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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.20 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Sintoma infantil: do trauma à transmissão

 

Child symptom: from trauma to transmission

 

Síntoma del niño: de el trauma a la transmisión

 

 

Luciana Jaramillo Caruso de Azevedo1

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente ensaio visa refletir sobre as particularidades do sintoma infantil, entre elas podemos destacar a influência do trauma e do conteúdo genealógico na sua constituição. Segundo a teoria psicanalítica, destacamos a intrínseca relação entre o sintoma da criança e o desejo e discurso parentais, observando no sintoma infantil a abertura e a presença de resquícios dos conteúdos genealógicos. A compreensão do sintoma infantil é apresentada tendo como base a articulação entre o trauma e a transmissão psíquica. O sintoma aponta para uma escolha inconsciente do sujeito e um caminho para a sua historicização. Ressalta-se a importância do trabalho com os pais na condução da análise de crianças, bem como a escuta perspicaz do analista aos significantes que atravessam gerações.

Palavras-chave: Sintoma infantil; Trauma; Transmissão psíquica.


ABSTRACT

The present study intends to reflect about the particularities of the infant symptom, among them we can highlight the influence of the trauma and the genealogical constitution. According to the psychoanalytic theory, we highlight the intrinsic relation between the child's symptom and the parental desire and discourse, observing in the children's symptom the opening and presence of remnants of the genealogical contents. The understanding of the child symptom is presented on the basis of the articulation between trauma and psychic transmission. The symptom points to an unconscious choice of the subject and a path to its historicization. The importance of working with parents in conducting the analysis of children, as well as the insightful listening of the analyst to the signifiers that cross generations, is emphasized.

Keywords: Child symptom; Trauma; Psychic transmission.


RESUMEN

Este ensayo tiene como objetivo reflexionar sobre las particularidades de los síntomas del niño, entre ellos podemos destacar la influencia del trauma y del contenido genealógico. De acuerdo con la teoría psicoanalítica, señalamos la relación intrínseca entre los síntomas del niño y el deseo de los padres y el habla, viendo la apertura de los síntomas de los niños y la presencia de restos de contenidos genealógicos. La comprensión de los síntomas del niño se presenta sobre la base de la relación entre el trauma y la transmisión psíquica. Hacemos hincapié en la importancia de trabajar con los padres para llevar a cabo el análisis de los niños, así como una escucha perspicaz del analista para los significantes que cruzan las generaciones.

Palabras-clave: Síntoma infantil; Trauma; Transmisión psíquica.


 

 

Partindo da clínica psicanalítica contemporânea, constatamos os efeitos no sujeito de uma nova racionalidade diagnóstica promovida pela excessiva categorização de transtornos psiquiátricos advindas de manuais como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde). Na atualidade, foi instituída a obsessão por detectar vestígios de "anomalias" cada vez mais precocemente. Nesse sentido, Birman (2012) salienta a articulação fundamental entre os processos de medicalização e psiquiatrização do social. Esta articulação se baseia em modelos privilegiados de subjetivação investidos pela cultura do narcisismo (Lasch, 1983) e pela sociedade do espetáculo.

Whitaker (2017) afirma existir uma epidemia de diagnósticos fundamentada no surgimento progressivo de novos sintomas e novas formas de sofrimento. No entanto, a medicalização do sofrimento parece produzir novos nomes para o mal-estar presente na condição humana. Essas "novas" formas de sofrer não ficam restritas ao mundo adulto, com frequência elas são extrapoladas para as crianças e adolescentes. A problemática da medicalização de crianças em função de supostas dificuldades de aprendizagem, dos problemas escolares, das compulsões alimentares, da compulsão por jogos, entre tantos outros, apontam para o problema da psicopatologização da infância (Birman, 2012; Caliman, 2016)

Com efeito, a produção de saber sobre o sofrimento o psíquico tem sido associada à indústria farmacêutica, cujos medicamentos comportam a promessa de aliviar sofrimentos existenciais (Guarido, 2007; Kamers, 2013; Perez & Sirelli, 2015). Segundo Landman (2015), o aumento massivo de diagnósticos de TDA/H (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) sugere estarmos diante dos efeitos de práticas comerciais da indústria farmacêutica e facilitado pela inadvertida prescrição médica.

