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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.20 no.1 Ribeirão Preto Jan./June 2019

 

ARTIGOS

 

Método APAC: emergência do sujeito no discurso sobre a mulher

 

The APAC Method: the emergence of subjectivity in the discourse regarding women

 

Método APAC: emergencia del sujeto en el discurso sobre la mujer

 

 

Bianca Ferreira Rodrigues1, I; Fuad Kyrillos Neto2, I; Angela Bucciano do Rosário3, II

IUniversidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei-MG, Brasil
II
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho discutimos, a partir da perspectiva psicanalítica, as diferentes visões sobre as mulheres, expressas no discurso de sujeitos em privação de liberdade, numa instituição que utiliza um método de recuperação de presos baseado na religião cristã, designado por APAC - Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. Utilizamos como marco teórico a perspectiva psicanalítica e, como método, a psicanálise aplicada na análise dos fragmentos de discurso de sujeitos que participaram de um grupo de conversação realizado nessa instituição. Como resultado, pudemos concluir que o discurso sobre a mulher demonstra que a tentativa de imposição de normas e adaptação social, por intermédio da moral religiosa, esbarra no desejo, que fundamentalmente nos constitui como sujeitos.

Palavras-chave: Método APAC; Psicanálise; Mulher.


ABSTRACT

Based on the psychoanalytic perspective, in this study we discuss different views regarding women, which are expressed in the discourse of subjects in deprivation of liberty, who live under surveillance of the Association of Protection and Assistance to Convicted (APAC), which uses Christianity as a methodology to seek prisoners recovery. As theoretical framework, we have chosen psychoanalytical perspective, and as method, we analyzed the speech fragments of subjects who participated in a conversation group carried out in this institution. As a result, it could be concluded that these men's discourse concerning on women demonstrates that attempt at imposing norms and social adaptation through religious morality, comes up against the desire, which fundamentally constitutes us as subjects.

Keywords: APAC method; Psychoanalysis; Women.


RESUMEN

En esta investigación, discutimos, a partir de la perspectiva psicoanalítica, las distintas visiones sobre las mujeres, expresas en el discurso de sujetos en privación de libertad, en una institución que utiliza un método de recuperación de presos basado en la religión cristiana, designado por APAC – Asociación de Protección y Asistencia a los Condenados. Utilizamos como marco teórico la perspectiva psicoanalítica y como método, el psicoanálisis aplicado en el análisis de los fragmentos de discurso de sujetos que participaron de un grupo de conversación realizado en esa institución. Como resultado, pudimos concluir que el discurso sobre la mujer de muestra que el intento de imposición de normas y adaptación social, por intermedio de la moral religiosa, choca con el deseo, que fundamentalmente nos constituye como sujetos.

Palabras clave: Método APAC; Psicoanálisis; Mujer.


 

 

No Brasil, as questões do Direito Penal têm tido grande enfoque nas discussões políticas, entrando em questão projetos de lei que visam à expansão do poder punitivo, como as propostas para redução da maioridade penal (PEC 171/1993), privatização dos presídios (PL 3.123/2012), ou criminalização da "pílula do dia seguinte" (PL 5.069/2013). Com o aumento da repressão e da punição, cresce também a população carcerária brasileira, gerando ainda mais superlotação. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (2014), computadas as prisões domiciliares, o Brasil está em terceiro lugar no ranking mundial de população carcerária, contando com 711.463 pessoas presas e um déficit de 354.244 vagas. Destes, a maioria é composta por "jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda" (Departamento Penitenciário Nacional, 2014, p. 6). Além disso, é possível observaras dificuldades e deficiências no próprio cumprimento de pena, como a ociosidade obrigatória do preso, o grande consumo de drogas e o alto índice de reincidência, que dão origem a um ambiente com condições sub-humanas de permanência, lotado de rebeliões, corrupção e violência (Andrade e Ferreira, 2015).

Ao constatar a situação descrita, e a partir da experiência de apostolado junto a alguns presidiários, o advogado Mário Ottoboni propôs em 1972 um novo método de gestão carcerária, o método APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Vargas, 2011). Segundo Ottoboni (2006, p. 29), "trata-se de uma metodologia que rompe com o sistema penal vigente, cruel em todos os aspectos" e que não cumpre o que seria o objetivo principal da prisão: o de ressocializar. Ao adentrar em uma de suas unidades, o preso recebe a denominação de recuperando, enfatizando, assim, o propósito de recuperar, curar.

Em sua mais recente sistematização, realizada por Ferreira e Ottoboni (2016, p. 20) o método APAC é caracterizado "pelo estabelecimento de uma disciplina rígida, baseada no respeito, na ordem, no trabalho e no envolvimento da família do recuperando". Seus objetivos seriam "a recuperação do preso, a proteção da sociedade, o socorro às vítimas e a promoção da justiça restaurativa" através da observação de doze elementos fundamentais, incluindo a "espiritualidade e a importância de se fazer a experiência com Deus" (Ferreira & Ottoboni, 2016, p. 20). Ainda segundo os autores:

Nos países de maioria cristã, é preciso ajudar os recuperandos a se encontrarem espiritualmente para que depois, em liberdade, eles possam continuar alimentando essa necessidade e, certamente, além de se inserirem em uma comunidade religiosa, possam passar a ter uma vida pautada pela ética e norteada por novos valores (Ferreira & Ottoboni, 2016, p. 73).

