frequência e modo como são realizadas. É possível que a diferença encontrada entre os grupos se deva ao desgaste físico gerado pelo tratamento ao longo do tempo, uma vez que as trocas sociais exigem energia dos envolvidos, que pode ser limitada nestes pacientes.

Quanto às atividades da vida diária como alimentar-se, dormir e preparar refeições constituem itens fundamentais para a avaliação funcional da família, Boehs, Grisotti e Aquino (2007) afirmam ser esperado que boa parte do tempo seja dedicado a elas e acabe por envolver os membros que possuem um convívio mais próximo. Assim, no relato das atividades realizadas rotineiramente em um dia sem HD, observou-se que os pacientes passam a maior parte do tempo dormindo, o que, supõe-se, reduz a chance de interação e convívio social. Esse dado talvez possa ser explicado pelo tipo de tratamento ao qual estão submetidos esses participantes, uma vez que este tipo de terapia exige descanso prolongado do corpo na medida em que gera desgaste físico.

Com relação às atividades desenvolvidas durante um dia com hemodiálise, o G1 apresentou elevação na execução de atividades para deslocamento em função da realização do tratamento, descansar mais, gastam mais tempo para acordar e sair da cama (despertar), realizar higiene pessoal, além de eles terem citado outras atividades como ouvir músicas. Em contrapartida, as atividades que apresentaram redução no tempo dedicado a elas em um dia com hemodiálise envolveram alimentação, assistir a programas televisivos, participar de eventos sociais e religiosos, fazer leitura, conversar e dormir. Pelo exposto, conclui-se que as atividades arroladas parecem estar menos presentes nos dias em que há hemodiálise, e que, nestes dias, elas são mais limitadas, uma vez que apenas uma delas apresenta maior frequência – ouvir música. Isso pode se dever ao fato de que, enquanto o paciente permanece ligado à estação de tratamento, ouvir música é uma atividade possível de ser realizada e ainda, de acordo com o que demonstram estudos que envolvem musicoterapia e tratamento de doenças renais crônicas, permite sensações de relaxamento, bem-estar, alegria, felicidade e entretenimento (Silva et al, 2008).

Comparativamente, os pacientes do G1 e do G2 realizam atividades semelhantes em um dia com hemodiálise, ainda que dediquem uma porção de tempo expressiva à execução daquelas que estão ligadas diretamente ao tratamento, como por exemplo, deslocar-se até o hospital onde está localizada a estação de tratamento, realizar a sessão de hemodiálise propriamente dita, e, por fim, descansar. Adicionalmente, observou-se que duas atividades realizadas com frequência no G1 não estão no G2, são elas: realizar leitura e assistir programas televisivos. O G1, de igual modo, fez referência à execução das atividades sociais, religiosas, mas seus integrantes afirmam dormir pouco, realizar com menor frequência atividades domésticas. As razões para isso podem estar ligadas às próprias limitações que o tratamento impõe, já que esta condição provoca grandes alterações na vida dos pacientes (Anes & Ferreira, 2009).

A doença renal é uma das patologias mais exigentes pelo tipo de tratamento exigido, geralmente agressivo e prolongado no tempo, produzindo restrições de várias ordens, o que acaba por interferir na qualidade de vida dos que com ela convive, como discutem (Anes & Ferreira, 2009; Boehs, Grisotti, & Aquino, 2007). Logo, para melhor enfrentamento da DRC, é necessário conhecer mais sobre esta patologia e como conviver e lidar com ela no dia a dia (Higa, Kost, Soares, Morais, & Polin, 2008). Esse é um passo importante quando se almeja alcançar níveis mais elevados de qualidade de vida, uma vez que as condutas negativas diante do tratamento se relacionam com as chamadas estratégias evitativas (Anes & Ferreira, 2009; Boehs, Grisotti, & Aquino, 2007), entre elas, a negação da doença, manifestando comportamentos e ações como se a doença não existisse, ou deixando de realizar atividades de vida diária, como se estivesse incapacitado para isso.