No que se refere à infância, não é raro o encaminhamento de crianças, especificamente de alunos, com dificuldades de aprendizagem e escolares para atendimento médico-psicológico, baseado em avaliações diagnósticas realizadas por professores que compreendem os problemas infantis como sendo de ordem estritamente individual (Caliman, 2016; Figueira & Caliman, 2014).

Entretanto, vale destacar que o sintoma da criança traz as suas marcas enquanto sujeito, com suas respectivas responsabilidades e implicações. Assim, é imprescindível considerar a multideterminação do sintoma infantil, na qual os aspectos biológicos, sócio-culturais, psicológicos, inconscientes, e genealógicos se entrelaçam na sua tessitura.

Quinet (2000) ressalta que da época de Freud até os dias de hoje, o invólucro formal do sintoma tem variado acompanhando o desenvolvimento da ciência. Não obstante a isso, por mais que se disponha de subterfúgios para encobrir o sintoma com inúmeros medicamentos que invadem o mercado e com os manuais de diagnóstico (DSM e CID), a descoberta psicanalítica sobre o sintoma não pode mais ser desconsiderada.

Especificamente em relação ao sintoma infantil, a teoria psicanalítica nos oferece um arsenal teórico-prático a partir de hipóteses metapsicológicas para fazer frente à medicalização desenfreada. Nessa perspectiva, compreendemos que a criança encarna e presentifica através dos seus sintomas as consequências de um conflito vivo. Cabe à criança suportar o peso das tensões e interferências da dinâmica emocional sexual inconsciente em ação nos pais, cujo efeito de contaminação mórbida é tanto mais intenso quanto mais se guarda ao seu redor o silêncio e o segredo (Dolto, 1988). Por sua vez, Mannoni (1988) pontua que é raro que não se perceba por trás de um sintoma infantil certa desordem familiar.

Mesmo antes de nascer, a criança já existe no discurso, no desejo e na fantasia dos pais. Sua entrada na ordem da cultura e da linguagem depende do lugar que lhe é designado a partir das expectativas e desejos parentais. O referido lugar humaniza a criança e garante sua sobrevivência. Pela substancial dependência da criança aos adultos, no exercício das funções parentais, é frequente que o sintoma infantil esteja atrelado a sua relação com seus pais. Sendo assim, pensamos que o narcisismo e o investimento dos pais têm uma função determinante na construção da subjetividade da criança e na produção de seus sintomas (Azevedo, Féres-Carneiro, & Lins, 2014). Assim, quando os pais foram assolapados por um evento traumático, que não conseguem elaborar e liquidar através dos meios habituais, isso poderá incorrer em repercussões no psiquismo infantil.

Considerando a articulação estrutural entre o desejo e discurso parentais, o presente estudo visa a investigar o potencial de transmissão transgeracional presente no trauma, especificamente no caso dos pais traumatizados e a transmissão de conteúdos inconscientes à criança, o que contribui significativamente para a constituição do seu sintoma. Sabe-se que a criança procura responder ao enigma dos significantes obscuros propostos pelos adultos, identificando-se com o que julga ser o objeto materno, tentando preencher a falta estrutural do outro, e evitar a angústia de castração. Em se tratando de pais que vivenciaram situações traumáticas, esses significantes obscuros podem ganhar uma carga pulsional mais elevada, sendo transmitidos transgeracionalmente.

Em função da relevância do tema para a clínica contemporânea com crianças e por estabelecer uma resistência ao engodo promovido pelas estratégias medicalizantes, pretende-se estudar os conceitos de trauma e transmissão vinculados à noção de sintoma, por meio do qual se marca e se delineia a especificidade da psicanálise. Para tanto, em um primeiro momento serão apresentadas algumas considerações sobre o trauma, em seguida, serão estudadas as particularidades inerentes aos pais traumatizados. Por fim, serão articulados o trauma e a transmissão psíquica.