Em outras palavras, temos proclamada a conversão e a crença cristã como uma das ferramentas utilizadas pelo método para a recuperação e ressocialização dos presos, paralelamente ao emprego dos valores cristãos como sinônimos de adaptação social.Aspectos que foram destacados por outros autores, como Camargo (1984, p. 86), que aponta a religião como o elemento principal do método APAC e questiona se é "moral reformar o preso". Segundo ela, a APAC utiliza de sua posição de poder, como representante da lei, e de "mecanismos institucionais totalitários" para impor uma ideologia religiosa "a pessoas com condições mínimas de uma opção livre" (Camargo, 1984, p. 86-87). Frei Betto, durante o prefácio que escreveu para a obra de Camargo (1984), corrobora com sua posição e afirma que a fé religiosa se caracteriza como um ato livre. Impô-la aos presos significa deturpar sua natureza reduzindo a dádiva divina a uma ideologia disciplinadora de caráter religioso.

Vargas (2011) também evidencia esses aspectos na etnografia que realizou acerca do método APAC, elucidando sua atuação sincrônica como mantenedor da Lei do Estado e reprodutor da doutrina religiosa. Logo, por mais que ela esteja um tanto camuflada em suas práticas, não se pode esquecer que a Lei do Estado se faz presente no cotidiano das APACs, sendo que suas unidades constituem parte do Sistema de Justiça Criminal Brasileira e são reconhecidas por ele. Porém, como sua especificidade, a lei que atua soberana nesse contexto seria a "Lei de Deus", exercendo seu poder, não mais de forma indireta ou paralela (como nas prisões convencionais), mas "de maneira englobante", "visando à transformação da própria prisão em uma comunidade de fé" (Vargas, 2011, p. 162).

Tal predominância do discurso religioso foi percebida por uma das autoras deste texto, durante o tempo em que atuou numa sede da APAC, no interior de Minas Gerais. Comportando presos dos regimes fechado, semiaberto e semiaberto autorizado ao trabalho externo, tal unidade exigia como regra fundamental para permanência em suas unidades a prática da religião cristã, incluindo três orações por dia e um culto ou missa por semana. As demais formas de religião, como a Umbanda, não eram permitidas, e sua manifestação era punida como forma de descumprimento do regulamento. Alguns recuperandos chegavam até a perder o direito de visita familiar, por realizarem outras formas de culto religioso.

Esta imposição era observável na fala destes recuperandos, que repetiam o discurso da instituição de forma mecânica e vazia, com o intuito de não serem punidos ou, até mesmo, de serem favorecidos por funcionários e dirigentes, através de pequenos favores. Um elogio ao método poderia significar, por exemplo, um sabonete, uma camiseta ou uma ligação para a família. Temos, assim, uma repetição mecânica do discurso institucional. Porém, nos interessava analisar, o que tal repetição tamponava.

Diante deste cenário, foi proposto um grupo de conversação, realizado na sede da APAC de uma cidade de médio porte do interior de Minas Gerais, a exemplo de outras experiências grupais em instituições apaqueanas, como a realizada por Isabel, Souza e Vítor (2017). Por ser balizado pela teoria e clínica psicanalítica, o grupo teve como princípio a associação livre de ideias, o que favoreceu a emergência de diferentes visões acerca da mulher e do feminino expressas, de modo espontâneo, pelos recuperandos. A manifestação desses discursos chamou a atenção dos pesquisadores, visto que se trata de uma instituição em que o predomínio do discurso religioso se faz presente de forma maciça, conforme assinalado nos parágrafos anteriores.

Nos diversos encontros realizados, foi possível conhecer um pouco melhor estes sujeitos, suas histórias e seus modos de subjetivação, assim como a realidade prisional em que se encontravam. Entre os principais aspectos observados, gostaríamos de trazer à tona as diferentes visões acerca das mulheres, presentes em suas falas. Sendo importante ressaltar que, por ter como prerrogativa a livre associação como modo de circulação da palavra e premissa do método psicanalítico, os temas que surgiam durante os encontros eram da livre escolha dos participantes do grupo. Assim, temas referentes à sexualidade, a mulher e o feminino, foram surgindo de modo espontâneo e repetitivo nas falas desses sujeitos.

Em termos ideológicos, essa conexão não é aleatória, já que a ordem sexual tem uma relação direta com o poder e domínio dos fiéis: "Dominar o espaço mais íntimo da pessoa pressupõe dominá-la por inteiro. Isso significa limitar a fonte de seus desejos e de seu poder de expressão assim como impedir qualquer tipo de autoafirmação diante da lei e do poder" (Morano, 2009, p. 202).

