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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.20 no.1 Ribeirão Preto jan./jun. 2019

 

ARTIGOS

 

Experiências de estagiários em plantão psicológico em hospitais: formação e ação clínica

 

Experiences of trainees in prompt psychological attention in hospitals: education and clinical action

 

Experiencias de pasantes en servicio de emergencia psicológica en hospitales: formación y acción clínica

 

 

Tatiana Benevides Magalhães Braga1, I; Marciana Gonçalves Farinha2, I; Carlos Souza Filho3, II; Kleiton Oliveira4,III

IUniversidade Federal de Uberlândia, Uberlândia-MG, Brasil
II
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, Brasil
III
Prefeitura Municipal de Poços de Caldas, Poços de Caldas-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo investigou como o plantão psicológico em hospital atua na formação de alunos em psicologia, no contexto de tensões entre o modelo biomédico e concepções mais pluralistas de saúde. Foram utilizados como fontes de dados 48 diários de bordo elaborados pelos estagiários de psicologia, relatando suas impressões, vivências e seu processo de compreensão do fazer profissional, construindo um relato de experiência. O material foi analisado na perspectiva da hermenêutica fenomenológica, buscando discutir significações desveladas e correlacionadas, bem como sentidos tomados pelo fazer psicológico. O plantão psicológico na instituição hospitalar promoveu o questionamento dos modos usuais de intervenção psicológica e ponderou um enfoque mais integral do cuidado em contraposição à visão unicista, possibilitando aprendizagem, reflexão e desenvolvimento de propostas interventivas.

Palavras-chave: Instituições de saúde; Modelo biomédico; Plantão psicológico; Formação do Psicólogo.


ABSTRACT

The article investigated how psychological emergence attendance in a hospital works in the training of students in psychology, in the context of tensions between the biomedical model and pluralistic conceptions of health. As data sources, 48 field diaries were elaborated by psychology trainees, reporting their impressions, experiences and their process of understanding the professional duty, developing a experience report. The analysis was conduct by phenomenological hermeneutics point of view, looking for discuss unveiled and correlated meanings, as well as senses taken by psychological doing. The psychological emergence attendance at the hospital promoted the examination of the usual modes of psychological intervention and considered a more integral approach to care as opposed to the single view, allowing new learning, reflections and proposals of interventions.

Keywords: Health institutions; Biomedical model; Psycological duty; Graduation of the psycologist.


RESUMEN

Este trabajo investiga la formación de pasantes de Psicología en servicio de emergencia psicológica – práctica que tiene como objetivo buscar sentido en el momento en que suceden situaciones de emergencia – en hospitales, instituciones tradicionalmente biomédicas. Se utilizaron como fuentes de datos 48 diarios de a bordo elaborados por los pasantes de psicología, relatando sus impresiones, vivencias y su proceso de comprensión del hacer profesional, construyendo un relato de experiencia. El material fue analizado en la perspectiva de la hermenéutica fenomenológica, buscando discutir significaciones desveladas y correlacionadas, así como sentidos tomados por el hacer psicológico. El plantón psicológico en la institución hospitalaria promovió el cuestionamiento de los modos usuales de intervención psicológica y ponderó un enfoque más integral del cuidado en contraposición a la visió unica, posibilitando el aprendizaje, la reflexión y el desarrollo de propuestas interventivas.

Palabras clave: Instituciones de salud; Modelo biomédico; Servicio de Emergencia Psicológica; Formación del Psicólogo.


 

 

O modelo historicamente hegemônico de atuação em saúde inspirou-se na lógica cartesiana: divisão disciplinar dos saberes para equacionamento matemático do real, cisão entre mente e corpo e entre sujeito e objeto do conhecimento (Barros, 2016; Cunha, 2010; Foucault, 1979/2014). Tais noções amiúde limitaram a práxis médica ao corpo, a práxis psicológica ao ajustamento de conduta e a práxis social a condições materiais de vida, fragmentando o paciente em partes muitas vezes consideradas excludentes (Barros, 2016; Cunha, 2010; Spink, 2017). Nessa ótica, denominada biomédica, a saúde é dada pela suposta restituição do corpo a um funcionamento biológico predeterminado (Barros, 2016; Cunha, 2010). Podemos associá-la ao fenômeno da medicalização, processo social que busca no trato biológico soluções para campos que o transcendem – dificuldades socioeconômicas e afetivas, diferenças culturais –, silenciando a vivência do sujeito sobre seu cuidado, além de centralizar ou mesmo reduzir o tratamento à medicação (Barros, 2016; Foucault, 1979/2014). O reduto histórico dessa acepção é o hospital, instituição que o racionalismo científico encarregou de reduzir o sujeito ao corpo para manejo da equipe de saúde (Foucault, 1979/2014).