 

Considerações Sobre o Trauma

De acordo com Laplanche e Pontalis (1986), a noção de trauma é derivada da palavra grega t?a?µa (ferida), com uma raiz indo-européia, que apresenta os seguintes significados: friccionar, triturar, perfurar, mas também suplantar. Kupferberg (2004) destaca que os termos trauma e traumatismo foram extraídos da medicina e transpostos para o plano psíquico, contudo, com esta mudança os termos adquiriram outra significação. Compreende-se por trauma uma "ferida" ocasionada por qualquer acontecimento que provoque uma efração brusca na organização psíquica de um indivíduo, quer haja ou não lesão neurológica.

Em "A etiologia da histeria" (Freud, 1976/1896), Freud ao se preocupar com a causa da histeria propôs como procedimento o método catártico, cuja estratégia (partindo de uma metáfora arqueológica) seria descobrir o que estava enterrado e escondido, fazendo com que os sintomas adquirissem expressão através da fala. A propósito deste texto freudiano, Rudge (2009) explica que o denominado método catártico originou-se do atendimento realizado pelo Dr. Breuer a uma paciente que ficou conhecida como Anna O.

Segundo a primeira teoria de Breuer e Freud, os histéricos se curavam dos seus sintomas ao recordarem e relatarem, sob transe hipnótico espontâneo ou induzido, um evento traumático que ocorrera em suas vidas. Nesse texto, Freud afirmou que a atribuição de um sintoma histérico à cena traumática só atingiria a cura quando a cena atendesse a duas condições: pertinente adequação para funcionar como determinante e, reconhecidamente, força traumática (Rudge, 2009).

Nos primórdios da psicanálise o trauma da sedução sexual da criança pelo adulto era encarado como fator etiológico primordial na psicogênese das neuroses. No entanto, embora Freud não tenha abdicado da importância da sexualidade na gênese dos transtornos psíquicos, ele colocou a realidade da sedução traumática em questão (Rudge, 2009).

Na carta 69 destinada a Fliess (Freud, 1976/1897), Freud enunciou que não acreditava mais em sua "neurótica". Dois principais motivos o conduziram a esta afirmação. O primeiro se refere à decepção repetida de sua expectativa de levar ao menos um tratamento psicanalítico até o que considerava ser uma verdadeira conclusão. O segundo motivo foi a frequência dos casos de histeria. Se a hipótese da sedução fosse verdadeira, haveria um número muito maior de pais perversos do que de histéricos. Sendo assim, Freud concluiu não ser possível que quase a totalidade dos pais fosse pervertida.

A partir do "fracasso" da teoria da sedução surgiram achados primordiais para a teoria psicanalítica. Freud (1976/1897) estabeleceu uma nova concepção sobre a relação entre trauma e fantasia. Ele depreendeu que as fantasias são expressões dos desejos, a noção de realidade foi transposta para a realidade psíquica e deduziu ainda a existência de uma sexualidade na infância dirigida primordialmente aos pais, posto que estes são os primeiros objetos de afeto e desejo da criança. Nesse sentido, as primeiras experiências com as figuras parentais são fundamentais para toda a vida.

Em outro momento de sua obra, Freud (1976/1913) afirmou que a psicanálise foi obrigada a atribuir a origem a vida psíquica dos adultos à vida das crianças, fazendo referência ao antigo ditado que dizia ser a criança o pai do homem. Ou seja, tudo o que o homem será foi delineado na infância, nas primeiras relações com aqueles que cuidaram dele. Diante disso, foi delineada uma continuidade entre a psique infantil e a psique adulta, observando também transformações e remanejamentos no processo.

Todavia, Soler (1998) pontua que Freud nunca abandonou completamente a causalidade traumática, tendo em vista o espaço reservado ao traumatismo no final de sua obra. Em "Moisés e o monoteísmo" (Freud, 1976/1939), Freud mostra que os traumatismos encontrados na origem dos sintomas são experiências que tocam o corpo do sujeito, ou ainda, percepções que afetam, na maior parte das vezes, a visão e a audição, sendo, em sua maioria, experiências e impressões da primeira infância.

De acordo com Checchinato (2007), o trauma é sempre um mau encontro ou uma trombada com o real. Ele forma o núcleo patógeno, gerador de uma espécie de infectação e sofrimentos. O núcleo patógeno consiste em concentrações endurecidas e cristalizadas de significantes que não circulam livremente nas redes do inconsciente e cujo conhecimento chega através das manifestações sintomáticas. Este núcleo é como um novelo embaraçado e o sintoma, o índice e o início da linha embaraçada.