A partir de tais constatações, objetivamos a construção deste artigo, a fim de analisarmos como um espaço de livre circulação da palavra em uma instituição apaqueana trouxe à tona o discurso sobre a mulher e, com ele, a possibilidade de emergência do sujeito. Acreditamos se tratar de um material profícuo, que será analisado e discutido a partir dos preceitos da psicanálise, demonstrando-se a importância da dimensão do feminino para destruir rótulos, aliviar uma realidade embrutecida e questionar o instituído em prol da busca por novas respostas para questões importantes.

 

MÉTODO

Considerando o testemunho recente de analistas de orientação freudo-lacaniana, é possível perceber a possibilidade de invenção particular no contexto de uma escuta em pequenos grupos orientada analiticamente (Holanda, Dutra, Medeiros, & Ribeiro, 2015). No presente estudo, foi considerada a psicanálise aplicada e seus níveis de exigências metodológicas, resultando na análise das anotações da pesquisadora acerca de um grupo de conversação, realizado na APAC. Tal instituição conta com aproximadamente 200 recuperandos, sem distinção de crimes ou tempo de permanência. Entre estes, cinco foram escolhidos aleatoriamente a partir do interesse em participar do grupo, que teve frequência semanal e duração aproximada de uma hora. O número de participantes foi estipulado visando a efetiva participação de todos assegurando a circulação do discurso.

Ao contrário das demais atividades da instituição, a participação no grupo de conversação não possuiu caráter obrigatório, podendo haver desistências durante qualquer momento de sua realização. Nos casos de desistência, houve substituição por outros recuperandos que manifestaram inicialmente interesse em participar do grupo. Tal grupo de conversação foi realizado como forma de roda de conversação, sem a utilização de roteiros ou questões previamente estabelecidas. Este grupo teve em torno de 28 encontros com o objetivo de garantir um espaço de livre circulação da palavra, com a possibilidade de ressignificação do ato criminoso, em uma instituição marcada por normas institucionais e comportamentais rígidas. Os temas foram escolhidos aleatoriamente pelos próprios recuperandos e trabalhados com o auxílio de algum material, como filmes, músicas, notícias, entre outros. Foram abordadas temáticas diversificadas tais como: sexo, religião, família, drogas, liberdade, mulheres, infância, motocicletas, carros dentre outras. Porém, todas elas convergiam, no discurso dos participantes, para a questão da mulher.

A pesquisadora, após fazer um contrato com o grupo, no qual frisava o respeito às diferenças de opinião, a cordialidade no trato com o próximo e o compromisso com a assiduidade, se posicionou de maneira a deixar o discurso fluir livremente, com o mínimo de interferências possíveis. É importante ainda ressaltar que os encontros foram realizados sem a presença de funcionários da instituição, de modo que os sujeitos não se sentissem coagidos a se posicionar frente às questões colocadas a partir do que é institucionalmente prescrito.

Além disso, foram levados em consideração todos os procedimentos éticos para a realização de pesquisas envolvendo seres humanos, incluindo os termos da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde e artigos referidos no protocolo de pesquisa do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São João del-Rei (CEPSJ).As anotações da pesquisadora foram feitas após o término de cada encontro, de maneira a selecionar seus aspectos mais importantes. Nestas anotações não houve a identificação de nenhum dos participantes, pois foram utilizados nomes fictícios e apenas pequenos trechos de fala que se mostrassem relevantes ao desenvolvimento da pesquisa.

Em consonância com os princípios norteadores da psicanálise aplicada, esses registros foram feitos como forma de anotação livre pela pesquisadora, contando com a sua memória. Com base nos procedimentos utilizados na práxis psicanalítica, quais sejam: uma escuta flutuante, isto é, descentrada do tema central, um recorte do texto privilegiando temas, expressões, brechas, palavras; uma reconstrução deste texto que permita ao analista criar ali um sentido que desvele o subentendido, trazendo à tona outra verdade sobre o texto, foram analisadas as anotações da psicanalista, privilegiando a singularidade em sua relação com o significante. Nesse momento constatamos que, para além do discurso religioso-institucional, os sujeitos apresentavam de forma recorrente alusões, questões e preocupações acerca do feminino, dirigidas à psicanalista que conduzia o grupo.

Partimos da premissa de que a psicanálise se elucida enquanto proposta investigativa, seja na clínica, seja no social. Dunker (2013) assinala que as características da psicanálise aplicada e do discurso analisante que a ela se liga fazem desse campo um método de invenção e descobertas. O autor se refere às seguintes características: a recordação, que é concernente ao discurso e se orienta pela história e contingências implicadas nas lembranças; a implicação, que consiste em um discurso que permite que se interrogue eticamente sobre as formações de estranhamento com as quais se depara; e a transferência, que diz respeito a um discurso que se articula a uma suposição de saber, que aponta para o propósito de diálogo. Para Dunker (2013), a colocação do pesquisador na posição de analista pode ajudar a compreender a dubiedade presente na própria definição que Freud fez da psicanálise, como teoria, método clínico e disciplina científica. A prática investigativa se insere, portanto, no centro da psicanálise, ainda que se expanda para além do atendimento no setting analítico.

