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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.20 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2019

 

EDITORIAL

 

O que pode ser considerado inovador no Ensino superior contemporâneo? Considerações sobre o acolhimento estudantil

 

Fabio Scorsolini-Comin1; Carmen Silvia Gabriel2

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
(Manoel de Barros, in Aprendimentos).

O acolhimento estudantil vem se transformando em uma das demandas mais urgentes no campo da experiência universitária. As universidades públicas têm assumido o pioneirismo em relação a essa temática, no contexto brasileiro. Mas como as universidades têm se posicionado diante da necessidade de incluir o acolhimento para além de uma política educacional, e sim como um componente curricular?

Recentemente, o 5º Congresso de Graduação da Universidade de São Paulo, ocorrido em julho de 2019 no campus de Ribeirão Preto-SP, teve como tema principal a inovação curricular. Dentre as diversas discussões acerca desse componente inovador, assuntos como as novas tecnologias digitais da informação e da comunicação ganham destaque em um cenário cada vez mais interativo e permeado pela cibercultura. As aproximações com os cenários da prática, representadas com o uso de simuladores e de estratégias didáticas que aliam teoria e prática despontam não apenas como realidades, mas como demandas para se pensar o ensino superior.

De que modo os docentes podem estar alinhados a essas inovações, por exemplo? Como a Universidade pode se aproximar da sociedade, não apenas mostrando os resultados de seus estudos e pesquisas, mas possibilitando, efetivamente, o emprego dessas evidências para a melhoria da vida das pessoas? Essas têm sido apontadas como questões centrais para a Universidade contemporaneamente.

Nesse cenário cada vez mais multifacetado e hiperconectado, abre-se espaço, então, para questionarmos: o que, de fato, é inovador quando tratamos do ensino superior? A despeito de algumas respostas já anunciadas na apresentação deste artigo, abrimos espaço para outras considerações menos tradicionais e mais emergentes em nosso contexto.

Assim, os componentes considerados inovadores têm se aberto para pensar para além das metodologias disponíveis que inovem o ensino-aprendizagem e se adaptem aos novos desafios tecnológicos e profissionais. Nesse sentido, é importante refletir acerca do mundo universitário e de como os estudantes têm experienciado essa fase da vida educacional, cabendo aqui um tópico para realização de estudos e intervenções que possam apoiar o estudante no que tange a vencer os desafios da nova realidade da vida universitária, alinhando-se ao que concebemos como acolhimento estudantil. Muitas dessas intervenções são desenvolvidas em grupos, operando a necessidade de investirmos em ações mais coletivas, dialógicas, colaborativas e que recuperem no estudante o sentido do encontro, do pertencimento, da troca de experiências e de apoio (Rossato & Scorsolini-Comin, 2019; Souza & Scorsolini-Comin, 2017). Pensar no acolhimento vem se mostrando algo inovador por justamente questionar os posicionamentos, os lugares e os sentidos que os processos de ensino-aprendizagem podem ter na contemporaneidade, reaproximando a Universidade de seu contexto de inserção, a comunidade.

No sentido de atender esta premente demanda, a Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo tem trabalhado o acolhimento estudantil como componente curricular. Dentre as diversas estratégias já sedimentadas na instituição e que estão alinhadas aos pressupostos do acolhimento, destacamos: o acompanhamento realizado pelas Comissões coordenadoras de Curso e pela Comissão de Graduação para aqueles alunos que apresentam uma determinada demanda considerada atípica, tais como numerosas reprovações, trancamento de matrícula, dificuldades de permanência na instituição, dentre outras. Para além disso, a instituição tem oportunizado diferentes espaços que visam a pensar sobre o acolhimento e como inovar e ampliar as estratégias já existentes, destacando-se aqui a criação de um comitê de acolhimento estudantil, que tem buscado fortalecer ações já existentes e estimular novas abordagens para o acolhimento.

Tendo em vista que o atendimento às demandas de promoção de saúde mental dos estudantes foi considerado como um dos importantes pilares do acolhimento, no ano de 2019 teve início o programa de apoio psicológico ofertado pelo Centro de Psicologia da Saúde da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, grupo que conta com a participação de psicoterapeutas que, sob a supervisão de um docente com formação em Psicologia, tem atendido os graduandos dos cursos de Bacharelado em Enfermagem e de Bacharelado e Licenciatura em Enfermagem da EERP-USP. Esses atendimentos ocorrem no formato de psicoterapia, na modalidade breve, de cinco a seis encontros. A partir da avaliação desse percurso, opta-se pelo encerramento dos atendimentos ou, como vem se mostrando, a continuidade do processo em uma psicoterapia tradicional. Em termos das abordagens psicológicas, há a abertura para diferentes epistemologias, a partir da formação clínica dos psicoterapeutas participantes.