Braunstein (2006) postula que nas denominadas "neuroses não-traumáticas" interpõe-se o véu da fantasia como uma tela que transforma e dissimula os fatalismos. Por sua vez, nas neuroses traumáticas o real se reproduz sem véu. Assim, a neurose traumática pode ser concebida como uma falha da função encobridora da fantasia.

Em suma, a noção de trauma e de neurose traumática foi amplamente discutida por Freud ao longo de toda a sua obra, assim como por diversos autores e comentadores de importância. De toda essa discussão, um dos pontos cruciais corresponde aos consideráveis impactos dos traumas que ressoam tanto no indivíduo como nas sucessivas gerações, sendo possível pensar, nesse último caso, na transmissão do trauma.

 

Pais Traumatizados

De acordo com Rudge (2009) o trauma não se refere apenas ao acontecimento em si, mas ao modo como esse acontecimento incide sobre o psiquismo e como ele é processado. Nesse sentido, a autora constata a presença dos temas da histeria e do trauma desde o ensino de Charcot, que creditava à herança familiar a principal causa da histeria. Assim, nos pais ou noutros ascendentes do histérico, invariavelmente se encontrariam não necessariamente casos similares, mas casos de afecções nervosas. Ao lado da hereditariedade, que seria solo fecundo para a eclosão da histeria, Charcot valorizava o que chamava de "agentes provocadores", fatores responsáveis por deslanchar os sintomas naqueles hereditariamente predispostos. Entre os possíveis agentes provocadores, o principal era o trauma. O trauma era tido como um choque acompanhado de emoções intensas. Seus efeitos seriam ainda mais poderosos em situações de esgotamento, quando o sistema nervoso fica fragilizado por doenças ou outros fatores da vida.

Com efeito, nota-se a articulação entre o trauma e a hereditariedade desde os primórdios da psicanálise. Contudo, a clínica com crianças nos demanda repensarmos os desdobramentos do trauma, suas repercussões no indivíduo e sua reverberação ao longo de gerações. É valido nos determos brevemente em algumas características peculiares dos traumatizados, principalmente, em se tratando do exercício da parentalidade para posteriormente apresentarmos a transmissão do traumático.

O tempo do traumático não se temporaliza em uma série, pois se inscreve como uma ausência de tempo (Soler, 2004). O acontecimento que deu origem ao trauma pode retornar no presente enquanto uma força atuante cuja testemunha é a lembrança. Assim, o indivíduo traumatizado é invadido por imagens, sons e sensações do instante traumático. Pode-se dizer que a situação traumática impinge a alguém o risco de morte, uma situação na qual a pessoa poderia ter morrido, mas não o fez. Portanto, do trauma o sujeito é um sobrevivente. O traumatizado é um ser que, de modo metafórico, tomou o lugar de outro que vivia anteriormente. Há uma espécie de troca de identidade apesar da conservação do nome (Braunstein, 2006).

Nesse ponto de discussão, vale destacar que estamos inseridos em uma cultura medicalizante, em que o discurso médico é difundido amplamente (Birman, 2012; Caliman, 2016; Perez & Sirelli, 2015). Entretanto, sabe-se que o discurso que norteia os valores, as satisfações próprias da cultura é sempre um discurso que vela, um discurso que interpõe, tal como um envelope protetor, seus semblantes e sua ordem entre os sujeitos e o real. Quando uma cultura oferece as bases das significações estáveis, compartilhadas por todos e nas quais os laços sociais se ordenam, os sujeitos são bem pouco expostos ao real, sendo suas irrupções mais brutais neutralizadas com o envelope de sentido que forja o discurso (Soler, 2004). Assim, pode-se pensar a medicalização articulada à noção de trauma, como um modo de silenciar o sujeito traumatizado ou os efeitos do trauma na geração posterior.

