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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.20 no.2 Ribeirão Preto July/Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Filhos da parentalidade tardia: Infância e adolescência

 

Children of late parenting: childhood and adolescence

 

Hijos de la parentalidad tardía: infancia y adolescencia

 

 

Paula Navarro1; Terezinha Féres-Carneiro2; Renata Mello3

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo investigar a repercussão da parentalidade tardia na infância e adolescência dos filhos, sob a percepção dos mesmos. Foram realizadas entrevistas com seis sujeitos, entre 25 e 29 anos, sem filhos, que nasceram quando ao menos um de seus pais tinha mais de 40 anos. A partir da análise de conteúdo do material obtido, emergiram as categorias: convivência familiar; desencontros geracionais; liberdade e autonomia; e conflitos. Concluiu-se que, por um lado, os filhos da parentalidade tardia valorizam a história de vida dos pais, atribuindo, inclusive, aspectos positivos; por outro, reconhecem que a diferença geracional pode se traduzir em conflitos e distância afetiva, além disto, em dificuldade de compreensão cultural e em práticas educativas distintas da atualidade.

Palavras-chave: Parentalidade; Infância; Adolescência; Relações familiares.


ABSTRACT

This study aimed to investigate the repercussion of late parenting in childhood and adolescence under the perception of late children. Interviews were conducted with six subjects with ages between 25 and 29 years old, without children, who were born when at least one of their parents is over 40 years old. From the content analysis of the material obtained, emerged as categories: family coexistence; generational mismatches; freedom and autonomy; and conflicts. It was concluded that, on the one hand, the children of late parenting value a life history of the parents, attributing even positive points; on the other hand, recognize that the generational difference can be translated into conflicts and affective distance, in addition, in difficulty of cultural understanding and in educational practices different from the present time.

Keywords: Parenting; Childhood; Adolescence; Family relations.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo investigar la repercusión de la parentalidad tardía en la infancia y adolescencia de los hijos, bajo la percepción de los mismos. Se realizaron entrevistas con seis sujetos, entre 25 y 29 años, sin hijos, que nacieron cuando al menos uno de sus padres tenia más de 40 años. A partir del análisis de contenido del material obtenido, emergieron como categorías: convivencia familiar; desencuentros generacionales; libertad y autonomía; y conflictos. Se concluyó que, por un lado, los hijos de la parentalidad tardía valoran una historia de vida de los padres, atribuyendo, incluso, aspectos positivos; por otro, reconocen que la diferencia generacional puede traducirse en conflictos y distancia afectiva, además, en dificultad de comprensión cultural y en prácticas educativas distintas de la actualidad.

Palabras clave: Parentalidad; Infancia; Adolescencia; Relaciones familiares.


 

 

Na sociedade contemporânea, vem sendo cada vez mais comum que os casais adiem o projeto parental, muitas vezes, fundamentados na "parentalidade consciente", ou seja, optam por tornarem-se pais a partir da disposição de um conjunto de recursos materiais, psicológicos e sociais (Bernardi, 2018; Fidelis, Falcke, & Mosman, 2018; Leal & Pereira, 2005). Em um estudo com primíparas tardias, Carolan (2005) observa outros fatores que contribuem para esse fenômeno, como o contexto socioeconômico-cultural, o impacto do nascimento do filho na carreira, a falta de estabilidade financeira dos mais jovens e o desejo de permanecer em liberdade. São razões que também podem justificar a escolha de homens por adiar a parentalidade. Além disso, outro fator que contribui para o maior número de pais mais velhos na atualidade é a retomada do projeto parental no mesmo casal conjugal ou em recasamentos.

Historicamente, o lugar da maternidade e da paternidade sofreu mudanças no cenário familiar e, da mesma forma, foi ressignificado o espaço da criança nele. Os deslocamentos de lugares e funções, assim como a determinação de um espaço privilegiado no que diz respeito à criança, têm implicações na trama familiar e afetiva que se desenrola entre os indivíduos do grupo, de forma que a família se torna um lugar de circulação de afeto (Passos, 2015). Sob a lógica capitalista e com a globalização, ao final do século XX, surgem as novas configurações familiares, flexíveis e descontínuas, características da família contemporânea. A conjugalidade perdeu a característica da indissolubilidade e as relações amorosas se tornaram efêmeras, superficiais e descartáveis, com busca por liberdade e priorização de um certo hedonismo (Féres-Carneiro & Magalhães, 2011).

Ponciano (2015) explica que a influência do individualismo levou a uma relação parento-filial paradoxal, em função da autonomia adquirida pelos filhos. Essa ideologia traz a valorização do sujeito psicológico, independentemente da sua posição na família, de forma que o relacionamento entre pais e filhos também se torna mais fluido, o que transforma a intimidade e aproxima tais vínculos. Não havendo rigidez na divisão de papéis e responsabilidades na família, as decisões passam a ser tomadas em conjunto, relativizando a autoridade paterna, que ganha circulação e transforma o poder imposto em poder negociado.

Araújo (2009) enfatiza que a adoção de práticas educativas democráticas não está associada ao abandono da autoridade, e sim à negociação, ao diálogo e ao respeito mútuo na interação entre pais e filhos. Dessa forma, a resolução dos conflitos e divergências se dá a partir do diálogo, de maneira que cada membro familiar possa exercer seu poder de argumentação, liberdade e individualidade. Para Vasconcelos e Souza (2006), as práticas educativas diante dos conflitos podem ser coercitivas ou não coercitivas, mas ambas possuem a finalidade de comunicar à criança o desejo dos pais de que ela os obedeça. Entre essas encontra-se o diálogo, que tem como objetivo atentar para os aspectos lógicos da situação em questão, como conversar sobre o comportamento dos filhos e suas consequências; dentre aquelas, encontram-se a punição verbal, ameaça de punição, privação ou castigo, coação e punição física. Cecconello, De Antoni e Koller (2003) ressaltam, no entanto, que com as recentes modificações nas relações intrafamiliares, comportamentos que antes eram esperados e culturalmente aceitos, tal como a utilização de punição física na educação das crianças, são, hoje, coibidos inclusive na lei.