Condizente a essa abordagem no campo da saúde, uma compreensão intrapsíquica e fragmentada de sujeito foi tradicional na Psicologia, vinculando diretamente conflitos ou traços pessoais não resolvidos (fatores psicológicos) a disfunções fisiológicas (doença física) (Cunha, 2010; Spink, 2017). A hegemonia do modelo intrapsíquico, biologizante e disciplinar tem amiúde direcionado o psicólogo à função facilitadora do tratamento, limitando-se a adequar as condutas ao papel passivo esperado pelos profissionais de saúde para intervenções no corpo físico, constituindo em última análise uma ação de ajustamento social (Cunha, 2010; Spink, 2017). Exclui-se dos processos de saúde e doença e da intervenção psicológica tanto a voz do sujeito quanto o contexto mais amplo de construção do adoecer (Cunha, 2010).

Sobretudo em meados do século XX, emerge uma progressiva crítica a tal modelo, contrapondo-o a um olhar voltado à promoção e prevenção da saúde e à construção dialógica, transdisciplinar e contextualizada do ato de saúde (Abrahão & Meryl, 2014; Barros, 2016). Tal acepção articulou saúde e condições de vida, associando aspectos orgânicos, psicológicos, culturais, socioeconômicos, materiais, relação entre paciente e equipe atendente, condições de tratamento e acesso à prevenção e promoção da saúde na compreensão do modo como os sujeitos coproduzem seu corpo e seu cuidado (Abrahão & Meryl, 2014; Barros, 2016; Cunha, 2010). Não se trata de, inversamente, negligenciar aspectos orgânicos, mas atentar-se à integralidade da experiência humana e à necessidade de intervenções que considerem a complexidade das situações de produção do adoecer a partir da escuta do sujeito.

A regulamentação da Psicologia em 1962 e a luta pela redemocratização do país a partir dos anos 1970 impulsionaram críticas à desconsideração dos conflitos sociais na prática psicológica e na saúde, destacando sua dimensão ético-política (Braga, 2014; Cabral, 2015). A construção de ações de Estado voltadas à promoção de direitos e à participação cidadã consolidou a ótica socioeconômica e preventiva em saúde e a crítica à suposta neutralidade da Psicologia, ampliando sua inserção em contextos sociais e comunitários (Braga, 2014; Cabral, 2015; Cunha, 2010). Novas demandas e formas de atuação surgiram em campos como justiça, educação, saúde, assistência social, segurança pública, políticas voltadas a grupos vulneráveis, etc. Tais demandas articulam-se a mudanças na perspectiva de ação do Estado: a inserção do psicólogo nas Políticas Públicas associa-se ao reconhecimento da relação entre cidadania, vulnerabilidade psicossocial e saúde mental (Cabral, 2015; Cimino & Siqueira, 2016), a ampliação da atuação do psicólogo no campo hospitalar liga-se ao reconhecimento de dimensões da subjetividade no processo de adoecer (Perches & Cury, 2013; Ribeiro & Dacal, 2012).

O tensionamento entre concepções mecanicistas, tanto no corpo orgânico quanto no psiquismo, e a emergência de uma abordagem plural em saúde se refletem amplamente na formação em Psicologia. Em meio à criação incipiente de ações psicológicas socialmente contextualizadas, ainda persiste a formação calcada no modelo de consultório e na perspectiva da aplicação pelo aluno, de procedimentos predeterminados focalizados na teoria abordada (Abrahão & Meryl, 2014; Cabral, 2015; Cimino & Siqueira, 2016). A concepção da prática profissionalizante enquanto meramente reprodutora do modelo teórico dificulta o contato com situações emergentes, relacionais e contextualizadas. Nesse sentido, estudos apontam para a fertilidade de práticas dialogicamente construídas no processo interventivo para a atuação, a aprendizagem e a produção de conhecimento (Cabral, 2015; Cimino & Leite, 2016).

Nesse contexto, o plantão psicológico vem se mostrando um importante dispositivo tanto para a atenção a demandas socialmente contextualizadas (Gonçalves, Farinha, & Goto, 2016; Scorsolini-Comin, 2015) quanto para a formação em psicologia (Cabral, 2015; Cimino & Siqueira, 2016). No Brasil, o plantão psicológico precocemente instalou-se em instituições formativas, inserido no movimento de legitimação da Psicologia enquanto profissão, de ampliação do atendimento em saúde e de crítica ao modelo da clínica liberal descontextualizada. Permitindo o atendimento sem configuração prévia, atenção a questões pontuais, apoio em momento emergencial ou de grande sofrimento, trouxe uma proposta de contato com situações inesperadas já no processo de formação (Cimino & Leite, 2016; Gonçalves et al., 2016; Scorsolini-Comin, 2015).

Na década de 1990, o plantão psicológico passou a atender demandas das políticas públicas, propondo estratégias interventivas a partir de questões emergentes em instituições e comunidades (Morato, 1999) e ampliando o diálogo com a realidade social e fertilizando uma formação voltada a concepções mais plurais em saúde, já que prescinde de uma metodologia predeterminada na didática e na práxis (Cabral, 2015; Cimino & Leite, 2016).