Ao analisar o local em que permanecem por mais tempo, a exemplo dos dados apresentados na Tabela 2, constatou-se que, em um dia sem hemodiálise, os participantes do G1 informaram a casa, a igreja e o shopping com maior frequência, já em um dia com HD, como era de se esperar, o hospital é o mais mencionado. O G2, em um dia sem HD, apresentou também similaridades no que diz respeito à incidência de ambientes como a igreja e o shopping, assim como a casa de parentes próximos, enquanto que, no dia com hemodiálise, o hospital e a residência do paciente também são mencionados de forma frequente. Por meio de uma análise descritiva dos dados, os resultados obtidos indicaram que os pacientes, tanto do G1 quanto do G2, convivem em um círculo limitado de pessoas, sendo suas atividades e locais frequentados no dia-a-dia incluídas na rotina diária em razão de aspectos subjetivos como limitações físicas e perfil clínico do paciente, estado emocional e humor, além de objetivos como a disponibilidade dos familiares e outras pessoas para provisão de cuidados diários (Guedes & Guedes, 2012; Mortari et al., 2010).

Observa-se ainda que os pacientes que participaram do estudo também permaneceram limitados ao convívio em dois ambientes: a casa e o hospital. A igreja é citada como o local onde os participantes passam parte do tempo dedicado a eventos religiosos, seja em um dia com hemodiálise ou sem hemodiálise. Em relação aos locais visitados, destacou-se o hospital, uma vez que o tratamento exige que, por três vezes na semana, seja realizada a hemodiálise. Ambos os grupos apresentaram similaridades nesse quesito, pois o tratamento dialítico torna obrigatória a inclusão na rotina de exames clínicos periódicos, consultas médicas, além da ida frequente aos centros destinados à realização da TRS, como mostram estudos anteriores (Higa et al., 2008; Mortari et al., 2010).

No que se refere aos resultados relativos à qualidade de vida na população avaliada, verificou-se que, no domínio capacidade funcional, o G2 obteve mediana igual a 60, apesar de ser um grupo com elevado tempo de tratamento. O resultado mostra que esse desempenho é expressivo de forma positiva, mesmo levando vários fatores em consideração, como por exemplo, idade e tempo de tratamento. Os itens que compõem esse domínio estão relacionados à execução de atividades que exigem rigor, força, andar mais de 1 km, subir descer escadas, dentre outros. Nos resultados relacionados aos escores e domínios sobre qualidade de vida, a Tabela 3 mostra alterações principalmente nos domínios ligados ao aspecto físico, demonstrando que a alteração na qualidade de vida de pacientes em programa de hemodiálise, teve maior comprometimento no estado geral de saúde e nas limitações que envolvam aspectos físicos (Mediana ≤ 50).

No presente estudo, ambos os grupos apresentaram um déficit nesse domínio, entretanto, o G1 possui um escore inferior ao G2 no domínio limitações de ordem física. Os itens direcionados a esse domínio correspondem ao tempo de trabalho dedicado, tarefas executadas, dentre outros. Os aspectos físicos apresentam melhora somente naqueles indivíduos com poucas comorbidades associadas (Mortari et al., 2010). Por exemplo, o G1, no domínio Dor, apresentou uma mediana de 40, enquanto o G2 marcou 28. As razões que explicam esse dado podem ser várias, desde o nível de gravidade das enfermidades apresentadas pelos pacientes da população pesquisada e o quão incapacitantes elas se apresentam para o cumprimento de tarefas domésticas e cuidados pessoais (Ciconelli, Ferraz, & Santos, 2009), até a percepção que eles e seus familiares e outros cuidadores têm sobre a relação dinâmica entre qualidade de vida, padrões de atividades diárias e mudanças no estado geral de saúde do paciente em TRS (Mortari et al., 2010; Silva et al., 2010).

É importante lembrar que o parâmetro utilizado para avaliar o nível de qualidade de vida está entre zero e cem, sendo o primeiro valor a pontuação mínima e o segundo a pontuação máxima. Os escores mais próximos indicam melhor avaliação do domínio avaliado. Neste estudo, os escores obtidos sugerem a presença de déficit bastante expressivo de qualidade de vida, particularmente no domínio estado geral de saúde. O G1 também atingiu um melhor desempenho com relação ao G2, porém essa distinção foi percentualmente pouco expressiva, uma vez que o G1 possui o estado geral de saúde melhor.

Já o domínio vitalidade apresentou escores iguais tanto para o G1, quanto o G2, indicando uma mediana de 70. De igual modo, o aspecto social também atingiu valores muito próximos deste escore (Mediana ≥ 50), o que pode sugerir que a multidimensionalidade da qualidade de vida é realmente um aspecto importante na definição desse construto, sendo necessário considerar que a presença de pacientes com dor física e estado clínico debilitado não significa para eles perda de vitalidade e desinteresse pelas relações sociais (Guedes & Guedes, 2012; Higa et al., 2008; Mortari et al., 2010).