Reichert e Wagner (2007) enfatizam a importância do desenvolvimento da autonomia na adolescência e explicam que as práticas educativas podem facilitar ou dificultar a aquisição desta competência. As autoras ressaltam, ainda, que o caminho para se tornar autônomo, envolve transformações no âmbito familiar, que podem gerar também dificuldade ou resistência nos pais de aceitarem esse processo. Barbosa, Neumann, Alves, Teixeira e Wagner (2017) salientam que os adolescentes podem oscilar entre momentos nos quais desejam assumir o protagonismo de suas vidas e momentos de dependência, nos quais possam contar com o acolhimento dos pais. Segundo Andrada e Irigonhe (2008), o equilíbrio entre a proteção excessiva e a falta de cuidado familiar deve existir em um ambiente seguro para o desenvolvimento dos filhos, favorecendo que o indivíduo consiga se diferenciar e ter relações sociais mais adaptativas.

Todavia, o processo de diferenciação na família não é uma tarefa simples. Bowen (1991) evidencia o medo do abandono e da absorção (ansiedade de separação e de incorporação) nos membros familiares integrantes dos sistemas emaranhados, ou seja, em que as fronteiras não são bem delimitadas, podendo acionar mecanismos de defesa, como a triangulação. Assim, o autor identifica duas variáveis que exercem influência sobre o sistema emocional humano: a diferenciação do self e a ansiedade (Bowen, 1989). O fenômeno da triangulação pode gerar ansiedade, mas pode também equilibrar o estresse na relação. O padrão de funcionamento de um triângulo é o mesmo em todo sistema emocional: quanto mais baixo o nível de diferenciação e quanto mais importante a relação, mais intensos os padrões; em níveis mais elevados de diferenciação e em relações mais periféricas, os padrões ficam menos intensos.

De acordo com Minuchin (1990), a triangulação é como uma tríade inflexível que desafia os limites das fronteiras. O autor define as díades como subsistemas: mãe-filho, pai-filho e mãe-pai e afirma que, em famílias disfuncionais, as fronteiras entre os subsistemas parental e filial encontram-se difusas de forma que a fronteira que abrange a tríade pais-filho adquire uma rigidez inadequada. Seria, então, necessário redefinir as fronteiras e as hierarquias geracionais para que o sistema se flexibilize. Assim, a triangulação deve ser considerada como o resultado da escassez de fronteiras demarcadas.

Para Bowen (1991), esse fenômeno ocorre pelo fato de a díade experimentar desejos e necessidades que o outro não satisfaz. Dessa forma, na tentativa de amenizar o desconforto, o indivíduo pode afastar-se e buscar um terceiro indivíduo para absorver sua ansiedade, aliviando sua tensão, ou aproximar-se e aceitar o controle do outro através de suas exigências. Em ambos os casos, não há o enfrentamento das dificuldades e a compreensão das diferenças. São ciclos de aproximação e distanciamento que acontecem no par conjugal devido a` incapacidade de lidar com as ansiedades e as tensões geradas, tanto pelo medo de ser absorvido pelo cônjuge na falta de limites, quanto pela ansiedade de separação, por se distanciarem excessivamente. Assim, quando a ansiedade se torna intensa e o casal não encontra recursos para superá-la, ela é repassada para os filhos.

No âmbito do conflito conjugal, é importante considerá-lo também enquanto ambiente do desenvolvimento dos filhos e o possível envolvimento dos mesmos. Winnicott (2005) ressalta que as condições ambientais são condicionais para a experiência de um ser total, social, pertencente a` comunidade e preservado em sua autonomia. Para Palermo, Magalhães, Féres-Carneiro e Machado (2016), o ambiente conjugal dos pais é parte do ambiente facilitador do processo de maturação do filho, de tal forma que uma conjugalidade psiquicamente precária repercute sobre a parentalidade, interferindo na construção do sentido de existência do filho. As autoras explicam que as crianças que passam por desafios na interação com pais inseguros ou angustiados, muitas vezes, têm dificuldade no contato com a realidade externa, podendo representar, em termos winnicottianos, uma ameaça "da perda da capacidade de se relacionar" (Winnicott, 1990), ligada ao conflito entre a busca do amor e a necessidade de manter algum isolamento.

Em consonância, Dolto (1988) ressalta ser inevitável a vivência de ameaça na coesão psíquica da criança que percebe o conflito vivido entre os pais. Quando a criança não é capaz de distinguir os compromissos recíprocos da relação conjugal dos pais e os compromissos parentais, surgem sentimentos de desamparo e angústia. Bowlby (2002) postula que a preocupação da criança com a sua segurança emocional, diante das situações conflituosas, exerce influência sobre a regulação de suas emoções e sobre a maneira como enfrenta o episódio, o que, por sua vez, interfere no seu bem-estar emocional e nas relações que irá estabelecer no futuro.

Por outro lado, Benetti (2006), Cummings e Davies (2011), e Cummings, Goeke-Morey e Papp (2016) pontuam que os conflitos conjugais podem constituir um aspecto positivo no processo de desenvolvimento infantil, em termos de amadurecimento emocional e cognitivo, quando as crianças percebem que os adultos são capazes de discordar e superar as dificuldades encontradas. Os efeitos negativos dos conflitos estariam relacionados a determinadas características como frequência, intensidade, conteúdo, e forma de resolução dos conflitos. Para Bolze, Schimdt, Böing e Crepaldi (2017), o conflito conjugal na presença da criança pode afetá-la de forma direta, isto é, pela própria exposição em si e por servir como um modelo de resolução de problemas; ou, de forma indireta, comprometendo a relação entre pais e filhos e gerando mudanças nas práticas parentais.