O plantão psicológico em instituições utiliza a cartografia clínica como meio de inserção institucional. Os plantonistas apresentam-se aos atores sociais – usuários e profissionais – interrogando por seus papéis e seu cotidiano, abrindo espaço para relatos de experiência sobre o campo. Numa mútua impregnação, psicólogos e atores são afetados pela experiência compartilhada, transformando-se e transformando o trabalho (Braga, 2014). O plantonista disponibiliza um horário e circula na instituição atento às demandas por auxílio psicológico, sem predefinir o número de sessões, o espaço, a duração e configuração das intervenções, que se delineiam pelas condições do contexto, pela demanda dos encontros e pela própria escuta. Dialogando com os atores sociais, o plantão psicológico favorece a transformação do cenário em que se insere ao dar voz às experiências, promovendo sua reflexão e reorientação.

No contexto hospitalar, o plantão psicológico coloca-se em contato com a fragilidade da existência, a morte, limites biológicos, a lógica mecanicista sobre o adoecer, os dispositivos de assistência pública, condições socioculturais e econômicas (Perches & Cury, 2013). Tal abertura se coaduna com a construção de relações mais participativas, numa construção coletiva do sentido do adoecer, do tratamento e do cuidado, em diálogo com o paciente e outros profissionais de saúde (Braga, Delavia, Ferreira, & Takeshita, 2013). Embora a flexibilidade do plantão psicológico seja recurso frente ao desafio de articular múltiplos saberes, tomando situações de saúde de modo integrado, singularizado e complexo, são raros estudos recentes sobre o tema. Assim, este estudo investigou como a flexibilidade do plantão psicológico em hospital atua na formação de alunos em psicologia, no contexto de tensões entre o modelo biomédico predeterminado e concepções mais pluralistas de saúde.

 

MÉTODO

NARRATIVA COMO MÉTODO NA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA

O presente relato de experiência partiu da perspectiva fenomenológica, considerando o homem como criador e receptor de sentido, situado a partir de uma trama significativa como condição existencial (Critelli, 2016). Sendo a narrativa o percurso de elaboração do sentido da experiência e das significações possíveis do real (Braga, 2014; Morato, 1999), o recurso a diários de bordo permitiu seguir a tecedura da práxis psicológica na instituição: seus percalços, interesses, discursos, aproximações e conflitos em relação aos atores sociais. Os diários de bordo não se norteiam por dados técnicos ou pela cronologia dos fatos, mas pela elaboração da trama significativa em que o plantonista mergulhou, evidenciando, nas nuances da memória, esboços e pormenores do acontecido e juízos nele impregnados (Braga, 2014).

Foram utilizados como instrumentos: a) 48 diários de bordo escritos entre 2013 e 2016 por estagiários do quarto e quinto ano do curso de Psicologia, abordando sua experiência de plantão psicológico nos hospitais gerais; b) visitas dos pesquisadores aos hospitais no horário de estágio dos plantonistas, também registradas em 18 diários de bordo. Ao serem citados no texto, todos foram assinalados pela sigla DB, seguida de sua numeração. Critelli (2016) aponta o caráter dialógico do real: ser-no-mundo-com-os-outros é condição que confere aos fenômenos um desvelamento plural. Assim, a diversidade de diários dos estagiários gerou uma composição plural e multifacetada do cenário de pesquisa, em contatos, discursos e significações, entrecruzando perspectivas em torno da práxis. Outrossim, sendo o pesquisador parte da realidade que investiga, visitas aos hospitais visaram o contato direto com o plantão psicológico nas instituições, permitindo aos pesquisadores impregnarem-se pela experiência e dialogar mais vivamente com os relatos de plantonistas no curso da análise.

Utilizando a proposta fenomenológica da Analítica do Sentido (Critelli, 2016), análise dos dados visou percorrer o movimento de realização do real, continuamente reapresentado de modo multifacetado. Critelli (2016) propõe o desvelamento, a revelação, o testemunho, a veracização e a autenticação, como vias de mostração e aproximação do real, em devir e articulado mediante sentidos e significações correlacionadas em nossa experiência.

O desvelamento do fenômeno ocorreu no próprio acontecer do plantão psicológico, que se abriu aos participantes da pesquisa ao partilharem do cotidiano institucional. Os testemunhos se produziram nos diários de bordo dos plantonistas e pesquisadores. A revelação constituiu-se no diálogo com tais testemunhos, articulando experiências e sentidos de um mesmo cenário. Em sucessivas leituras do material, esboçou-se uma paisagem da práxis psicológica no âmbito hospitalar, desvelando uma trama de significados e sentidos – discursos institucionais, escuta clínica, processos de aprendizagem, relações tecidas entre plantonistas, pacientes e outros profissionais na instituição. A veracização enredou duas esferas: a) interposição dos diários de bordo, construindo uma narrativa em que se reconhece o coletivo das experiências em situações, interlocuções e reflexões significativas selecionadas para ilustração no texto; b) diálogo com autores que abordam o tema, situando a experiência investigada no contexto contemporâneo de reconfiguração das práticas psicológicas na saúde.