Os atendimentos psicológicos têm se mostrado importantes, tendo em vista os diversos conflitos que podem emergir no ensino superior. Os estudos científicos desenvolvidos com a população universitária têm produzido diversas evidências que apresentam a vivência no ensino superior como um marco desenvolvimental que pode vir acompanhado de forte sofrimento emocional (Dázio, Zago, & Fava, 2016; Paro & Bittencourt, 2013; Robazzi, 2019).

Outro destaque em relação às novas estratégias criadas pela instituição é o Programa de Tutoria, criado em 2019, voltado inicialmente aos alunos de graduação do primeiro ano. A estratégia é priorizar o acolhimento a essas estudantes no momento da transição do ensino médio para a Universidade, o que vem sendo relatado pela literatura científica como um momento de forte estresse, mobilizando sentimentos relacionados à escolha profissional, à possível mudança de cidade e afastamento da família e da rede de apoio mais imediata, ao ritmo de estudos da Universidade e às diversas transformações oportunizadas por essa transição, que também acompanham os processos de desenvolvimento desses jovens adultos, em sua maioria. Assim, não se trata apenas da transição para a Universidade, mas a possibilidade de que essa etapa coincida também com o processo de transição da adolescência para a vida adulta, o que pode repercutir em diferentes necessidades e desafios (Oliveira, Pinto, & Souza, 2003; Teixeira, Dias, Wottrich, & Oliveira, 2008).

Os programas de tutoria são largamente descritos na literatura científica, em diferentes cursos de graduação, sobretudo os da área da saúde (Detsky & Baerlocher, 2007; Ramani, Gruppen, & Kachur, 2006; Sim-Sim et al., 2013; Tobin, 2004; Topping, Miller, Thurston, McGavock, & & Conlin, 2011). No caso em tela, de graduando da área de Enfermagem, a tutoria tem como objetivo acompanhar os estudantes, em pequenos grupos, ao longo de um semestre. No piloto deste projeto, cada pequeno grupo é acompanhado por um docente do curso, sendo que as atividades desenvolvidas são planejadas e desenvolvidas por cada grupo de modo independente, ou seja, as ações ocorrem centradas nas necessidades e desejos de cada equipe, oportunizando a construção de estratégias alinhadas às demandas e características de cada grupo, em parceria com o tutor.

A proposta de acompanhamento ao longo do semestre visa a possibilitar a emergência de diferentes necessidades que poderão ser acolhidas nesse espaço, a depender das negociações entre acadêmicos e tutor. Como um espaço interativo que não visa, necessariamente, à transmissão de conhecimentos, como em uma disciplina regular, esse espaço permanece aberto a diferentes estratégias e ações que possam ser consideradas significativas por cada grupo.

A Liga Acadêmica de Acolhimento Estudantil da EERP-USP, criada em 2019, também faz parte das ações de acolhimento, tratando-se de um grupo formado por graduandos dos cursos de Enfermagem, juntamente com um aluno da pós-graduação, sob a coordenação de um docente do curso. Este grupo tem se articulado na promoção de ações de acolhimento como palestras sobre saúde mental, a respeito do manejo de determinadas ferramentas úteis no curso de Enfermagem, bem como estratégias para ampliar o acolhimento estudantil, sobretudo no momento da transição para a Universidade, considerado potencialmente estressor devido às diversas mudanças operadas na vida do agora universitário.

Por fim, é importante destacar que o acolhimento estudantil pode assumir diferentes sentidos dentro da Universidade. Assim, o acolhimento não precisa se limitar à oferta de serviços de saúde, entre eles os da Psicologia e da Psiquiatria, por exemplo, o que sugeriria um fortalecimento do modelo biomédico e da perspectiva medicalizante. O acolhimento pode ser ampliado para diferentes ações como, por exemplo, as de caráter mais acadêmico, como a ajuda para organização de horários e calendários de provas, além de apoio para conhecer e pensar em estratégias de lazer, de conhecer e aderir a instituições universitárias, como ligas acadêmicas, atléticas e projetos relacionados à música, arte, cultura e esporte, entre diversas outras possibilidades. Cada instituição pode desenvolver os próprios programas a partir das suas necessidades, das suas potencialidades e, principalmente, tendo em vista o perfil dos seus estudantes. O importante é reafirmar o compromisso da Universidade com o acolhimento estudantil, tanto no sentido de um componente curricular como de uma ação inovadora.