Raposo et al. (2011) ressaltam que quando os problemas conjugais afetam a parentalidade, o funcionamento psicológico da criança pode ser afetado. Ainda, esses conflitos podem interferir na qualidade do comportamento parental e, estando as crianças envolvidas, pode ocorrer uma deterioração do relacionamento pais e filhos. Féres-Carneiro, Mello, Machado e Magalhães (2017) postulam que a comunicação entre os membros da família é um fator de extrema importância na determinação da saúde emocional do grupo. Dessa forma, o subsistema conjugal pode, a partir de sua interação, repercutir no desenvolvimento emocional de todos os membros da família, fomentando a criatividade e o crescimento de todos os membros, ou estabelecendo padrões comportamentais dificultadores desse processo.

Os filhos da parentalidade tardia convivem com pais mais velhos desde seu nascimento. Como postulado por Bowlby (2004), o medo da morte dos pais está relacionado com o sentimento de vulnerabilidade e ameaça de abandono – angústia de separação, que possivelmente estará presente desde muito cedo nos filhos tardios. Nesse sentido, Bucher-Maluschke (2008) afirma que as vivências de cada geração têm importante repercussão para a compreensão das questões intergeracionais e transgeracionais.

Brown (1995) entende que o movimento desenvolvimental em um sistema inclui tanto crises normativas quanto eventos situacionais que interrompem o processo de ciclo vital familiar. Já o movimento transgeracional implica em padrões de funcionamento e relacionamento, fundamentados nas experiências familiares anteriores, transmitidos ao longo das gerações. Dessa forma, o estudo das transmissões psíquicas implica na compreensão dos modelos familiares e sociais experimentados historicamente. Esses modelos exercem forças invisíveis que mobilizam as pessoas a partir de fenômenos de lealdades, valores, mitos, ritos e legados (Boszormenyi-Nagy & Spark, 2014; Boszormenyi-Nagy & Krasner, 1986). Cabe sublinhar que esses padrões podem não apenas ser repetidos, mas também contrariados ou transformados.

Kaës (1998) diferencia as possibilidades de transmissões psíquicas, que podem ocorrer pela transmissão intergeracional ou transgeracional. Na primeira, o sujeito tem a capacidade de transformar a sua herança, o que garante a historização do sujeito, a nomeação e a filiação. As gerações se mantêm interligadas, respeitando a posição individual de cada membro da família e dando lugar à elaboração e transformação simbólica. Na segunda, são transmitidas ao sujeito marcas da ordem de um trauma não elaborado, do não dito de uma história, cuja repetição será imposta. O autor ressalta ainda que a família apresenta um duplo eixo estruturante: o horizontal oferece suporte ao sujeito por meio das identificações mútuas com seus pares e o vertical, da filiação e das afiliações, inscreve o sujeito na sucessão de movimentos de vida e de morte no percurso das gerações.

Sobre a família no estágio tardio da vida, Walsh (1995) explica que a percepção sobre idosos é, normalmente, estereotipada, sendo visto como à margem da sociedade, sem família ou em fuga da mesma, com contatos pouco frequentes, obrigatórios e conflituosos. Araújo, Jefferson e Santos (2018) apontam a prevalência de diversas representações sociais do idoso, de um lado, ativo, próximo, necessitando de vida longa com os familiares; de outro, velho, precisando de cuidados e com dependência aprendida. Walsh (1995) diz ainda que o bom funcionamento das famílias nesse momento depende de flexibilidade na sua estrutura, papéis e respostas às novas necessidades e aos desafios desenvolvimentais, pois padrões que funcionavam anteriormente podem não ser mais adequados. A presença de sentimento de orgulho pela idade, história e experiência de vida, e capacidade de lidar com as mudanças são fatores essenciais nessa fase.

Na parentalidade tardia, pode ocorrer uma falta de complementariedade quando as necessidades desenvolvimentais forem incompatíveis com os estágios do ciclo vital de cada membro familiar. Por exemplo, pais envelhecendo e se deparando com a deterioração da saúde e finitude, e filhos enfrentando questões de separação, identidade e comprometimento (Walsh, 1995).

Kessler e Staudinger (2007) defendem que a relação entre netos e avós é especialmente importante na adolescência, em que a busca pela identidade induz os jovens a pesquisar o passado, sendo os avós uma ponte direta para as histórias sobre suas origens. Spira e Wall (2006) ressaltam que quando os avós desempenham um importante papel na vida dos jovens, a ameaça e o medo da morte parecem acompanhar-lhes durante a vida, como uma ansiedade antecipatória sobre as possíveis perdas futuras. Os autores pontuam, ainda, que os netos podem sentir-se culpados de exercerem a própria liberdade, adiando os seus planos que exigiriam redirecionamento de atenção e de recursos.

Assim, com o aumento da parentalidade tardia na sociedade contemporânea, torna-se importante conhecer suas repercussões. Aspectos da relação parento-filial, da convivência no sistema familiar e social e do desenvolvimento infanto-juvenil poderiam ser afetados por esse contexto? Na tentativa de responder a essas indagações, o presente estudo tem como objetivo investigar a repercussão da parentalidade tardia na infância e adolescência dos filhos, sob a percepção destes.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo três homens e três mulheres, entre 25 e 29 anos, sendo dois casados e quatro solteiros, sem filhos, que nasceram quando pelo menos um de seus pais tinha mais de 40 anos.