Para Kupferberg (2004), sobreviver ao trauma não significa apenas escapar da morte, mas conservar a dignidade e a moral de um ser humano. Este último aspecto é responsável pelo sentimento que os membros da segunda geração adquirem, ficam de certo modo encarregados pelos seus pais de cumprir a difícil missão de desfazer as vivências, restaurar as perdas sofridas pelos seus pais e passam a encarar o presente como forma de transformar, de algum modo, a história familiar.

É de suma importância o papel das histórias que habitam e circulam na esfera familiar da criança para as suas construções fantasísticas. Todavia, o discurso familiar não se restringe à narrativa e ao conteúdo das histórias. Os não-ditos, as lacunas, as inconsistências e até mesmo o modo como estas histórias são repassadas às crianças são elementos imprescindíveis para pensarmos a transmissão psíquica.

Diante disso, verifica-se a relevância primordial da família no que se refere à transmissão e à produção de patologias. Com efeito, Benghozi (2000) aponta para o risco constante de um traumatismo psíquico não metabolizado que pode suscitar a repetição da cena de violência, mesmo após várias gerações. Se, o processo de transmissão de conteúdos e vivências sofre entraves devido à falta de metabolização, como no caso do trauma, uma quantidade considerável de material traumático não elaborado, não simbolizado, é transmitida em seu estado bruto para a geração seguinte. Esse tipo de transmissão de um conteúdo não elaborado consiste na transmissão psíquica transgeracional (Granjon, 2000).

Neste ponto de discussão, cabe interrogarmos em que medida a herança genealógica incide sobre o desejo dos pais, tendo em vista que este é de suma importância para a constituição do sujeito criança. Checchinato (2007) ressalta que o desejo parental constitui o sujeito, mas para se ter acesso a ele é necessário que a palavra que o constitui seja liberada. Quando a palavra encontra-se bloqueada por um feixe de palavras parentais que exprimem o desejo dos pais e soterram os filhos, não resta alternativa ao filho senão responder como sintoma.

É importante observar que a criança é o elemento que inaugura a tríade, representando a parte excluída da cena conjugal. A criança sonha em ter a completude do amor do casal parental. Entretanto, cabe aos pais ajudá-la a renunciar à plenitude da satisfação pulsional, admitir a assimetria de seu lugar na cadeia geracional e aceitar os limites que a cultura lhe impõe (Solis-Ponton, 2004). Nesse contexto, pertence ao exercício da parentalidade a função de transmitir a lei que interdita para humanizar o filho por meio da experiência de perda da onipotência. Denomina-se humanização esse processo estruturante de inserir o filho dentro das leis da cultura, capacitando-o psiquicamente a viver em sociedade (Gorin, Mello, Machado, & Féres-Carneiro, 2015).

Hurstel (2006) afirma que o lugar genealógico ocupado pelos pais seria aquele que lhes confere autoridade, posto que a autoridade refere-se a uma posição genealógica que os diferencia das crianças e, portanto, central na transmissão das funções parentais. Em função da falta de autoridade, não seria possível ocorrer a transmissão da lei, o que acarretaria em um corte simbólico e desencadear os sintomas reveladores da confusão genealógica e da não-diferenciação subjetiva. A dificuldade em dizer "não" a uma criança, a impor-lhe limites e a frustrá-la pode acarretar a impossibilidade de manter o lugar genealógico dos pais, diferenciado do lugar da criança. Seu lugar genealógico acaba sendo idêntico ao dos adultos. Pode-se dizer, inclusive, que muitas vezes há uma inversão dos lugares genealógicos. Há uma dificuldade real para os pais traumatizados assumirem uma posição de autoridade, como nos casos de crianças parentalizadas (Mello, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2015).

Assim, pensar as questões referentes ao sintoma e à transmissão implica em pensar também a diferença de posições entre as crianças e os seus pais. O traumatismo dos pais pode exigir que os filhos se encarreguem do exercício das funções parentais, desconsiderando as necessidades infantis. Um exemplo disso é a denominada parentalização que se apresenta como um risco para a saúde emocional da criança quando se consolida como via privilegiada da relação entre pais e filhos (Mello, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2015).

