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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.21 no.1 Ribeirão Preto jan./jun. 2020

 

EDITORIAL

 

Pesquisas com crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social no Brasil: debates inacabados e novos dilemas

 

 

Alex Sandro Gomes Pessoa1, I; Fabio Scorsolini-Comin2, II

IUniversidade Federal de São Carlos, São Carlos-SP, Brasil
II
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.
(
Manoel de Barros, Uma didática da invenção)

 

O ensino da Psicologia do Desenvolvimento no Brasil se baseou, durante muito tempo, em teorias e perspectivas analíticas construídas a partir da realidade psicológica e de demandas sociais de pessoas e grupos de outros contextos, em especial provenientes da Europa e da América do Norte (Leontiev, 2004; Martín-Baró, 1996; Rogoff, 2005), em um movimento que atravessou toda a Psicologia científica. Embora seja inegável a contribuição de algumas dessas vertentes, prescinde-se, na prática do profissional da Psicologia e do ensino de Psicologia do Desenvolvimento, de fundamentos teóricos e metodológicos que se debrucem sobre temas pertinentes à realidade brasileira, partindo de suas especificidades – o que não envolve apenas os dilemas e as dificuldades existentes, mas também e, sobretudo, as potencialidades.

É importante destacar que essa realidade, geralmente tão sedutora ao olhar externo, deve posicionar o nosso contexto não apenas como um objeto de estudo por vezes considerado "fascinante", "diverso" e até mesmo "folclórico" por parte do pesquisador estrangeiro, mas, sobretudo, possibilitando a emergência de pesquisadores brasileiros, nativos desse mesmo contexto e capazes de também lançar olhares inquietos a esses elementos. O cenário brasileiro, assim, não seria apenas um locus atrativo a pesquisadores do exterior capazes de produzir teorias a partir desse reconhecimento, mas também um campo de pertencimento e que possibilitaria que aqui mesmo crescessem e se desenvolvessem pesquisadores capazes de analisar esses mesmos fenômenos, produzindo saberes a serem compartilhados com outras realidades. O brasileiro, desse modo, deixaria de ser exclusivamente um objeto de estudo "fascinante" e passaria a se posicionar, também, como quem pode produzir conhecimento a partir de sua realidade.

Os referenciais norte americanos e eurocentrados promoveram, por muito tempo, a impressão de que a Psicologia era uma ciência construída fora de nosso contexto, de modo que os nossos cenários de observação, prática e corporificação deveriam se ajustar às métricas apresentadas nos estudos desenvolvidos no exterior. Dessa orientação passaram a emergir questionamentos que mostravam que essa tarefa não podia ser conduzida sem que hiatos fossem identificados no percurso dessas pesquisas.

Operava-se, cada vez mais, uma impressão de que os consagrados modelos da Psicologia do Desenvolvimento muitas vezes se mostravam insuficientes (ou mesmo impróprios) para dar respostas aos nossos problemas. Mais ainda: de que a ciência psicológica não era uma disciplina importada, mas que poderia também ser desenvolvida em nosso país não apenas a partir de fenômenos aqui reconhecidos, mas por epistemologias construídas tendo por base a nossa realidade, na recusa pelo emprego de modelos externos e que pouco dialogavam com as nossas necessidades.

É a partir desse ponto que os pesquisadores da Psicologia brasileira passaram a se debruçar na tarefa de refletir, sobretudo, qual Psicologia estaríamos produzindo em nosso país. Essa Psicologia dialogaria com os referenciais dos nossos colonizadores? O nosso ponto de vista seria permanentemente o do colonizado? Tornava-se (e torna-se, portanto) premente a necessidade de composição de uma Psicologia brasileira centrada em nossa realidade não apenas como objeto de pesquisa, mas como recurso e estratégia de análise dos dados, como convite à feitura de epistemologias mais alinhadas ao sul, em um esforço por compor conhecimentos partindo de dentro para fora e em uma recusa a uma importação deliberada e acrítica que apenas reafirmava a assimetria entre colonizador e colonizado – empregando as terminologias trazidas por Fanon (2008) –, entre a Psicologia produzida na Europa e nos Estados Unidos e a por se fazer em nosso país.