Procedimentos

A pesquisa foi realizada a partir de uma metodologia qualitativa, centrada em entrevista semiestruturada, que contemplou temas relevantes concernentes às vivências e repercussões da parentalidade tardia na vida dos filhos, sob a perspectiva destes.

As entrevistas foram efetuadas individualmente, em local eleito pelos participantes, e tiveram duração média de cinquenta minutos. Essas foram gravadas, transcritas na íntegra e analisadas pelo método de análise de conteúdo temática (Bardin, 2011), aquele que consiste em organizar e agrupar as mensagens em categorias. Estabeleceram-se então núcleos de sentido, organizados a partir da frequência e da semelhança entre os dados significativos contidos no material coletado, que possibilitaram sua discussão com a literatura sobre o tema.

O projeto que deu origem à pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-Rio, cujo Parecer tem o número 008M/2017. Todos os participantes foram identificados por código de letras e números a fim de lhes preservar a identidade e assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, que explica o objetivo da entrevista e seus procedimentos, permitindo a utilização dos dados em pesquisa e publicação.

 

Resultados e Discussão

Das entrevistas realizadas emergiram várias categorias de análise, porém, tendo em vista os objetivos deste trabalho, nele serão apresentadas e discutidas as seguintes categorias: convivência familiar; desencontros geracionais; liberdade e autonomia; conflitos. Para a apresentação dos resultados, os participantes foram nomeados, após as falas, como M (masculino) e F (feminino) e numerados de 1 a 3, tendo suas idades indicadas.

Conveniência Familiar

Mais da metade dos entrevistados relata que na infância e adolescência tinha maior convívio familiar do que interação com os amigos de sua idade, o que indica um maior foco no grupo familiar do que o olhar mais individualizado e de destaque das crianças.

"Até os meus 15, 16 anos, todas as minhas férias eram em C. (cidade de origem materna). Todas, todas. Acabava minha aula em dezembro e no dia seguinte a gente já tava embarcando." (M1, 26 anos)

"Final de semana era muito em função do que meu pai queria fazer. (…) eu sentia falta de ter convívio com outras pessoas e crianças, e depois jovens, e tal. Os meus pais nunca gostavam de chamar ninguém." (F2, 28 anos)

"No colégio, a gente tava de férias, a gente ia direto para o sítio e ficava lá. (...) minha adolescência foi tardia, porque quando todo mundo já tava indo para shopping com os amigos, para cinema, eu tava indo com a minha família para o sitio, sabe?" (M3, 25 anos)

"(...) eu ficava muito em casa com a minha mãe só." (F3, 26 anos)

Esses relatos parecem ir de encontro ao que preconiza o individualismo enquanto valorização do sujeito psicológico, incluindo também nessa equação as crianças que, desde a família moderna, ocupam lugar central na vida familiar (Passos, 2015; Ponciano, 2015). Por outro lado, em relação aos pais, estas falas estão de acordo com a tendência contemporânea à priorização da busca pelo prazer (Féres-Carneiro & Magalhães, 2011).

Os mesmos entrevistados afirmam que se sentiam muito maduros para a idade.

"Comecei até a ir ao psicólogo aos 7 anos e eu lembro que ela falou assim, na primeira sessão, falou lá para minha mãe 'essa menina parece um adulto conversando, então deixa ela ser criança'." (F3, 26 anos)

"Eu via meus amigos e falava 'cara, eles são tão infantis'. Eu me sentia, pode ser prepotente, mas eu me sentia muito mais maduro do que os meus amigos." (M3, 25 anos)

Esse sentimento pode se justificar na maior convivência com membros adultos da família, pois o aparelho psíquico constitui-se não apenas da sua estrutura intrapsíquica, mas é também produto da intersubjetividade e da transmissão intergeracional, que produz funções compatíveis com as demandas próprias do amadurecimento dos sujeitos com que a criança se relaciona (Kaës, 1998). Por outro lado, os pais de dois entrevistados demonstravam não conceder crédito à fala dos filhos.

"Meu pai sempre me pediu muito 'olha só, você só pode falar, nessas discussões de família, só pode falar quando você tiver 35 anos, porque antes disso só fala besteira', tinha muito disso." (M2, 29 anos)

"Ele falava 'moleque, o que você sabe disso?'" (M1, 26 anos)

Esses relatos, mais uma vez, reforçam a possibilidade de essas famílias estarem na contramão da tendência de valorização do sujeito psicológico, independentemente da sua posição na família, e do espaço privilegiado da criança (Passos, 2015; Ponciano, 2015).

Filhos da parentalidade tardia, muitas vezes, não têm oportunidade de conviver com seus avós, ou até o fazem, mas por tempo reduzido, e relatam a importância da lembrança do afeto sentido e do prazer de ouvir sobre as histórias dos avós na fala de seus pais.

"Eu sempre gostei de ouvir as histórias dele. (...) Não só as histórias dele, mas as histórias da época do meu avô que eu não conheci." (M1, 26 anos)

"Eu sinto muita falta de não ter conhecido eles (...) As histórias que eu ouço muito, do meu avô materno e minha avó, são histórias muito boas, de muito amor, histórias lindas que eu choro ouvindo. (...) Eu conheci minha avó, mas eu não lembro muito dela (...) mas eu lembro de muito amor entre a gente." (M3, 25 anos)

"Eu era muito ligada ao pai da minha mãe, meu vô, e ele foi a primeira pessoa que eu perdi na minha vida, então foi... sei lá, inexplicável." (F1, 25 anos)

Outro entrevistado conta, ainda, sobre a participação muito ativa da avó nos cuidados com ele.