O CENÁRIO: INSTITUIÇÕES HOSPITALARES E PLANTÃO PSICOLÓGICO

A investigação acompanhou estágios profissionalizantes com a prática de plantão psicológico realizados em duas instituições hospitalares de uma cidade no sul de Minas Gerais. O primeiro hospital contou com plantão psicológico em enfermaria, ala psiquiátrica e Centro de Terapia Intensiva (CTI) (que congrega duas Unidades de Terapia Intensiva) e é referência para amputação, tratamentos cardíacos e atendimento psiquiátrico, são relevantes demandas voltadas à convivência com limitações físicas permanentes e à promoção de saúde mental. No segundo hospital, o plantão psicológico foi realizado na urgência e emergência, enfermarias e CTI (composta por UTI neonatal e UTI adulto). Sendo referência para politrauma, atendimento a bebês em risco grave e com uma ala oncológica, nesse hospital são frequentes a questão da morte e a necessidade de amparo imediato em situações de angústia. Todavia, os pacientes apresentam questões diversas: conflitos familiares, percalços ao contatar a equipe de saúde, dúvidas quanto ao tratamento, angústias sobre o adoecer, apoio no processo de luto, orientações sobre dispositivos de assistência social e de saúde, apreensões relativas ao cotidiano interrompido pela internação, hesitações ao abordar a situação do adoecer junto a crianças são algumas demandas comuns. Conforme a demanda, podem ser mobilizados outros serviços, realizados atendimentos em família ou interconsultas com outros profissionais.

Para adentrar em tais espaços os plantonistas dialogam inicialmente com a equipe de enfermagem e com a psicóloga da instituição. Posteriormente, visitam as alas, oferecendo o serviço, colocando-se à disposição do paciente e seus familiares, explicando que passarão nos leitos em determinados dias e horários e poderão ser chamados pelos interessados. A partir de então, os plantonistas circulam pelas alas do hospital atentos às situações de sofrimento e crise que se apresentam, buscando contemplar a demanda em sua emergência imediata. Em geral, há três tipos de contato: oferecimento do serviço pelo psicólogo ao deparar-se com uma situação de sofrimento, procura espontânea dos internos e solicitações da equipe, que indica pacientes que necessitam de atenção psicológica. Nesse último caso, considera-se que a busca espontânea é dos profissionais, sendo a demanda tratada como fenômeno institucional e o olhar clínico voltado não apenas aos internos, mas também a eles.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise, delinearam-se alguns eixos para compreensão da experiência vivida pelos estagiários apresentados a seguir: plantão psicológico como intermediador no contexto biomédico; a compreensão e o lugar do sofrimento psíquico; atenção psicológica e desalojamento existencial; atuação contextualizada e questionamentos na formação.

PLANTÃO PSICOLÓGICO COMO INTERMEDIADOR NO CONTEXTO BIOMÉDICO

No contato inicial dos plantonistas com o hospital, evidenciou-se a dificuldade de muitos profissionais de saúde em lidar com o sofrimento no processo do adoecer, expressas em atitudes de distanciamento de psicólogos e pacientes ou no encaminhamento de situações julgadas conflitantes com a prática da equipe solicitante. Na emergência de tal contexto, o plantão psicológico atuou na demanda por cuidado às relações interinstitucionais, buscando cerzir um diálogo entre os atores sociais.

Nos diários de bordo, os plantonistas relatam situações de indiferença no trato com pacientes, hesitações iniciais no contato com os plantonistas e na compreensão da práxis psicológica, incômodos da equipe de saúde com sua presença ou com a aproximação dos plantonistas junto a pacientes, desvelando um estranhamento de muitos profissionais sobre o cuidado à dimensão subjetiva do adoecer. O processo de reflexão formativa em supervisão foi tornando evidente aos plantonistas que tal dificuldade ligava-se à formação pautada no olhar biomédico, tomando práticas que fugissem a padrões voltados unicamente ao corpo e à doença como estranhas e ineficientes (Cunha, 2010). Sem uma capacitação à dimensão humana do cuidado, o afastamento tornou-se recurso para evitar contato ou diálogo sobre aspectos emocionais do atendimento (Spink, 2017). Uma plantonista reflete: "Entendo que o cuidado, em primeiro lugar, dentro do hospital, é a saúde física, mas os profissionais deveriam olhar (...) um sujeito biopsicossocial (...)" (DB 25). A partir de tais reflexões, os plantonistas foram construindo estratégias interventivas de aproximação junto à equipe, abrindo uma escuta clínica para o cotidiano profissional e para a lida com os afetos. Alguns Diários de Bordo narram reflexões dos plantonistas sobre casos com a equipe de saúde e a aproximação paulatina de alguns profissionais, interrogando os plantonistas sobre o trato com situações vividas junto aos pacientes.