Consideramos profícua para nossa investigação a proposição de Silva e Macedo (2016) que asseveram a inserção dos elementos essenciais de um processo analítico, a saber, a escuta, a abstinência, a transferência e a interpretação, como condição estrutural na pesquisa em psicanálise. Assim como Lo Bianco (2003), que nos oferece importantes subsídios, ao considerar que é imperativo o reconhecimento da especificidade do objeto na pesquisa em psicanálise, pois tal objeto só se deixa circunscrever em análise, na qual analista e analisante estão implicados nas próprias produções inconscientes sob investigação.

A psicanálise aposta que, independentemente do que lhe é imposto, existe um sujeito. E que, por maior que seja o esforço, qualquer imposição não se sustenta por inteiro – algo de particular escapa e demonstra como esse sujeito é irredutível. São pequenos lapsos, aparentemente sem importância, mas que não passam despercebidos para o psicanalista. Frases como eu não preciso me esconder atrás da bíblia denunciavam a necessidade de se alcançar esses sujeitos, o que só se faz possível através do dispositivo analítico, ou seja, através do encontro entre analista e analisante, entrelaçados através da palavra (Elia, 2010). Este foi o farol norteador da reflexão sobre o trabalho da psicanalista na APAC: alcançar o sujeito em sua singularidade e lhe proporcionar um espaço no qual o discurso religioso fosse relativizado.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

MÃE, PERIGUETE, PATRICINHA E CERTINHA... OU: VERSÕES DAS MULHERES

A partir da obra de Freud (1915/2004) temos a noção de que nosso psiquismo é regulado por um embate de forças, ajustado para permanecer em um estado de tensão constante, ou seja, para permanecer com a maior parte da energia reprimida. Como a energia psíquica se liga às ideias, a maior parte dessas ideias também permanecerão reprimidas. Ou seja, o que é manifestado conscientemente é apenas uma parte de nós mesmos. Porém, pode-se questionar: é possível ter algum acesso ao recalcado?

Freud se depara com essa questão durante seus estudos e, após algumas experiências anteriores propõe a associação livre como regra fundamental da técnica psicanalítica (Elia, 2010). A associação livre consiste no esforço para que o paciente diga não apenas o que diria intencionalmente e de boa vontade, mas também tudo o mais que lhe vier à cabeça, por mais que seja "desagradável", "sem importância ou realmente absurdo" (Freud, 1940/2006c, p. 189). Isso não significa que se consiga alcançar um inconsciente totalmente disponível, mas que se chegará a pequenas manifestações que possibilitarão construir um saber sobre aquele sujeito e aquilo que o aflige.

Com relação a isso, a visão dos recuperandos a respeito das mulheres foi um aspecto intrigante verificado no decorrer do grupo de conversação. Dividindo-as em categorias bastante claras e distintas entre si, os recuperandos parecem não reconhecer, em seus discursos, a dimensão singular do que seria uma mulher, classificando-as como as mães, as certinhas, as patricinhas ou as periguetes. No centro disso tudo, a questão: qual mulher eu posso ter?

Amor só de mãe, era a frase tatuada e repetida por muitos dos integrantes do grupo. A experiência de ser preso, segundo eles, significava perder tudo: dinheiro, amigos e namoradas. O que permanecia era a família, principalmente a mãe, que muitas vezes se transformava em suporte emocional e incentivo para cumprir a pena sem infringir as regras da instituição. Aliás, uma das maiores vantagens da APAC seria a ausência da revista íntima, método que impõe a nudez absoluta e o agachamento sobre um espelho como forma de detectar tentativas de contrabando para o interior do presídio – motivo de vergonha e de tristeza para os presos e suas famílias.

Entretanto, mesmo quando estavam no presídio convencional, as mães nunca deixavam de visitá-los. Quando a mãe de Breno (nome fictício) começou a não aparecer, ele foi bem claro em sua posição: preferia que a namorada nunca mais viesse, a ficar sem ver a mãe, mesmo relatando que, quando estava no crime, ela teria dito que era melhor ele morrer do que dar mais trabalho. Já Carlos apanhava muito da mãe quando pequeno e, ainda assim, a pior dor de sua vida teria sido a primeira visita dela, quando foi preso. Ele afirma ter sido muito difícil permitir que ela o visse naquele estado, recuperando-se de uma briga de rua que quase o matou e que foi motivada pelo roubo de algumas pedras de crack. Afinal, apesar de tudo, mãe é mãe.