Como demonstra a Tabela 3, ao analisar os oito domínios, identificou-se que, no G1, em três domínios os escores foram superiores aos obtidos pelo G2, são eles: estado geral de saúde (mediana 13), dor (mediana 40) e saúde mental (mediana 76). Quando se considera o G2, este demonstrou também três domínios superiores ao G1, conforme descrito: capacidade funcional (mediana 60), limitações por aspectos físicos (mediana 25) e limitações por aspectos emocionais (mediana 66.6). As dimensões vitalidade (mediana 70) e aspectos sociais (mediana 60) ilustraram igualdade nos valores para ambos os grupos.

A qualidade de vida para esses dois grupos apresentou escores baixos, considerando que todos os escores dos domínios apontados no quadro são inferiores a 76. Observa-se que no G1 apenas três domínios, de um total de oito, obtiveram escore maior que 50, já no G2 verificou-se que cinco deles apresentaram valores superiores a esta marca. Para Guedes e Guedes (2012), apesar dos avanços tecnológicos no tratamento dialítico, seus achados mostraram uma redução da qualidade de vida dos pacientes renais crônicos. Para os autores, a busca pela melhoria da qualidade de vida consiste numa luta constante para superar os limites trazidos pela doença, dentre eles cada aspecto da vida equivale a uma forma de trabalho para obtenção de melhores desempenhos em vários domínios e habilidades físicas e sociais, a exemplo quanto mais informado o paciente estiver sobre sua doença e o protocolo de tratamento, quando existir um sólido sistema de suporte familiar e dos serviços de saúde de modo que ofereçam estratégias de reabilitação ao paciente renal crônico, a qualidade de vida também se manifestará de forma positiva, produtiva e participativa (Guedes & Guedes, 2012).

Diante dos resultados explanados com a utilização dos dois instrumentais, observa-se em relação ao Inventário de Rotinas (IR) que tanto os participantes do G1 quanto os participantes do G2, apresentaram similaridade nas atividades desenvolvidas, sendo que durante a maior parte do tempo eles permaneceram sozinhos, em ambientes como a própria residência, a igreja e o local de tratamento. Os dados corroboram estudos que mostraram uma tendência nessa população ao convívio num ambiente social cada vez mais restrito (Mortari, et al., 2010) com o passar dos anos e seu envolvimento em uma rotina centrada nas demandas do tratamento em curso (Anes & Ferreira, 2009; Barbosa & Valadares, 2009).

No que se refere ao questionário SF 36, a qualidade de vida para esses dois grupos mostrou-se deficiente levando em consideração os valores dos níveis nos domínios apontados na pesquisa. Tanto o G1 quanto o G2 apresentaram escores mais baixos (< 50) para os aspectos limitação física, dor e estado geral de saúde, entretanto os domínios vitalidade e aspectos sociais demonstraram um valor regular para ambos os grupos.

Os resultados deste estudo demonstram que a qualidade de vida da população estudada, tanto em pacientes que realizam hemodiálise há mais tempo (G2), quanto os que realizam há menos tempo (G1), apresenta domínios com escores baixos (<50), o que pode indicar que há influência nesse aspecto das limitações colocadas pelas características do tratamento. Além disso, quanto a rotina dessa população, é possível perceber a extensão e a progressão das restrições de atividades envolvendo o convívio familiar e social, conforme o passar do tempo em tratamento. Tais informações são úteis quando se pretende elaborar estratégias e intervenções no âmbito de saúde pública para melhoria do atendimento a esse grupo populacional. Sugere-se que novos estudos sejam conduzidos com o intuito de investigar a qualidade de vida nas populações não usuárias desse serviço de saúde para efeito de comparação, pois esse tipo de conhecimento permite o aperfeiçoamento das políticas já existentes, demonstrando maior sensibilidade às rotinas diárias dos usuários e o que poderia ser feito para tornar mínimo o efeito da diálise renal em suas vidas.

 

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Endereço para correspondência
Lilia Iêda Chaves Cavalcante
E-mail: liliaccavalcante@gmail.com

Submetido: 30/06/2016
1ª revisão: 25/03/2017
Aprovado: 11/06/2017

 

 

1 Suellen Reis Contente é assistente social, com pós-graduação pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Renal da Universidade Estadual do Pará.
2 Lilia Iêda Chaves Cavalcante é professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Pará e Docente do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da mesma instituição (PPGTPC/UFPA).
3 Simone Souza da Costa Silva é docente do Programa de Pós-graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará.
4 Sabine Heumann é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará.

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