A realidade de exclusão, desigualdade social e de inacessibilidade a políticas públicas impacta consideravelmente o desenvolvimento psicológico de crianças, adolescentes e jovens brasileiros (Morais, Raffaelli, & Koller, 2012; Paiva & Oliveira, 2015; Zappe & Dell'Aglio, 2016). A importação acrítica e descontextualizada de modelos epistemológicos concernentes às ciências psicológicas repercute em modelos explicativos inócuos (Dimenstein, 2000), que não são capazes de explicar determinados modos de funcionamento psíquico, tampouco os comportamentos manifestos em diversos espaços sociais.

Sem dúvida, temas como vulnerabilidade social de crianças, adolescentes e jovens, trabalho infantil, violência sexual, medidas socioeducativas, adoção, acolhimento institucional, suicídio, homicídio de jovens, entre outros, devem fazer parte da agenda de investigação de pesquisadores vinculados à ciência do desenvolvimento humano, visando à construção de modelos teóricos e interventivos que estejam alinhados com a realidade da população brasileira. Este compromisso pode repercutir na produção de textos mais adequados ao ensino de Psicologia do Desenvolvimento na graduação e na pós-graduação, bem como servir de inspiração para a utilização dos profissionais que se encontram na prática, na atuação cotidiana em instituições públicas e privadas que se depararam com múltiplos vértices desses fenômenos. Ainda, esse convite é pertinente à consolidação da Psicologia do Desenvolvimento em nosso país, ampliando nossos repertórios não apenas para a explicação dos fenômenos aqui corporificados, mas também nos habilitando ao diálogo com as epistemologias tradicionais, em busca de compreensões menos excludentes e que potencializem, de fato, a transformação de nossa realidade.

Com base nestas premissas, este número especial visou a compilar estudos teóricos e empíricos de pesquisadores do contexto brasileiro que têm buscado consolidar análises consistentes sobre o desenvolvimento social e psicológico de crianças, adolescentes e jovens expostos à vulnerabilidade social. Espera-se, com isso, compartilhar reflexões menos abstratas e mais condizentes com as demandas nacionais, contribuindo efetivamente para o avanço da Psicologia do Desenvolvimento no Brasil.

Uma Psicologia construída por pesquisadores brasileiros diante de temas emergentes em nossa realidade e que têm se engajado na produção de repertórios, instrumentos e competências capazes de nos alçar à produção de um conhecimento que se compromete com a transformação, com o avanço teórico e procedimental e, com isso, a inovação tão discutida no cenário da pesquisa nacional. Defendemos, aqui, que a inovação no contexto da Psicologia do Desenvolvimento pode residir também no modo como essa área tem se engajado na produção de conhecimentos válidos ecologicamente, adaptados ao nosso cenário experiencial e com objetivos que permitam a exportação de modelos para o fortuito diálogo com outras realidades.

Trata-se de uma produção coletiva de pesquisadores que fazem parte do Grupo de Trabalho (GT) "Juventude, Resiliência e Vulnerabilidade", vinculado à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). É, portanto, resultado de um esforço de cientistas sociais provenientes de diversas regiões do país que se comprometem, constantemente, com a elaboração e divulgação de modelos teóricos e práticas de intervenção que estejam alinhadas e condizentes com a realidade psicológica de crianças, adolescentes e jovens que sofrem em função da exposição aos fatores de risco que atravessam o seu processo de desenvolvimento.

Os leitores poderão acessar nesta coletânea artigos teóricos e estudos empíricos que desafiam noções hegemônicas sobre desenvolvimento humano, articulando as reflexões de seus proponentes com velhos dilemas e a temas considerados contemporâneos. Assim, são retomados debates que o GT supracitado considera como inacabados, como as situações de trabalho infantil, violência nas escolas, ato infracional, entre outros – não apenas por serem fenômenos ainda existentes em nossa sociedade, mas por desafiarem os conhecimentos ora produzidos para a sua adequada abordagem. Seguimos, portanto, levantando questionamentos que se alinhem à complexidade desses fenômenos, podendo disparar novos caminhos e também saberes capazes de apreender os pontos ainda inconclusos.

Além disso, são expostas reflexões e dados que alertam sobre novos desafios para a sociedade e para o trabalho de pesquisadores das ciências do desenvolvimento, especialmente com o advento das tecnologias digitais da informação e da comunicação e das redes sociais. Ainda que esse cenário não seja exclusivo do contexto brasileiro, deve-se retomar constantemente que o modo como essas tecnologias estão inseridas em nossa realidade e a forma como interagimos com as mesmas partem de sociabilidades construídas em nosso meio, aviltando a necessidade de considerar aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e históricos que nos atravessam e nos compõem.