Por outro lado, solicitações da equipe aos plantonistas eram inúmeras quando o paciente discordava do tratamento, expressava-se de modo exacerbado, reclamava de algo na instituição ou contrariava o lugar passivo, fugindo à configuração das relações de saber e poder institucionalmente estabelecidas e tornando a prática determinada previamente pela equipe mais difícil. Havia a expectativa de que os plantonistas resolvessem tais situações, frequentemente com um pedido velado de adequação do paciente à rotina institucional, diminuindo queixas e condutas inesperadas, como ilustram os relatos: "um técnico pediu para que eu passasse em um dos quartos, pois havia um senhor 'muito nervoso e mal educado" (DB 20) e "uma das enfermeiras nos relatou que uma paciente (...) precisava de atendimento, por não querer se sentar e ficar deitada e estava prejudicando os pulmões dela" (DB 12).

Discussões no processo formativo clarearam expectativas e solicitações de que o psicólogo atendesse queixas que causam desconforto no meio institucional (Cunha, 2010) como ilustram os diários de bordo: "(...) 'a psicóloga chegou para conversar com a senhora!'. E geralmente fazem isso quando o paciente está agitado, ansioso, falando muito" (DB 13). A partir dessa análise das questões institucionais, os plantonistas puderam elaborar estratégias para intervir no papel normativo atribuído à psicologia, dialogando junto à equipe. Ocorreram ações conjuntas, que significaram ao mesmo tempo a compreensão do papel da psicologia e a reorientação do olhar sobre o atendimento. Em um acolhimento na UTI "(...) O médico explicou, ela não queria falar (...) fui dizendo que ela podia perguntar (...) não precisava ter vergonha (...) o médico sorriu para mim, se disponibilizou a esclarecer (...)" (DB 23). Em situações cujo sofrimento era mais claro, a ação conjunta favorecia a compreensão do papel do psicólogo: "(...) um funcionário chegou (...) informou que eram os familiares da dona G. que havia falecido (...) [no atendimento] chamamos o médico para explicar" (DB 22), possibilitando que a notícia fosse acompanhada de acolhimento à dor da família. As intermediações entre a equipe de saúde e os pacientes emergiram como possibilidade na própria práxis clínica, permitindo aos alunos reconhecer articulações entre cenário social, formação em saúde e análise institucional na construção de estratégias interventivas flexíveis ao contexto.

A COMPREENSÃO E O LUGAR DO SOFRIMENTO PSÍQUICO

Dificuldades em legitimar o cuidado a dimensões não orgânicas do sujeito, expressas em distanciamentos, solicitações ao psicólogo e expectativas de passividade do paciente, articularam-se a outro elemento do cotidiano hospitalar: a patologização do sofrimento, em que pedidos de atendimento eram acompanhados por termos como "depressão" e "ansiedade", estereotipando a angústia vivida no adoecer. Relatos como "o médico disse que a paciente se apresentava bem depressiva" (DB 45) ou "segundo a equipe, a paciente se mostrou 'depressiva' durante a aplicação de remédios e monitoração dos aparelhos (...)" (DB 38) colocam a necessidade de se criar uma sensibilização para a escuta às vivências singulares. Um desdobramento dessa desconsideração decorrente da cultura biomédica foi o risco de desvalidar a cientificidade, o discurso e o fazer psicológico, voltado à escuta da subjetividade e não à eliminação do sintoma, levando a um cuidado no emprego de termos técnicos, como meio de enfrentamento e reafirmação da profissão como num relato em que a psicóloga orienta plantonistas a não "utilizar o termo 'conversa' (...) no relatório da UTI, pela (...) ideia instituída de que o psicólogo 'apenas conversa' (...) presente no próprio discurso da equipe, (...) [pois] a própria equipe não suporta as angústias percebidas ali (...)" (DB 16).

Além disso, num meio onde a maioria das condutas manipula o corpo físico e boa parte dos profissionais distancia-se de aspectos experienciais do paciente, amiúde plantonistas iniciantes mostram dificuldades em se apropriar do papel do psicólogo, voltado a um cuidado menos material. Isso se evidenciou frente aos atos observáveis e imediatos da equipe médica em situações de risco de vida, dor intensa ou impossibilidade de melhora, como ilustra o relato de impotência de um plantonista no atendimento de uma família "ansiosa e confusa" pois "não sabem a situação (...) os médicos cada dia falam uma coisa" (DB 2). Torna-se papel do psicólogo orientar sobre "os quadros instáveis" (DB 2). Em outro caso, a família foi esclarecida pela plantonista, mas percebe-se "certa insatisfação" (DB 11), pois ansiava-se por um diagnóstico que dependeria de um exame em que "a paciente deve ser desentubada e conseguir ficar 48 horas fora do tubo" (DB 11). Tal questão aparece ainda em casos de desatenção ao cuidado físico, como ilustra um plantonista ao relatar "não poder fazer nada" (DB 19) frente a uma traqueostomia em que o médico "esqueceu-se de anestesiar o paciente, [que estava] apenas sedado (...) o paciente mexia suas pernas (...) se contorcia todo".