"Ela que cuidava de mim, fazia as comidas. Minha mãe trabalhava muito em casa, a casa era grande, então ela era mais atarefada e minha avó que me recebia quando eu chegava do colégio, que dava meu almoço, colocava para dormir, esse tipo de coisa, me acordava.. ." (M2, 29 anos)

Na convivência familiar, os avós ocupam um importante papel, não apenas como rede de apoio, mas pelo simples fato de constituírem a trama intergeracional que sustenta o sentimento de continuidade no tempo, consolidando os valores e proporcionando confiança sobre o próprio futuro dos netos (Kessler & Staudinger, 2007). Sendo assim, é possível que a provável ausência dos avós, seja ela absoluta ou apenas precoce na vida dos filhos da parentalidade tardia, traga impactos na estrutura subjetiva desses sujeitos em desenvolvimento.

O inevitável declínio de saúde dos idosos mobiliza os membros da família, que redireciona suas forças para atender às necessidades dos mais velhos, alterando o estilo de vida de todo o sistema familiar. Os papéis invertem-se e os filhos passam a tomar conta dos pais, podendo incluir também tarefas para os netos. Um dos entrevistados conta como a vida familiar girava em torno da avó quando ela já estava com a idade mais avançada.

"(...) a gente ia todo final de semana na casa dela e ela morava com a minha tia. (…) A priori era um dia, ou sábado ou domingo, mas ela foi ficando mais velha, mais doente, aí a gente ia sábado e domingo." (M1, 26 anos).

Para além dos avós, os entrevistados relatam uma vida muito marcada pela preocupação com a saúde e por falecimentos de entes queridos. Um dos sujeitos da pesquisa comenta, inclusive, que os cuidados com seu padrinho, muitas vezes, foram de sua responsabilidade, voltando seu tempo e sua atenção para ele.

"Meu dindo já faleceu e tinha uns negócios, quando ele teve AVC, umas crises, era sempre comigo. Eu ficava muito tempo só eu e ele." (M3, 25 anos)

Percebe-se, nos dois últimos relatos, que a constante preocupação com a saúde dos avós e demais familiares coloca os possíveis desejos desses jovens em segundo plano, para que possam redirecionar a atenção para o ente que precisa de cuidados (Spira & Wall, 2006).

Os filhos tardios, ao perceberem seus pais como mais velhos, podem reviver intensamente o sentimento tido em relação à perda ou à ameaça de perda dos demais membros familiares, ou mesmo inaugurá-lo, temendo a morte dos próprios pais (Spira & Wall, 2006). Três entrevistadas falam sobre a presença constante desse medo.

"Essa é uma questão de analise até hoje né (risos). Porque eu acho que eu sempre tive medo da morte dos meus pais. (...) Como se os dias estivessem contados, porque observando as diferenças dos pais dos coleguinhas, e dos meus pais, é como se meus pais sempre estivessem à beira da morte. (...) parece que cada vez que você olha, isso se torna mais real." (F3, 26 anos)

"Eu não gosto nem de pensar. Fico muito mal. Meu terapeuta sempre tenta falar disso e eu não consigo... esse dia não vai chegar." (F1, 25 anos)

"Por muito tempo a minha principal preocupação com ela foi o câncer (...) A partir do momento que ela desenvolveu aquilo, pra mim foi muito assustador a ideia de que um dia eu ia perder ela para aquela doença." (F2, 28 anos)

Diante desses relatos, fica clara a relação entre o medo da morte dos pais e o sentimento de vulnerabilidade e ameaça de abandono – angústia de separação (Bowlby, 2004). Assim, é possível que as transmissões intergeracionais nas famílias caracterizadas pela parentalidade tardia contenham a angústia de morte como um tema perseverante.

Desencontros Geracionais

A metade dos entrevistados atribui um valor positivo ao amadurecimento e experiência dos pais, exercendo forte influência sobre eles.

"Existe um amadurecimento, uma cabeça, que me deu muita base, me ensinou muita coisa. (...) Eu tenho uma imagem de pais novos de amigos meus que eu não gosto, sabe? E que não condiz com meus princípios." (M3, 25 anos)

"Ele (pai) falava assim 'eu tenho muito mais anos de vida que você, muito mais experiência de vida que você, ouça o que eu estou te dizendo, isso vai dar errado' (...) ele tem 50 anos a mais do que eu. Não são 30, 25 anos a mais. De fato, talvez ele tenha razão com os 50 anos de vida dele." (M1, 26 anos)

"Era uma relação mais de respeito, então eu ouvia muito ele. Eu tinha muita... não tinha muita opinião discordante com meu pai. (...) ele falou tá meio que resolvido, entendeu?" (M2, 29 anos)

A valorização da experiência de vida dos pais mais velhos, demonstradas nessas falas, é muito importante para a relação parento-filial, facilitando o bom funcionamento da família no estágio tardio da vida (Walsh, 1995). No sentido da compreensão das diferenças geracionais, alguns entrevistados relacionam as atitudes que observam de seus pais ao fato de pertencerem a outra geração, contexto em que ideias distintas prevaleciam.

"(...) ele (pai) dizia assim: quando eu estudei ciências sociais, eu estudei a função da família (…) o homem era o provedor, então ele trabalhava para conseguir o dinheiro para sustentar a casa. A mãe ficava responsável por cuidar da casa e dos filhos. Aquela coisa clássica, conservadora etc. e tal. Então, em casa sempre foi basicamente assim." (M1, 26 anos)

"Outra geração, aquela geração de bater na criança, enfim (...) E ai... nada justifica, mas apanhei muito de cinto, mas, cara, não tenho nenhuma recordação ruim disso, nenhum trauma." (M3, 25 anos)

Outros revelam ainda surpresa face a posturas que consideravam modernas diante da diferença geracional.