Seguindo esse raciocínio, nos casos em que houve uma vivência traumática por parte dos pais, os sinais de angústia, apresentados em função de suas experiências traumáticas, podem desencadear uma série de respostas por parte dos filhos, inclusive, contribuir significativamente na formação dos sintomas infantis. Os traumatismos intensos que ficaram imersos no inconsciente, cuja elaboração não foi devidamente realizada, podem ter repercussões e terem os seus efeitos reverberados ao longo das gerações. Com efeito, cabe indagar como e em que medida é possível, a partir da prática psicanalítica, conduzir o sujeito em tratamento para que este descontrua essa herança transgeracional e tenha acesso a novas possibilidades de construção de sua história.

 

Transmissão do trauma

A experiência traumática mantida em segredo numa determinada geração pode provocar nos membros da geração seguinte uma incorporação sem o devido trabalho elaborativo. O que foi transmitido de forma inconsciente pelas gerações anteriores precisa sofrer um processo de metabolização, de modo a tornar possível sua introjeção e consequente utilização para a construção de uma nova história (Levy & Kupferberg, 2009).

Quando os segredos acerca de conteúdos traumáticos são mantidos sem a devida elaboração por parte dos pais, esses podem desencadear sintomas em seus filhos. Nesse sentido, Rosa (2000) afirma que o atendimento de crianças inclui entrevistas com os pais que apresentam a queixa e a história da criança, relatando tanto os dados do seu desenvolvimento, os fatos marcantes de sua vida e possíveis sinais e sintomas da sua atual problemática. Os pais afirmam que as crianças não sabem ou que elas não se preocupam quando não falam sobre determinado assunto. Imaginam a criança ingênua e livre de inibições e de preocupações, vivendo em um mundo de brincadeiras, indiferente ao mundo que a cerca. Eles acreditam que a criança sabe somente o que é dito por eles. E, pelo suposto bem da criança, a realidade pode ser adulterada ou omitida. No entanto, há um engano: o não dizer é regulado por inúmeros fatores que vão desde a supressão voluntária até a interdição absoluta.

Em relação aos silenciamentos e aos segredos, Tisseron (2019) postula que estes reverberam em três gerações. Na primeira geração - aquela que vivenciou o traumatismo sem elaboração satisfatisfatória - os segredos se apresentam da ordem do indizível. Os indivíduos que vivenciaram não puderam ou não quiseram falar sobre o que se passou. A partir da transmissão a geração seguinte, esses objetos se tornam inomináveis, pois não possuíram nenhuma representação verbal na geração anterior. Com a passagem deste conteúdo inconsciente para a terceira geração, o que foi anteriormente inominável se configura como impensável e a existência do segredo poder ser desconhecida. Contudo, a criança e, posteriormente o adulto que ela se tornará, poderá perceber sensações, emoções, potencialidades de ação, imagens que parecem estranhas e impossíveis de explicar a partir da sua própria vida psíquica e/ou história familiar.

A atividade simbólica de encontrar a palavra, a criação, pode ser um fator que liberta o sujeito da imobilidade diante do catastrófico do trauma vivido e silenciado (Levy & Kupferberg, 2009). Este catastrófico vivido pode ser, em amplo aspecto, como uma experiência traumática ancestral.

Acontecimentos com potencialidade traumática podem comprometer significativamente a integração harmônica dos conteúdos inconscientes. Por isso, cabe pensar que nos primórdios do engendramento psíquico, a criança necessita fazer dos adultos (que exercem as funções parentais) o seu espelho para se identificar e se constituir. Todavia, neste período de espelhamento, no processo identificatório, a criança pode se deparar com lacunas, inclusões ou criptas na psique dos pais em questão (Abraham & Torok, 1995).

Benghozi (2000) aponta para o risco constante referente a um traumatismo psíquico não metabolizado, posto que este se configura da ordem do excesso e pode repercutir ao longo de várias gerações. No momento em que a transmissão de conteúdos e vivências sofre entraves, como no caso do trauma, uma quantidade considerável de material traumático não elaborado, não simbolizado, é transmitida em seu estado bruto para a geração seguinte.

Seguindo esse raciocínio, os traumas vividos, familiares ou individuais e os segredos gerados a partir deles não se encerram com aqueles que os viveram. Azevedo, Féres-Carneiro e Lins (2014) destacam a importância do papel das histórias que habitam e circulam na esfera familiar da criança para as construções fantasísticas, acrescentando ser fundamental não apenas o conteúdo das histórias, mas o modo como estas são repassadas às crianças.