No processo formativo, os relatos sobre impotência abriam espaço para a discussão da relação entre técnica e saúde à luz do pensamento de Gadamer (2011). Para o autor, a concepção da aplicação correta de uma técnica alinha-se à dimensão artificial, em que novos elementos são produzidos pelo artifício humano, porém possui limitações no campo da saúde, já que o corpo é da ordem da natureza nunca plenamente controlável pelo profissional A saúde é um fato psicológico-moral que abarca instâncias mais complexas, que fogem ao controle do médico e são permeadas por múltiplas particularidades dos sujeitos, pois este tem interesses próprios, valores, hábitos, etc. O enfoque industrial que considera a cura exitosa de um sujeito aplicável e determinante para todos, desconsidera que a técnica oriunda do funcionamento eficaz do procedimento pode resultar em saúde, mas não pode criá-la ou garanti-la (Gadamer, 2011). Num cenário em que a soberania da técnica leva à autorregulação das ciências aplicadas e ao uso do conhecimento científico para além de sua competência (hábitos, crenças, vida social), o saber do especialista torna-se determinante das ações em saúde, dificultando a escuta singular. No contexto hospitalar, refletiu-se sobre a influência desses aspectos na elaboração do lugar da psicologia, ainda em construção em instituições historicamente voltadas ao cuidado do corpo. Por outro lado, técnicas caras ao consultório perdem seu sentido frente à dor, à limitação física ou aos desencontros com a equipe.

ATENÇÃO PSICOLÓGICA E DESALOJAMENTO EXISTENCIAL

Outra dificuldade relatada foi o contato com a morte ou sequelas graves, que diversas vezes colocou os plantonistas frente a questionamentos e limites pessoais. A partir dessas experiências discutiu-se no processo formativo a representação contemporânea da morte, assunto expulso do cotidiano, no qual "o decoro proíbe qualquer referência à morte" (Ariès, 2017, p. 133). O status de tabu destitui o caráter inerente à existência do morrer: interdita, a morte deixa de ter lugar no cosmos e na compreensão da própria da vida. Relatos como "vi um dos pacientes com vários eletrodos pelo corpo e com uma cara de angústia, como se estivesse pedindo ajuda (...) me senti desconfortável e impossibilitada de chegar ao paciente" (DB 27) atestam o choque diante da precariedade da existência.

Deparar-se com a dor do outro em ocasiões de grande fragilidade requer do plantonista reconhecer a própria condição existencial de estar-lançado ao mundo. Assim, o processo formativo volta-se à elaboração da dimensão de ser afetado enquanto fundante da relação entre eu e mundo (Heidegger, 2012), abrindo novas possibilidades de compreensão. A partir do afetar-se, "algo que toca pode vir ao encontro" (Heidegger, 2012, p.192). Um plantonista relata: "uma criança de 3 anos havia morrido ao chegar, estávamos abalados (...) foi muito triste, pedi ajuda a outras psicólogas para atender a família desesperada (...) me coloquei no lugar da mãe, foi um dia pesado" (DB 33). Numa situação de sequela grave, "os familiares estavam chorando muito (...) era um senhor que sofreu acidente (...) estava bem complicado o quadro (...) ele estava tetraplégico (...) Lembrei quando meu avô estava no CTI, foi bem intenso" (DB 3). Num atendimento familiar "foi mais intenso, uma menina (...) politrauma decorrente de acidente, está tetraplégica (...) me vi na situação dela, pois quando tive o choque anafilático tinha 16 anos também" (DB 6).

A experiência do trauma nos coloca diante de nossa própria dimensão de precariedade - é nessas situações que os alunos compreendem a afirmação de Heidegger (2012) de que vivemos a morte pela morte de outros. Frente à proximidade da morte e a limitações do adoecer, evidencia-se a própria condição humana, abrindo espaço para a discussão sobre o desalojamento da existência. Os diários de bordo ressaltam a relevância do saber psicológico no cenário hospitalar, na construção de relações mais humanizadas em contextos como o CTI, onde a divulgação de notícias que fogem à expectativa dos familiares é constante.

ATUAÇÃO CONTEXTUALIZADA E QUESTIONAMENTOS NA FORMAÇÃO

O plantão psicológico submergiu os estagiários nos obstáculos institucionais e nas dificuldades contextuais dos atendidos - restrições socioeconômicas, diferenças culturais, questões familiares e pessoais - auxiliando os alunos a perceber seus entrelaçamentos e ampliando a clínica para além do olhar intrapsíquico. Desse modo, integrou dimensões que aparecem muitas vezes dissociadas na formação, como psicologia social da saúde, políticas públicas, saberes médicos e formação clínica, articulando ensino, pesquisa e extensão universitária. Em alguns relatos, tais questões se evidenciam por impregnação experiencial: "A mãe começou a relatar a rotina familiar, que é muito difícil para ela (...) foi bem cansativo fisicamente, pois estávamos conversando em pé, e emocionalmente" (DB 19). Outros questionam condições de atendimento, formação da equipe, relacionamentos interpessoais e atividades realizadas: "Observamos (...) o funcionamento institucional da ala (...) é importante que haja atividades (...) para canalizar energias em outras coisas que não o cigarro, a enfermeira, e a própria loucura" (DB 31). Embora tais aspectos possam aparecer em qualquer prática em instituição, o plantão psicológico torna-os notórios por atuar na situação emergente: ao propor atendimento imediato, restringe as margens de espaço e tempo que permitiriam lidar com obstáculos institucionais anteriores ao atendimento, tornando mais clara sua influência na constituição da demanda apresentada ao psicólogo (Braga, 2014).