"(...) eu fiquei muito surpreso que eles, na geração que eles nasceram, que existe muita gente preconceituosa na idade deles, eles foram muito vanguardistas, sabe?" (M3, 25 anos)

A expectativa dos filhos tardios em relação ao comportamento de seus pais idosos parece contribuir tanto para a compreensão das "falhas" quanto para as surpresas positivas nas falas dos entrevistados em relação aos pais. Possivelmente, o contato da geração mais velha com a mais nova impulsione também esses pais a se renovarem e experimentarem novas formas de pensar, agir e sentir. Afinal, a transmissão dos saberes não é linear; ambas as gerações possuem seu saber e a troca pode proporcionar novas vivências, sendo possível renovar as opiniões e visões acerca do mundo e das pessoas.

Os relatos dos entrevistados evidenciam papéis familiares não bem delimitados, que se confundem pela idade/geração dos indivíduos.

"O meu pai, ele de vez em quando diz assim: eu não sou pai, eu sou pai-avô. (...) ele: 'não, porque, óbvio que sou pai, porque eu sou pai, mas eu digo que sou pai-avô porque eu to numa idade de ter netos, mas eu não tenho netos, eu tenho filhos'." (M1, 26 anos)

"Os irmãos eram meio que tios, né. (...) O mais próximo que eu tinha de irmão era o meu primo." (M2, 29 anos)

"(...) como se fosse minha irmã. Nossa diferença é de 3 meses (…) Tudo que ele (pai) fazia comigo, ele fazia com ela (minha sobrinha) também. Ai era aquele passeio com a neta e com a filha. Igualzinho." (F3, 26 anos)

Essa confusão geracional pode gerar dificuldades emocionais nos filhos que não distinguem e não reconhecem seu espaço no grupo familiar. Essa possibilidade fica bem evidente no relato de uma das entrevistadas.

"(...) para eu diferenciar esse lugar de filha e ao mesmo tempo tendo que lidar com os netos e os sobrinhos lá em casa, era muito complicado. (...) Meu irmão, tipo meu pai, né. Ele me levava sempre para passear e ai de repente chegou essa criança e a atenção se voltou para essa criança. Que era filho dele também, né. Eu era irmã, então é outro lugar. Ai eu ficava com muito ciúme. (...) Quando eu era criança, era muito difícil. Porque sempre ouvia dizer que neto é filho duas vezes e isso não descia, eu ficava muito irritada com isso." (F3, 26 anos)

Diante dessas falas, fica claro que na parentalidade tardia há um desencontro do ciclo vital "tradicional". Assim, as demandas desenvolvimentais de cada geração podem tornar-se incompatíveis e a falta de complementariedade comprometer também o relacionamento dos diferentes membros familiares (Walsh, 1995).

Independência e Autonomia

A liberdade de escolha esteve presente nas falas da metade dos entrevistados.

"(...) sempre tinha o motorista de lá e pra cá, mas tinha liberdade de ir, tinha minha mesada desde pequenininho." (M2, 29 anos)

"Ele também me dava muito menos limite: quer sair sozinha, sai; quer ficar no Rio sozinha e não ir pra Angra, fica. (...) e pra minha mãe, por ela, ela me colocava numa bolha. (risos). (...) Claro que eu, jovem, queria muito sair da bolha, então eu ia na linha do meu pai." (F2, 28 anos)

"Meu pai nunca teve isso não (risos). Liberal, totalmente. (...) Sempre foi tudo muito conversado, sabe. Acho que minha mãe nunca chegou muito impondo as coisas. (...) eu nunca senti como algo imposto, um limite (...)" (F3, 26 anos)

É possível reconhecer nesses relatos a democratização dessas famílias, não havendo uma imposição hierárquica dos pais para os filhos, mas sim proporcionando-lhes escolhas compatíveis com seu desenvolvimento (Araújo, 2009). As práticas educativas adotadas pelos pais podem facilitar ou dificultar a aquisição de autonomia enquanto capacidade de refletir sobre os seus atos, definir metas, tomar decisões e agir por conta própria (Reichert & Wagner, 2007).

Apesar de nas famílias contemporâneas ser comum os pais abrirem mão da posição superior, reconhecendo os filhos na sua individualidade, não se anula sua ascendência sobre os filhos, nem seu lugar de referência para construção da identidade dos mesmos. Os pais permanecem fonte de orientação, baseada no afeto e na compreensão mútua, e oferecem apoio emocional e financeiro, exercendo forte influência nas decisões dos filhos (Araújo, 2009; Ponciano, 2015).

Em outros casos, a independência foi um caminho a ser conquistado por alguns, traduzindo-se em conflitos com os pais.

"Por favor, me deem liberdade que eu odeio depender dos outros. Odeio, odeio. Prefiro eu fazer sozinho, vou ter 40x mais trabalho, não interessa, me dá, eu quero fazer, não quero depender." (M1, 26 anos)

"Até os meus 18 anos, minha mãe me controlava muito. (...) eu queria ter mais a minha independência, então teve muita briga. Minha mãe falava 'ah ele não quer falar' e sofria porque eu tava desgarrando." (M3, 25 anos)

Essa conquista foi associada, por um entrevistado, à maturidade, representada pela paciência e capacidade de ouvir.

"Minha mãe veio falar comigo 'eu não acho nada disso, não é um aniversário que vai dizer se você tem mais maturidade ou não, e você só vai continuar saindo de casa com a minha permissão' (…) depois eu fui criando paciência, foi quando de fato eu fui criar mais maturidade (...) passei a ouvir mais." (M1, 26 anos)

A busca pela autonomia na adolescência é um processo natural e importante para o desenvolvimento dos indivíduos, porém, como relatado, nem sempre se dá sem a resistência dos pais, que podem ter dificuldade de aceitar este processo que implica em transformações no âmbito familiar (Reichert & Wagner, 2007).