Concluindo, recomenda-se que as Universidades possam se lançar no desafio de pensar o acolhimento de modo mais amplo, não medicalizante e com foco em estratégias de promoção de saúde e de bem-estar. Quando a experiência universitária é costurada por diferentes interlocutores imbuídos e alinhados às estratégias de acolhimento, o que envolve atores como docentes, funcionários e os próprios alunos, o acolhimento estudantil deixa de ser um local a ser atingido ou ocupado, ou mesmo uma meta definida institucionalmente ou por meio de uma política educacional, e passa a ser uma atitude que pode e deve ser fomentada perenemente nos mais diversos cenários da Universidade. A instituição, nesse sentido, torna-se acolhedora, o que se reflete no modo como esse compromisso é assumido enquanto um componente curricular a ser corporificado.

Desse modo, este artigo reafirma o seu endereçamento para que o acolhimento possa ser pensado como uma atitude. A atitude de acolhimento deve estar no docente que pode criar estratégias mais apoiadoras a alunos com alguma dificuldade, pode estar no olhar mais atento dos colegas de curso para expressões comportamentais de alguns alunos, pode estar no modo como os funcionários demonstram estar preocupados com o bem-estar de todos. Quando o acolhimento se torna uma atitude para com o outro, podemos falar, de fato, em cuidado. Assim, promover o acolhimento passa a ser, de fato, a promoção de um cuidado. Quando as instituições de ensino superior corporificam esses pressupostos, opera-se, de fato, a inovação.

 

Referências

Dázio, E. M. R., Zago, M. M. F., & Fava, S. M. C. L. (2016). Uso de álcool e outras drogas entre universitários do sexo masculino e seus significados. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 50(5), 785-791.         [ Links ]

Detsky, A. S., & Baerlocher, M. O. (2007). Academic Mentoring – How to give it and how to get it. JAMA, 297, 2134-2136.         [ Links ]

Oliveira, M. C. S. L., Pinto, R. G., & Souza, A. S. (2003). Perspectivas de futuro entre adolescentes: universidade, trabalho e relacionamentos na transição para a vida adulta. Temas em Psicologia (Ribeirão Preto), 11(1), 16-27.         [ Links ]

Paro, C. A., & Bittencourt, Z. L. C. (2013). Qualidade de vida de graduandos da área da saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, 37(3), 365-375.         [ Links ]

Robazzi, M. L. (2019). Promoção da saúde física e mental e de bem-estar no ambiente universitário. SMAD – Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, 15(2), 1-3.         [ Links ]

Rossato, L., & Scorsolini-Comin, F. (2019). Chega mais: o grupo reflexivo como espaço de acolhimento para ingressantes no ensino superior. Revista da SPAGESP, 20(1), 1-8.         [ Links ]

Sim-Sim, M. et al. (2013). Tutoria: perspectiva de estudantes e professores de enfermagem. Revista Iberoamericana de Educación Superior, 4(11), 45-59.         [ Links ]

Souza, L. V., & Scorsolini-Comin, F. (2017). Aprendizagem colaborativa no ensino superior: experiências costuradas pelo diálogo. In M. Grandesso (Org.), Práticas colaborativas e dialógicas em distintos contextos e populações: um diálogo entre teoria e práticas (pp. 655-671). Curitiba: CRV.         [ Links ]

Teixeira, M. A. P., Dias, A. C. G., Wottrich, S. H., & Oliveira, A. M. (2008). Adaptação à universidade em jovens calouros. Psicologia Escolar e Educacional, 12(1), 185-202.         [ Links ]

Tobin, M. J. (2004). Mentoring: seven rols and some specifs. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, 170, 114-117.         [ Links ]

Topping, K., Miller, D., Thurston, A., McGavock, K., & Conlin, N. (2011). Peer tutoring in reading in Scotland: thinking big. Literacy, 45(1), 3-9.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin
E-mail: abio.scorsolini@usp.br

Carmen Silvia Gabriel
E-mail: cgabriel@eerp.usp.br

 

 

1 Docente do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Comitê de Acolhimento Estudantil da mesma instituição. Editor chefe da Revista da SPAGESP.
2 Docente do Departamento de Enfermagem Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Presidente da Comissão de Graduação da EERP-USP e do Comitê de Acolhimento Estudantil da mesma instituição.

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