Esta valorização das mães muitas vezes era acompanhada pela vontade de se casar e constituir uma família, pois, para muitos dos recuperandos, por mais que a vida de solteiro tenha suas vantagens, chega um tempo em que se sente falta de ter alguém mais fixo, alguém pra acordar junto, pra confiar. Contudo, ainda de acordo com os recuperandos, esta seria uma tarefa muito difícil, já que está cada vez mais raro encontrar uma mulher de família. Jonas, por exemplo, afirmou já ter se relacionado com uma mulher assim. Ela frequentava a igreja, não gostava de festas e não usava roupas curtas. Durante o tempo em que ficaram juntos, ele também se aquietou, parou de usar drogas e de ir a todas as festas. Porém, ao terminarem o namoro, ficou três vezes pior do que era antes, ou seja, neste caso não adiantou de nada ter se esforçado para merecer a moça de família. Ele considera, todavia, que o esforço faz parte, já que tudo que vem fácil vai fácil.

Segundo eles, é também necessário um esforço para se conseguir conquistar a patricinha. Geralmente bonita, mas sempre muito bem arrumada, é fácil reconhecer esse tipo de mulher. Mimada e protegida pelos pais, sempre consegue o que quer e com quase nenhum esforço. Está sempre em consonância com a moda, gasta muito dinheiro com artigos de grife e tratamentos de beleza. A condutora do grupo foi classificada nesta categoria, após aparecer com um tênis de grife, e questionada se gostava de gastar. Esta valorização do dinheiro e da grife se manifestou, inclusive, e a psicanalista foi questionada por Breno e Jonas sobre a possibilidade de ficar com algum ex-presidiário. Carlos, por sua vez, disse que não era exigente. Queria uma namorada, mas não precisava ser tão patricinha como a analista. Poderia ser alguém mais humilde.

Posicionamento que também se fez presente a partir da direção da instituição, que chegou a advertir a psicanalista, no momento de sua contratação: quando se apaixonar, nos avise. A fala foi proferida pela funcionária mais antiga da instituição, uma mulher robusta e com trejeitos masculinos. Deixou bem claro que era apenas questão de tempo, o enamoramento, e que se tratava de uma situação rotineira para eles, já estavam acostumados a lidar com ela. Disse de forma bastante amigável: Não se manda no coração; pode se abrir sem medo que não haverá nenhuma represália. Ou seja, o mais importante era que a profissional anunciasse quando isso acontecesse, para que as medidas cabíveis fossem tomadas. Seria então afastada do cargo e passaria a frequentar as visitas aos domingos, como qualquer parceira. Ora, se não mandamos no coração, podemos pelo menos cercear sua manifestação.

A atualização, no psicanalista, de algum traço de figura do passado do paciente, transferindo para a análise sentimentos e reações que seriam direcionados a essa figura foi identificado por Freud (1940/2006c) e recebeu a denominação de transferência. Lacan (1964/2008) adverte que a transferência não diz respeito a uma simples repetição, mas a uma atualização, uma presentificação do inconsciente. O que fundamenta essa atualização é o "sujeito suposto saber", ou seja, a confiança que o paciente deposita no analista, a crença numa certa "infalibilidade", que resulta até na atribuição de intenções ao que foi apenas casual – "Você o fez para me pôr à prova!" (Lacan, 1964/2008, p. 228).

A transferência se constitui como um fenômeno indispensável ao tratamento, pois permite que o paciente confie no analista e reproduza em ato aspectos importantes que ainda não foram traduzidos em palavras (Freud, 1940/2006c). Porém, também surge algo como efeito da transferência, que se opõe à revelação: o amor. Lacan (1964/2008) diz da face de resistência e do efeito de tapeação deste amor, e Freud (1915/2006b, p. 99) dedica ao tema um ensaio, demonstrando como lidar com o "caso em que uma paciente demonstra abertamente que se enamorou, como qualquer mortal poderia fazê-lo, do médico que a está analisando".

Freud (1915/2006b) aponta que a posição do analista deve ser de abstinência. Ou seja, deve-se permitir que as demandas da paciente continuem presentes como forma de motivação para o tratamento, mas deve-se abrandar estas forças por meio de substitutos. "Um caminho para o qual não há modelo na vida real", mas único capaz de dar continuidade ao processo sem maiores prejuízos para o paciente (Freud, 1915/2006b, p. 103).

Foi esta a posição privilegiada pela analista durante a condução do grupo na APAC. Por se tratar de um grupo formado exclusivamente por presos, com a direção de uma mulher jovem e com atributos que os faziam supor uma condição social privilegiada, a transferência possibilitou a atualização de materiais inconscientes relacionados ao feminino e aos impasses daí resultantes. Como dito anteriormente, a analista foi colocada na posição de patricinha, já que possuía formação em um curso superior, possuía um trabalho e calçava um tênis de marca famosa. Todas essas são características presentes na realidade, mas que servem apenas como suporte para outra cena, mais importante do que a realidade, já que aponta na direção daquilo que é próprio do sujeito, mas que ele mesmo ainda não reconhece.