Adicionalmente, os autores problematizam o papel das políticas públicas e dos profissionais que atuam com segmentos sociais mais fragilizados, espaços esses que não são exclusivos do psicólogo. Este número especial adquire, portanto, um tom reivindicatório e de militância, sobretudo porque os proponentes reconhecem e combatem as tentativas constantes e persistentes de setores conservadores em desqualificar os direitos sociais adquiridos arduamente pelos movimentos sociais após a promulgação da Constituição Cidadã de 1988.

O GT Juventude, Resiliência e Vulnerabilidade da ANPEPP se posiciona enfaticamente contrário a qualquer ação que se constitua como um retrocesso para as políticas públicas voltadas para crianças, adolescentes e jovens. Assim, reafirma sua posição política na construção de uma Psicologia ética, democrática e acessível. Um posicionamento que não se revela euro ou americano centrado, mas justamente brasileiro, comprometido com uma composição epistemológica que parta do nosso povo para pensar e refletir sobre questões que dizem respeito a esse povo e a uma ciência psicológica alinhada a esses desafios.

Sumariamente, este número especial busca, em primeira instância, problematizar as teorias e modelos interventivos universalizantes que a Psicologia do Desenvolvimento brasileira tem se apoiado historicamente. Busca, complementarmente, retomar questões sociais que continuam a atingir perversamente crianças, adolescentes e jovens em todo território nacional, bem como chama a atenção para temas emergentes para os pesquisadores do desenvolvimento humano e da sociedade em geral. Por fim, os proponentes não medem esforços em apontar a imprescindibilidade das políticas públicas, compreendidas como uma das maiores potências para o rompimento dos ciclos de exclusão e marginalidade que persistem em atingir o segmento infanto-juvenil no contexto brasileiro.

Em que pesem os debates inacabados e os novos dilemas acenados desde o início deste texto, comprometemo-nos com a produção de uma Psicologia do Desenvolvimento cônscia de seu engajamento social que recusa um posicionamento elitizado, parcial e que reforce a culpabilização individual para justamente a construção de uma ciência coletiva, situada e crítica, capaz de problematizar os hiatos que compõem e complexificam o nosso cenário. Que possamos nos abrir perenemente ao desafio que constitui a nomeação do que nossas crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social têm pronunciado a nós, pesquisadores, profissionais da saúde e da educação, profissionais do humano.

 

REFERÊNCIAS

Dimenstein, M. D. (2000). A cultura profissional do psicólogo e o ideário individualista: Implicações para a prática no campo da assistência pública à saúde. Estudos de Psicologia, 5(1), 95-121.         [ Links ]

Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. (R. Silveira, trad.). Salvador: EDUFBA. (Originalmente publicado em 1952).         [ Links ]

Leontiev, A. N. (2004). O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro.         [ Links ]

Martín-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia, 2(1), 7-27.         [ Links ]

Morais, N. A., Raffaelli, M., & Koller, S. H. (2012). Adolescentes em situação de vulnerabilidade social e o continuum risco-proteção. Avances en Psicologia Latinoamericana, 30(1), 118-136.         [ Links ]

Rogoff, B. (2005). A natureza cultural do desenvolvimento humano. Poro Alegre: Artmed.         [ Links ]

Paiva, I. L., & Oliveira, I. F. (2015). Juventude, violência e políticas sociais: Da criminalização à efetivação de direitos humanos. In A. Scisleski & N. Guareschi (Orgs.), Juventude, marginalidade social e direitos humanos: da psicologia às políticas públicas (pp. 48-63). Porto Alegre: EDIPUCRS.         [ Links ]

Zappe, J. G., & Dell'Aglio, D. D. (2016). Adolescência em diferentes contextos de desenvolvimento: Risco e proteção em uma perspectiva longitudinal. Psico, 47(2), 99-110.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Alex Sandro Gomes Pessoa
E-mail: alexpessoa2@gmail.com

 

 

1 Alex Sandro Gomes Pessoa é doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" e docente da Universidade Federal de São Carlos.
2 Fabio Scorsolini-Comin é doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo e docente da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Editor da Revista da SPAGESP.

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