Em 1914, no texto "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1976/1914), Freud indica que há um tipo especial de experiência da máxima importância para a qual lembrança alguma, em geral, pode ser recuperada. São as experiências que ocorrem em infância muito remota e não foram compreendidas na ocasião, mas, subsequentemente, foram compreendidas e interpretadas.

Diante disso, verifica-se o papel primordial da família e, especificamente daqueles que cumprem funções parentais, no que se refere à metabolização da herança psíquica, à transmissão psíquica e à produção de sintomas infantis. A família nutre psiquicamente o sujeito desde o seu nascimento e até mesmo antes da sua gestação, preparando um lugar simbólico para recebê-lo, desejando-o e lançando-o ao mundo para germinar a sua história (Magalhães & Féres-Carneiro, 2007). Marconi (2008) postula que o inconsciente se forma por meio de resíduos de linguagem, ouvidos no discurso que circula em sua família. Trata-se de significantes impostos ao sujeito que os escuta porque não pode se furtar às palavras.

 

Considerações finais

A ampla gama de sintomas e formas diagnósticas presentes nos manuais, principalmente no DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, permite que muitos acontecimentos da vida, sofrimentos ou outros comportamentos sejam registrados como relacionados a transtornos mentais. Assim, os avanços da medicalização se transformaram na forma majoritária de intervenção terapêutica na atualidade. Cabe pensar que os procedimentos de medicalização, surgidos nos cuidados com a população adulta, foram estendidos também às crianças. Crianças desatentas ou inquietas, que demandariam um cuidado especial de seus pais ou professores, passaram a ser diagnosticadas e, muitas vezes, medicalizadas.

Contudo, a psicanálise oferece um contraponto ao discurso medicalizante favorecendo a ampliação da noção de sintoma infantil e lançando luz sobre a dinâmica inconsciente que está em jogo através de um sintoma. Nesse sentido, outros fatores podem propiciar o aparecimento dos sintomas, como o trauma. O estudo sobre o trauma é central na teoria psicanalítica desde os seus primórdios, despertando profundo interesse de investigação do seu fundador. Os estudos sobre o trauma remontam aos primórdios da própria psicanálise. Desde a descoberta do método catártico, quando as histéricas, para Freud, pareciam padecer de reminiscências de acontecimentos reais traumáticos, foi iniciado o delineamento teórico do trauma, a partir do qual foi cunhada a ideia de realidade psíquica, peça-chave para a psicanálise até os dias de hoje.

O processo psicanalítico re-ativa a relação com o que há de enigmático que se inscreveu na passagem de uma geração a outra. Por essa razão, pode ser a chance de uma integração e de um trabalho de luto nos casos em que a clivagem e a cripta se constituem como proteção encontrada para evitar a realidade traumática, dando lugar a uma nova constituição psíquica. A partir do que foi visto neste ensaio, a hipótese conclusiva a que se chega é a de que muitas famílias cujas crianças ou adolescentes apresentam sintomas neuróticos e psicóticos poderão ser bem sucedidas em seus tratamentos ao revelar a relação entre medos e sintomas atuais e situações traumáticas não elaboradas relacionadas às gerações anteriores (Kupferberg, 2004).

Nos casos em que existem conteúdos traumáticos não metabolizados, parece não haver palavras ou explicações que exprimam determinadas impressões, intensidades e vivências. Assim, na análise da criança deve estar incluído o lugar dos pais e, particularmente, nos casos em que nos deparamos com traumatismos transgeracionais.

A experiência traumática ocorrida em uma determinada geração pode desencadear nos membros da geração seguinte uma incorporação sem o trabalho elaborativo. O que foi vivido pelas gerações anteriores precisa passar por um processo de metabolização ou elaboração de modo a tornar possível sua introjeção e consequente utilização para a construção de uma nova história.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Luciana Jaramillo Caruso de Azevedo

E-mail: lucianajaramillo@msn.com

Recebido: 06/01/2017
1ª reformulação: 06/03/2017
Aceito: 22/06/2017

 

 

1 Mestra e doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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