Frente à discussão suscitada pela prática, diversos diários de bordo apresentam, na elaboração reflexiva da atuação profissional, transformações no modo de estar na instituição e de compreender a práxis. Um aluno relata que "não gostava de ficar na ala psiquiátrica" (DB 41) em estágios anteriores, mas que hoje está se "interessando muito pela dinâmica institucional e de funcionamento dos próprios pacientes com relação à loucura" (DB 41). Relaciona tal mudança à maior compreensão da história da loucura e à possibilidade de pensamento crítico sobre a relação entre loucura, técnica e capitalismo, concluindo: "nosso pensamento está alienado" (DB 41). Uma plantonista, ao relatar o acompanhamento de uma notícia de morte, reconhece sua condição de atuar numa dimensão para a qual outros profissionais não são preparados. A paciente já expressara aos plantonistas necessidade de apoio e segurança da equipe quando "ao entrar, o médico simplesmente disse: 'Então... Infelizmente ele não resistiu'" (DB 8). Nesse momento, ficou claro aos plantonistas que "a própria formação dos médicos não os prepara da melhor forma possível para comunicar um óbito de forma mais sutil, delicada – até porque a função de tais profissionais é se atentar (...) ao aspecto biológico" (DB 8).

Nesse contexto, evidenciou-se a "necessidade da intervenção da Psicologia" (DB 8) na humanização do processo, que passa a atuar tanto junto ao médico quanto junto ao paciente, mediando a comunicação e acompanhando posteriormente o processo de luto. Os plantonistas passam a reconhecer a importância da atuação em situações em que se mostra difícil comunicar o diagnóstico, como no relato de um estagiário frente ao medo de uma família de que o paciente "entre em depressão se souber da doença" (DB 23).

Em diversos outros relatos, os plantonistas abordam a importância ação clínica na narrativa do processo e na expressão de afetos ligados ao adoecimento, permitindo contextualizá-lo e reorganizar o cotidiano. O papel no plantão psicológico no apoio a experiências imediatas fica evidente em relatos como o de um plantonista que recebe a notícia médica da necessidade de um procedimento de aspiração no momento do atendimento: "a médica entrou no leito pedindo para a esposa e a acompanhante saírem (...). A esposa chorou pela primeira vez lá dentro e conversei com ela sobre o pensar da possibilidade de viver sem ele" (DB 01).

Em outras situações, apresenta-se a construção paulatina de novos sentidos para uma situação de sofrimento: "tive vários momentos emocionantes com esta paciente [que achava que não iria andar mais, desejando ter morrido], ela dizia que eu a entendia e me pediu um abraço chorando dizendo que nunca mais vai me esquecer porque consegui fazer ela mudar o pensamento" (DB 16). Os diálogos entre paciente e plantonista permitiram ressignificações: na abertura em tratar da experiência, em deixar-se acompanhar na trajetória de adoecer, em designar sentimentos em palavras carregadas de afeto, em rever os significados do vivido, em orientar-se em meio aos recursos da rede de saúde, o sentido pode ser redirecionado, trazendo o vislumbre de novas possibilidades (Barbosa, 2007; Braga et al, 2013).

Essa intensidade de contato com a dimensão psicossocial da queixa tem profunda influência no processo de formação. Ser colocado frente a frente com elementos socioeconômicos e institucionais da ação psicológica na saúde favorece o rompimento com uma visão de sujeito apartada do contexto. Abre-se espaço para discussões formativas sobre temas como postura na relação clínica, transdisciplinaridade, conexões entre dimensão psicológica e corpo. Os estagiários passam a aprender novas formas de atuação e tendem a posicionar-se criticamente, adotando uma perspectiva mais ampla sobre o sujeito e sobre o papel do psicólogo. No atendimento de uma moça num quarto onde "a enfermeira entrou diversas vezes (...) para fazer procedimentos" (DB 21), o plantonista ressalta a relevância de "estar muito focado no paciente e ele (...) estar à vontade para falar" (DB 9), por não haver "um espaço específico" (DB 18); outra plantonista ressalta a necessidade de ampliar o serviço "é urgente um psicólogo em cada setor, sobretudo a UTI [pois há] muitas famílias dilaceradas, muitos pacientes em sofrimento, (...) o que agrava o quadro, segundo os próprios médicos" (DB 34). Questiona-se ainda o formato da atuação: "A psicologia deveria funcionar como plantão, assim como os outros profissionais (...) a equipe precisa não só ser multidisciplinar, mas (...) interagir entre as profissões e saberes diferentes" (DB 14).