Ainda, a metade dos entrevistados identifica uma proteção excessiva que esbarrava na sua aquisição de liberdade e autonomia.

"(...) dependendo do nível de proteção, como foi e tal, pode acabar estragando." (M1, 26 anos)

"Pra minha mãe, por ela, ela me colocava numa bolha (risos) (...) Acho que se eu tivesse sido criada por dois pais no estilo dela, eu ia ser mais boba, assim, de ter não feito certas coisas que eu devia na vida, de independência e tal." (F2, 28 anos)

Encontrar o equilíbrio entre a proteção excessiva e a falta de cuidado configurou-se como um desafio para os pais desses sujeitos. É tarefa dos pais fornecer um ambiente seguro para o desenvolvimento sadio dos filhos, para que sejam capazes de se diferenciar, no sentido de separar-se emocionalmente da sua família de origem, tornando-se autônomo, como um ser total e social (Andrada & Irigonhe, 2008; Winnicott, 2005).

Conflitos

Sobre as práticas educativas adotadas nas famílias dos entrevistados para a resolução dos conflitos, a metade dos entrevistados mencionou a presença de práticas coercitivas, sendo que dois deles fizeram referência à punição física.

"A L. (esposa) diz que eu tenho a inscrição da lei muito forte em mim. Eu acho que isso se deve muito aos castigos que meus pais me deram." (M1, 26 anos)

"Meu pai nunca me bateu e minha mãe dava umas palmadas, mas quando ele brigava ele era muito grosso, mas 5 minutos depois ele vinha e falava "ai desculpa o seu pai", minha mãe não, minha mãe nunca pede desculpa pra nada." (F1, 25 anos)

"Eu apanhei muito dos meus pais. Tem gente que não concorda com isso hoje em dia. Realmente, acho que até eles não concordam com isso." (M3, 25 anos)

É importante ressaltar que apenas no primeiro dos relatos há a percepção de que a eleição da prática coercitiva deixou alguma marca na constituição do sujeito. Curiosamente, refere-se a castigos que não envolvem a punição física que, na contemporaneidade, é coibida inclusive por lei (Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003; Vasconcelos & Souza, 2006).

O envolvimento dos filhos nos conflitos conjugais dos pais esteve presente em mais da metade das entrevistas, seja na mediação ou como apoio emocional.

"Minha mãe vai querer me vender a versão dela e meu pai vai querer me vender a versão dele e eu acho o P. (irmão) muito mais sensato para saber qual dos dois está certo." (M1, 26 anos)

"Sempre fui colocado no meio das discussões entre pai e mãe: filho o que você acha disso? Eu ficava no meio, solicitavam minha opinião. (...) eu acabei aprendendo a ser meio em cima do muro, quando eu comecei a ficar esperto. Tipo, se eu falar isso, vai ter briga de um lado, vai ter briga do outro, então eu acabei ficando meio político aí." (M2, 29 anos)

"Contavam no sentido de desabafar, principalmente a minha mãe, que era mais próxima de mim de conversar (...) nunca do tipo 'entra aqui e diz quem tá certo'. Meu pai também desabafava no caso." (F2, 28 anos).

Essas falas retratam como os conflitos entre os membros do casal podem esbarrar no desenvolvimento emocional dos filhos, que têm a atenção e disponibilidade afetiva deslocada para atender às demandas, não necessariamente expressas, dos pais. Os entrevistados se viam envolvidos em uma competição por suporte e aliança, ou buscavam evitar essas situações, que inevitavelmente os deixariam em conflitos de lealdade (Boszormenyi-Nagy & Krasner, 1986; Boszormenyi-Nagy & Spark, 2014).

Nos relatos citados, também é possível perceber como pode ser difícil distinguir a relação conjugal da relação parental, pois o ambiente conjugal dos pais faz parte do ambiente facilitador do processo de maturação do filho (Palermo, Magalhães, Féres-Carneiro, & Machado, 2016). Quando os filhos percebem o conflito, desenvolvem recursos para evitar o sentimento de ameaça à sua própria coesão psíquica. Ficam claras as alternativas encontradas pelos entrevistados: tentar se retirar da situação conflituosa; e ser o apoio emocional de que o pai e a mãe necessitam, de forma a regular possíveis sentimentos de desamparo e angústia (Dolto, 1988).

O envolvimento desses entrevistados nos litígios dos pais pode interferir, inclusive, na qualidade do relacionamento parento-filial (Raposo et al., 2011). Ainda que, inicialmente, seja um processo estabilizador, bloqueia a comunicação efetiva entre os pais e revela a falta de limites geracionais e um sistema conjugal mal definido e disfuncional. A comunicação é fundamental na determinação da saúde emocional do sistema, de forma que o subsistema conjugal pode, a partir de sua interação, repercutir no desenvolvimento emocional de todos os membros da família (Féres-Carneiro, Mello, Machado, & Magalhães, 2017).

No relato dos entrevistados, a seguir, é notável uma ligação estreita entre o(a) filho(a) e um de seus pais, enquanto o outro ocupa uma posição solitária e distante.