O encontro em que este tênis foi colocado em questão deixou claro como a grife e a patricinha representam para eles, ao mesmo tempo, aquilo que é bom e aquilo que é inalcançável, visto que, além de pobres, agora eles também estão presos – com toda a carga de significado social que isso acarreta. Duplamente estigmatizados, chegam a questionar se a analista algum dia se relacionaria com um ex-presidiário. Verifica-se, portanto, um efeito transferencial que presentifica o recalcado e permite um vislumbre para além do que foi dito, para questões como: algum dia eu poderei ter uma mulher assim? ou ainda: seria tão bom sair daqui e me relacionar com uma patricinha! Nota-se que essas falas são produto de uma fantasia que interliga o feminino ao reconhecimento social.

Por outro lado, eles se dizem cortejados por outro tipo de mulher, a periguete, por eles considerada o pior tipo. Interesseiras, apaixonadas por bandidos e sem ambição alguma na vida, estas mulheres, segundo os presidiários, só querem fazer sexo e usar drogas. Breno relatou já ter sido abordado na rua por uma mulher assim, perguntando se ele era aquele bandido mesmo, de quem ela ouvira falar. Na perspectiva dele, se colocassem um homem trabalhador ao lado de um criminoso numa festa, o homem honesto ficaria sozinho. César completa sugerindo que a motivação para isso seria apenas o dinheiro, ou melhor, carro ou moto, armas e dinheiro. De acordo com ele, mulher assim não resiste a um homem que está portando [arma de fogo].

A variação positiva destas mercenárias seriam as mulheres que se envolvem com o mundo do crime para conquistarem sua independência e terem o próprio dinheiro. Breno relata ter conhecido uma assim: bonita, pinta o cabelo de vermelho, comprou uma supermoto e não depende de ninguém– o que, para ele, seria algo admirável. Porém, do ponto de vista desses recuperandos, se as certinhas são difíceis de serem encontradas e conquistadas, as periguetes podem acabar com um homem. Se ele se apaixona, ela o explora até que ele acabe falido, e, então, vai atrás de outro que tenha o dinheiro para financiar suas festas e drogas. Eles afirmam que um divisor de águas quanto aos relacionamentos que mantinham foi terem sido presos. Neste novo contexto, poucas mulheres continuaram com seus parceiros e os visitaram na prisão. Assim, ter uma namorada ou esposa e, principalmente, ter a visita íntima com sua companheira, era um aspecto bastante valorizado entre eles. Isto, entretanto, não vinha sem uma questão: como garantir que não está sendo traído? Breno, um dos integrantes do grupo que mantinha um relacionamento, chegou a afirmar que era preciso matar a mulher adúltera. Não o homem, apenas a mulher. Afinal, como imaginar você preso e sua mulher lá fora te traindo? César, por sua vez, prefere ficar sozinho, pois não conseguiria confiar em alguém dessa maneira, e Carlos gostaria muito de ter alguém, pois acredita que uma mulher bacana poderia ajudá-lo a mudar de vida. Mas, se as mulheres gostam de carros, armas e dinheiro, o que um presidiário pode oferecer? Ou, até mesmo futuramente, que tipo de mulher um ex-presidiário pode ter?

Nesse sentido, podemos falar de formas específicas do feminino, a começar pelo "lugar de dama", que se manifesta numa "posição de sacrifício, de doação, do semblantear" (Calligaris, 2006, p. 43). Nesta expressão do feminino, os sujeitos fantasiam com a dama que se complementa com o seu oposto, a prostituta, que, por sua vez, representa a sedução, a entrega pura e livre, o oferecimento do corpo como simples pedaço de carne que pode gozar livremente. Esta é uma divisão imaginária importante que povoa tanto a mente masculina quanto a feminina, assim como aponta Calligaris (2006), porém com suas especificidades. No homem, tal dualidade remete a um momento descrito por Freud (1910/2006a) em seu texto Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens, no qual o menino descobre que sua mãe também faz sexo e deduz que entre ela e uma prostituta não existe, então, muita diferença. O resultado são sentimentos em conflito e angústia. Já para a menina, a fantasia de prostituição, de suscitar o desejo e entregar-se sem pudor constitui um passo importante no processo de subtrair-se parcialmente do olhar paterno. É necessário, de certa forma, trair o amor do pai para que ela suporte o status de objeto de amor de outro homem (Calligaris, 2006).

A personificação pura de um dos opostos da fantasia, seja como dama ou como prostituta, culmina nas formas de "fracasso" do feminino: "por um lado, a renúncia do corpo realizada pela virgem, e, por outro, uma entrega sem significação que só pode ser vivida como horror" (Calligaris, 2006, p. 48). Ou seja, o ser mulher não deve se limitar a rótulos como o de patricinha, certinha, ou periguete, mas representar um lugar sem significações, a ser construído continuamente.

Nesse sentido, as histéricas se constituíram ao longo da história como desafiantes do conhecimento por excelência, subvertendo qualquer tentativa de aprisionamento. Este comportamento representou um desafio para a ciência médica e intrigou Freud, levando-o para os caminhos da psique em busca de desvendar os enigmas que as histéricas lhe colocavam, sempre se reinventando a cada tentativa de classificação e de tratamento. Como destacam Francisco e Cavalcanti (2014, p. 21), "a clínica psicanalítica deve ser apreciada como uma produção que emerge a cada dia através do encontro, da fantasia, do sofrimento, do sintoma. Este é o lugar do feminino que se revelou para Freud e aflora diariamente para cada sujeito que se propõe efetivamente ao exercício da escuta".