O redirecionamento da ação psicológica, deixando de se pautar no alcance de objetivos prévios ou de um modelo ideal de sujeito para contatar o outro na sua demanda e no seu existir, levou à compreensão do processo clínico como amadurecimento pessoal. Um plantonista relata "o que mais aprendi foi que a função do psicólogo não é fazer as pessoas felizes, mas ampará-las na sua angústia e que esse amparo as faça conseguir lidar com esta angústia (...)" (DB 5). Outra questão formativa foi a reorientação da relação entre teoria e prática, permitindo tomar a experiência como campo de criação de metodologias interventivas e como matéria prima de elaboração do conhecimento, como no relato a seguir "meu tema do TCC é direcionado a significados atribuídos pelos familiares em relação à atuação do psicólogo (...) pude compreender melhor tal situação" (DB 12), bem como os "diferentes significados de cada família diante da mesma situação: a hospitalização" (DB 21).

Ocasiões de sofrimento constantemente emergentes aos poucos criam sentido para a ação psicológica enquanto viabilizadora da elaboração de experiências e dores, bem como da criação estratégias possíveis de fortalecimento para ações futuras daqueles que buscam pela escuta (Farinha, & Souza, 2016). A expressão de sentimentos e elaboração de sentido, a ressignificação diante da possibilidade da morte, a ampliação do acesso a informações e do diálogo com a equipe vai permitindo construir um espaço privilegiado de permitindo ao plantonista-estagiário perceber-se numa função acolhedora no processo intersubjetivo (Perches & Cury, 2013). Os alunos reconhecem que a ação psicológica in loco contextualizada e voltada às situações emergentes desvela outros modos de compreender a saúde, que passam a ser dialogados com a equipe no espaço institucional, favorecendo que demandas psíquicas sejam acolhidas e trabalhadas no momento que surgem ou o mais rapidamente possível.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos relatos estudados, o plantão psicológico em contexto hospitalar foi fundamental para o questionamento do lugar tradicional do psicólogo, auxiliando um processo de compreensão da ação psicológica a partir do contexto amplo de experiência, abrangendo não apenas a dimensão subjetiva, mas as condições concretas nas quais o paciente se encontra. Exigências de maior flexibilidade para a práxis psicológica, lidando com atravessamentos institucionais, contato constante com situações de adoecimento e risco, ambientes abertos e impossibilidade de determinação prévia de horários de atendimento, trouxe diversas repercussões para a formação.

Enquanto disponibilidade para todas as relações e experiências emergentes no contexto, o plantão psicológico permitiu a consideração de toda a instituição - e não apenas o paciente internado - enquanto foco do olhar clínico, ampliando assim tanto a atuação quanto a análise cartográfica. Nesse sentido, os relatos apontaram que o plantão psicológico na instituição hospitalar se tornou, simultaneamente, espaço de aprendizagem, reflexão e criação de propostas interventivas.

O plantão psicológico realizado nas instituições suscitou nos alunos a necessidade de reelaborar suas referências de atendimento em diversas perspectivas. A necessidade de ir ao encontro do paciente, o contato com as experiências no momento de atuação e com o contexto concreto de vida do paciente, o diálogo com outros profissionais de saúde e a possibilidade do encontro ser único, entre outras especificidades do atendimento, levaram a questionamentos bastante diferenciados daqueles apresentados na clínica tradicional, enriquecendo a formação.

Sob a perspectiva da cartografia clínica, desvelou-se a atuação dos plantonistas no contato e diálogo com o universo experiencial dos atores institucionais. As possibilidades interventivas foram ganhando sentido à medida que o estagiário se propôs a experienciar o contexto. Assim, a experiência de estágio promoveu um deslocamento de uma visão tradicional, para outra mais atenta à complexidade das demandas, requerendo o questionamento das próprias experiências, a integração multidisciplinar, a reflexão sobre o paradigma prevalente na instituição, o conhecimento de aspectos orgânicos, informações sobre os dispositivos de saúde, entre outros, ampliando os modos de se compreender a atenção em saúde.

Tal diálogo viabilizou ao plantonista a oportunidade de testemunhar o sentido dado à experiência pelo paciente, sua ressignificação e apropriação em consonância ao diálogo com outros profissionais, abrindo caminho para a escuta num contexto pautado pelo modelo biomédico. A facilitação do cuidado em saúde como um todo permitiu ao plantonista em formação ampliar sua perspectiva para os múltiplos aspectos do cuidado. É no entrecruzamento dessas dimensões que se construiu a humanização das práticas em saúde, mobilizando o diálogo entre a equipe multiprofissional para a compreensão biopsicossocial do usuário. Tal olhar é condição fundamental para o empoderamento da população: a construção do acesso ao cuidado em saúde e a promoção do autocuidado funda espaços favorecedores dos direitos de cidadania.

 

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Endereço para correspondência
Tatiana Benevides Magalhães Braga
E-mail: tatibmb@gmail.com

Submetido: 23/06/2016
1ª reformulação: 31/01/2018
Aprovado: 10/02/2018

 

 

1 Tatiana Benevides Magalhães Braga é professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
2 Marciana Gonçalves Farinha é professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
3 Carlos Souza Filho é graduando do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-MINAS.
4 Kleiton Oliveira é psicólogo na Prefeitura Municipal de Poços de Caldas.

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