"Eu sempre tive muita dificuldade de relacionamento com meu pai e com a minha mãe eu era muito apegada, era quase que ao contrário. A gente se dava muito bem, uma dupla e meu pai. Tanto eu como a minha mãe tínhamos muita dificuldade de relacionamento com ele (...) a partir do momento que eu nasci, o casamento deles acabou, sabe?" (F2, 28 anos)

"Ela (mãe) fala né: 'Não queria mais o seu pai, mas eu queria uma menina, ai eu tive uma menina e pude mandar ele embora feliz'. (...) ela se apegou a mim, a vida dela foi pra mim." (F3, 26 anos)

"Tenho muito orgulho do meu pai, eu sou... ele é o amor da minha vida. (...) Nunca vi meus pais muito como um homem e uma mulher, como uma casal. Sempre vi como pai e mãe. (...) Eu sei que minha mãe me ama, mas com meu pai é diferente, eu sinto, tipo, fico até emocionada... é aquele amor incondicional." (F1, 25 anos)

Essas falas revelam uma formação triangular nesses relacionamentos, em função das fronteiras entre os subsistemas conjugal e parental estarem difusas. Dessa forma, a tríade pais-filho adquire uma rigidez inadequada (Minuchin, 1990). Esse isolamento de um dos membros do casal pode ser pensado em termos de diferenciação e necessidade de limites familiares, cuja falta deixa a criança exposta a triangulações e a figuras parentais indiferenciadas, o que pode vir a ser um aspecto definidor de sua identidade como a dependência emocional de suas relações sociais, prejudicando a capacidade de autonomia, julgamento e tomada de decisão (Boszormenyi-Nagy & Spark, 2014; Bowen, 1989).

A triangulação pode representar um mecanismo de defesa diante de fronteiras mal delimitadas que acarreta o medo do abandono e da absorção – ansiedade de separação e de incorporação. Nos dois primeiros relatos, esse fenômeno parece se dar em função das dificuldades enfrentadas no relacionamento dos pais, de forma que eles buscam nos filhos a realização dos desejos e das necessidades que o outro não satisfaz. A pessoa pode afastar-se e buscar um terceiro indivíduo para aliviar sua tensão ou aproximar-se e aceitar o controle do outro através de suas demandas. Assim, quando a ansiedade no casal se intensifica, a saída encontrada para amenizar o desconforto e evitar o enfrentamento dos problemas é repassá-la para os filhos (Bowen, 1991).

Por fim, ressalta-se que os conflitos são inerentes às relações humanas e constitutivos da vida social. Eles exigem um constante e ininterrupto processo de negociação da realidade, com recuos e avanços, com alianças sendo formadas e desfeitas, com adaptação de projetos, que transformam tanto o individuo como o social. Esse processo ocorre de forma pendular até que seja possível reestabelecer um novo equilíbrio. A sua frequência no sistema familiar não representa, isoladamente, índices de saúde, mas sim os recursos que esse possui para lidar com os conflitos (Benetti, 2006; Cummings & Davies, 2011; Cummings, Goeke-Morey, & Papp, 2016).

 

Considerações Finais

A parentalidade tardia é um fenômeno cada vez mais comum em nossa sociedade. Os teóricos têm se ocupado mais da perspectiva das mães e pais, nesse contexto, do que da repercussão para os filhos nascidos nesse desencontro do ciclo vital tradicional.

Ao propor olhar essa questão sob a perspectiva da sua repercussão na infância e adolescência dos filhos, na percepção dos mesmos, o foco do estudo não foi colocado no fato de os sujeitos serem filhos de pais mais velhos, mas sim no desenvolvimento infanto-juvenil dos entrevistados, podendo a questão geracional eclodir ou não. Em todas as entrevistas, essa peculiaridade se fez presente de forma espontânea. É importante ressaltar que, talvez, os participantes tenham ido ao encontro do que acreditavam ser esperado deles, tendo em vista que tinham conhecimento sobre do que tratava a pesquisa.

De maneira geral, os filhos entrevistados valorizam a história de vida dos pais mais velhos e atribuem aspectos positivos, como a bagagem cultural e de experiências que podem ser compartilhadas, assim como a disponibilidade que a aposentadoria proporcionou e a estabilidade financeira já adquirida nesse momento de vida. Por outro lado, reconhecem também que a diferença geracional pode se traduzir em conflitos, em uma relação de mais respeito e distância afetiva, em dificuldade de compreensão cultural e em práticas educativas distintas da tendência atual. Ainda, o envolvimento dos filhos nos litígios conjugais dos pais se fez muito presente nas entrevistas, na mediação dos conflitos ou como apoio emocional. Observou-se também que os sujeitos cresceram com maior convivência com o grupo familiar do que com amigos de sua idade e que eles se sentiam muito maduros em relação a seus pares. Na busca pela conquista da autonomia, percebeu-se uma dificuldade dos pais de encontrar o equilíbrio entre a proteção excessiva e a falta de cuidado.

Vale ressaltar que este estudo se deparou com a dificuldade de encontrar sujeitos com as características determinadas. Ainda, algumas vezes, os possíveis entrevistados diziam estar passando por um período delicado na família, típicos do envelhecimento dos pais, como o Alzheimer, e não se sentirem confortáveis para participar da pesquisa naquele momento. A parentalidade tardia é um fenômeno em crescimento e a tendência é que, em alguns anos, seja mais fácil encontrar sujeitos para estudos como este, superando esse empecilho.

Seria um interessante desafio realizar uma pesquisa observando possíveis distinções nas famílias em que os pais sejam casados ou separados. Para além disso, investigar a percepção dos diferentes filhos de uma mesma família caracterizada pela parentalidade tardia poderia render um rico estudo. De toda forma, a literatura e as pesquisas sobre o tema, em especial sob a perspectiva dos filhos, são escassas, sendo importante ampliar as investigações sobre a questão.

 

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Endereço para correspondência
Paula Navarro
E-mail: paulamnavarro@gmail.com

Recebido: 22/05/2018
1ª reformulação: 13/04/2019
Aceito: 20/04/2019

 

 

1 Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
2 Professora Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
3 Pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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