Dizer do feminino, portanto, traz consigo toda essa dimensão da fantasia, do que não pode ser classificado, e, principalmente, daquilo que não pode ser totalmente reprimido: Eros. A pulsão sexual é constituinte do ser humano e necessita de certa satisfação, sendo possível notar pelo comportamento das histéricas da época de Freud, como o recalque excessivo da dimensão sexual pode ser fonte de adoecimento.

Freud teve a coragem e a audácia de colocar essa dimensão em destaque, não só no adoecimento histérico, mas na infância e até no nosso cotidiano, em ações aparentemente inocentes. Portanto, não é de se assustar que as mulheres tenham sido ponto importante dos encontros do grupo terapêutico na APAC, ressaltando-se a importância de um espaço que permita essa manifestação. Por mais que se trate de "uma descarga mediada e controlada pela atividade intelectual", falar sobre as mulheres e sobre a sexualidade também representa uma forma de descarga pulsional (Násio, 1999, p. 27).

A MORAL RELIGIOSA A FAVOR DO RECALQUE E O FEMININO COMO AVESSO DA CULTURA

Ser preso constitui um bom exemplo de como a sociedade impõe certo conjunto de regras para seus componentes, indispensáveis para sua existência. Ora, se as leis e restrições são necessárias para a manutenção da civilização, deve haver forças contrárias a estas nos indivíduos, que precisam ser contidas. Freud (1930-36/2014b) explora essa relação entre sujeito e civilização e aponta o antagonismo entre as exigências pulsionais e as exigências sociais.

O paralelo realizado por Freud entre psicologia individual e psicologia coletiva a partir das noções de limitação pulsional e interdito do incesto, cujas repercussões ele pôde perceber na clínica das neuroses, resultou na aplicação do modo de pensar psicanalítico para além de seu campo original, numa operação que se apoia no princípio da comparação entre a infância do indivíduo com a pré-história dos povos (Assoun, 2012). Trata-se de uma comparação, portanto, entre mitos: o Complexo de Édipo e o Assassinato do Pai Primevo. O que esses mitos possuem em comum é justamente o interdito do incesto e sua consequência, a limitação pulsional, que consistem na base da civilização e de cada sujeito, e que fundamentam um mal-estar irredutível, porém indispensável para a criação do laço social.

Tentamos sempre escapar de tal mal-estar, impulsionados pelo princípio do prazer, ou seja, pela necessidade de diminuir a tensão do inconsciente, de escoar a energia reprimida. Porém, como o escoamento total da energia significaria a morte, e não podemos escapar do mal-estar, por vivermos em sociedade, Freud (1930-36/2014b) vem dizer que não há como suportar a vida sem o auxílio de "paliativos", isto é, de técnicas para tentar afastar o sofrimento. Um destes paliativos mais populares é a religião. Seu método consiste em impor a todos o mesmo caminho para a consecução da felicidade, diminuindo a importância da vida terrena e deformando a realidade (Freud 1930-36/2014b). São ensinamentos e afirmações que demandam nossa crença e que não admitem serem postos à prova, justamente porque não possuem provas de sua veracidade.

A religião proporciona certo alívio ao sentimento de desamparo e impotência. Exige nossa crença, mas ao mesmo tempo satisfaz nossos desejos através de ilusões. Além disso, proporciona formas de laço social na medida em que "figura ao lado das organizações sociais e das limitações morais" (Assoun, 2012, p. 239). Porém, vale destacar um adendo importante para nossa discussão: tal sociabilidade é estruturada através de uma "dessexualização", "da exclusão do erotismo e da mulher" (Assoun, 2012, p. 239). Nas palavras de Freud, "nos grandes grupos artificiais, Igreja e Exército, não há lugar para a mulher como objeto sexual. A relação amorosa entre homem e mulher fica excluída dessas organizações" (Freud, 1920-23/2014a, p. 109). Ou seja, a inserção da dimensão do feminino nestes espaços traz consigo a diferenciação sexual, a mensagem de Eros, contrapondo-se a uma formação social puramente masculina.

Em moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, Freud (1908/1996) assevera um confronto entre a "moral sexual natural" e a "moral sexual civilizada". A moral sexual natural seria um conjunto de normas que, embora restrinjam a sexualidade, o desejo e o prazer, deixam uma brecha para o homem manter sua saúde e eficiência na vida social. A moral sexual civilizada, por sua vez, seria extremamente exigente e, de maneira tirânica, obriga os homens à privação sexual, tendo em vista incorporar os homens ao sistema de uma acentuada produtividade cultural. Na perspectiva freudiana a moralidade elevada, alçada ao grau de um despotismo, exige enorme sacrifício aos homens e, o moralismo em excesso, colocaria em risco a própria civilização (Santos & Ceccarelli, 2010). Lembremos que os neuróticos possuem uma organização psíquica "recalcitrante", pois a supressão das pulsões é apenas aparente, ou seja, o que é recalcado retorna na forma de sintomas.

Conforme nos lembra Santos e Ceccarelli (2010), a Igreja parece preferir enfrentar as questões sexuais pelo viés da pedagogia evangélica, impelindo os fiéis a cumprirem a disciplina espiritual e agirem com cautela e comedimento em suas atitudes. Assim, para muitos sujeitos submetidos à doutrina cristã a conduta sexual transforma-se numa questão consumada no momento de revisar suas relações com Deus e a retidão moral de suas vidas.

Neste sentido, a feminilidade possui toda uma vocação para encarnar e significar um avesso do projeto cultural. Esse avesso denuncia a falta do social, e com isso contribui para seus avanços, descobertas e invenções. "Seja como polo do sexual, oposto à norma social, seja como Eros, oposto à dessexualização social, seja como reparação, oposta ao trabalho da pulsão de morte, seja como secessão", a mulher apresenta formas de ser sujeito e de construir o laço social que são importantes justamente por seu poder de apontar as lacunas, de abalar as estruturas e de apontar as verdades que não queremos ouvir (Assoun, 2012, p. 243).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Utilizando-se de sua posição de poder como representante da Lei do Estado e de uma doutrina religiosa como paliativo ao mal-estar dos sujeitos, a APAC se dedica ao seu propósito maior: recuperar o preso, adaptá-lo para viverem em harmonia com a sociedade, através de um método de disciplina, obediência e fé. A religião trará certo conforto, por intermédio de promessas de proteção e de um mundo perfeito após a morte, o que poupa muitos da neurose. Porém, trata-se de promessas impossíveis de serem cumpridas, pela própria inacessibilidade do ser humano à felicidade plena, na medida em que "o programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é irrealizável" (Freud, 1930-36/2014b, p. 40). A religião se constitui como um paliativo contra o sofrimento, porém a civilização é sustentada pela renúncia pulsional, ou seja, pelo não escoamento livre da energia psíquica, resultando em um mal-estar irredutível.

Nesse sentido, a psicanálise não é contra o recalque das pulsões, sendo o recalque, inclusive, apontado por Freud como "fundador do progresso" e "medida do nível de civilização alcançado" (Assoun, 2012, p. 95). O que se torna fonte de adoecimento é o excesso de recalcamento, principalmente com relação ao sexual, que restringe a capacidade de sublimação, isto é, a capacidade de "substituição do objetivo sexual ideal (incesto) por um outro objetivo, não sexual, de valor social" (Násio, 1999, p. 55). Isto significa que a partir da sublimação são realizadas as ações em prol da vida em comum e do desenvolvimento social, como a criação de laços de amizade, a produção artística e científica, entre tantas outras possibilidades. Mas, para que ocorra esse deslocamento, em todas as suas potencialidades, "não devemos tornar estranha para nós a pulsão sexual, em todo seu excesso de energia" (Assoun, 2012, p. 208). Assim como o calor resultante do funcionamento de uma máquina, algo dessa energia original, irredutível pela nossa própria condição como seres sexuados, deve permanecer.

Em caráter preliminar, nosso estudo aponta que, no caso das instituições que utilizam em suas práticas o método APAC, um espaço que permita falar sobre as mulheres traz consigo a dimensão da divisão sexual, do erótico e da pulsão. Por mais que se trate de presos, com sua liberdade extremamente limitada, manifestar pela fala algo no âmbito da sexualidade já proporciona certo alívio. Essas falas, contudo, não eram admitidas pela instituição, na medida em que o monopólio do discurso religioso restringia as manifestações pessoais nos espaços compartilhados.

Dessa tensão entre disponibilizar uma forma de consolo através da religião e reprimir excessivamente os sujeitos, resulta um método de encarceramento que vem sendo largamente reproduzido no Brasil, mas que não se pergunta em que medida suas práticas estão inseridas no âmbito social e nem como irão afetar os sujeitos ali presentes, o que nos remete à possibilidade de que a religião se transforme em instrumento de adaptação acrítica e aceitação incondicional, por parte dos sujeitos nestas condições sócio/culturais. Freud (1930-36/2014b) aponta essa dimensão na qual o homem religioso se vê tendo que aceitar todos os acontecimentos ruins de sua vida como "desígnios do Senhor", admitindo que sua única saída é a submissão absoluta. Como completa Freud (1930-36/2014b, p. 43), "se está disposto a isso, provavelmente poderia ter se poupado o rodeio".

 

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Endereço para correspondência
Bianca Ferreira Rodrigues
E-mail: biancaferreira025@gmail.com

Submetido: 19/03/2017
1ª reformulação: 10/05/2018
Aprovado: 21/10/2018

 

 

1 Bianca Ferreira Rodrigues é mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei.
2 Fuad Kyrillos Neto é docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei.
3 Angela Bucciano do Rosário é docente do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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