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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.22 no.1 Ribeirão Preto Jan./June 2021

 

EDITORIAL

 

O que esperar depois do (in)esperado? Saúde mental no trânsito (pós)pandemia

 

 

Fabio Scorsolini-Comin2

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

É preciso ser moderno e se sentar em cima das diferenças. – O senhor pode se sentar no que quiser e onde quiser. Eu, não. A disputa entre o "Sim" e o "Não" vai permanecer por muito tempo, porque é uma questão de vida ou morte. Ou se deixam vivos os que pensam diferente ou se acaba com eles. Eu jamais esquecerei o que aconteceu.
(Antonio Skármeta, O dia em que a poesia derrotou um ditador)

 

O já findo 2020 marcará história como um ano do inesperado. Não que ele não tenha sido esperado e que não tenham sido nutridas expectativas em relação ao mesmo, com planos e projetos que normalmente assolam muitas pessoas em momentos de transição: de um ano a outro, com o fechamento de um ciclo e a abertura para o próximo. Como todos os anteriores, 2020 foi esperado.

Não se trata, pois, de um ano inesperado, mas justamente do inesperado. Em que esse inesperado pode subverter a ordem dos planos, obrigando-nos a mudanças de rotas, rotas estas que ainda não podem ser redefinidas com nível mínimo de controle, certeza ou previsibilidade. Podemos dizer, portanto, que passamos a trabalhar, a estudar, a conviver, a viver e a existir considerando fortemente essa variável – antes apenas uma nota de rodapé. O inesperado tomou o título, inclusive neste editorial em tela. Mas essa metáfora necessária não é algo circunscrito à pandemia ou inaugurado originalmente neste texto (Fernandes, 2014; Leite, 2020; Scorsolini-Comin, 2014). Assim, desconstruímos a primeira possível certeza: a pandemia não é o novo.

O ano de 2020 foi marcado como aquele em que tivemos que conviver de modo muito próximo com o inesperado – em nossas casas, em nossas vidas, nos calendários, em nossos corpos. Depois de um ano de inesperadas dificuldades em níveis globais, com repercussões que serão sentidas a longo prazo ainda, o que podemos esperar de um cenário pós-pandêmico ou, ainda, de uma pandemia ainda em trânsito, com ondas ainda inesperadas e com pouca possibilidade de manejo pelos organismos oficiais em saúde e pelos governos ao redor do mundo? Como se alocar nesse cenário repleto de atipias que não apontam para prognósticos conclusivos? Como se localizar em uma geografia acidental e que fornece poucas condições para o estabelecimento de racionalidades e de certezas? Como trabalhar com a manutenção e a promoção da saúde mental em um cenário sobre o qual temos muito a dizer mas, paradoxalmente, poucas palavras para expressar, de fato, o que já se pode saber? E o que sabemos, e o que podemos dizer?

A impermanência e o trânsito parecem ser termos adequados ou minimamente mais apropriados para tempos nos quais quase tudo foi suspenso, externa e internamente. Qual a próxima onda ou, ainda, que onda nos tem conduzido? Ainda temos muito a descobrir.

No que se refere ao trabalho em saúde mental os desafios são diversos e são renovados a cada nova onda que se apresenta, o que pressupõe uma discussão mais global (World Health Organization [WHO], 2020). Em um cenário no qual as certezas estão suspensas, permanece a necessidade de trabalharmos ou desenvolvermos melhor o que tem se apresentado como a gestão da incerteza. Ou, como recomenda Spink (2020) no contexto da Psicologia Social e da Saúde, a gestão de riscos em contextos de incerteza. Há que se destacar que, para tal gestão, primeiramente deve-se conceber que a incerteza nem sempre é algo eminentemente negativo ou desadaptativo. Trabalhar as nossas incertezas não necessariamente no sentido de dissolvê-las, mas de termos consciência de como as mesmas fazem parte da nossa vida e da nossa experiência de sempre vir-a-ser é uma ferramenta potente para atravessarmos esse período de maior tormenta.

As expectativas do que será são importantes. Podermos nos lançar a novos planos é importante. Mas esse processo deve ocorrer sem que nos recusemos a olhar para a incerteza como um componente que sempre faz parte de quem somos. A incerteza não foi inaugurada em 2020, mas a necessidade de gerir esse movimento no sentido de contemplá-lo, de convidá-lo para a conversa, parece ser sim algo inovador. Como conversamos com a nossa incerteza, com o nosso não-saber, com o que nos controlamos?

Em cenários de cuidado em saúde essa não é uma reflexão nova. O que ocorre é que essa discussão foi, muitas vezes, abafada pela onipotência que costura os modelos biomédicos e positivistas nos quais o indivíduo sobrepõe-se ao coletivo, no qual a ciência é uma redoma inquestionável e no qual tudo pode ser controlado pelo humano ou pelas inteligibilidades criadas e dominadas por ferramentas eminentemente humanas. Esse processo nos ajudou a visualizar alguma possibilidade de controle e de gestão da (in)certeza – o único caminho possível nesses modelos é tornar certo o que é incerto, é tornar preciso o que é impreciso, é curar o que está adoecido, sendo que as noções de certeza, precisão e eficácia são cristalizadas e não passíveis de qualquer reflexão ou instabilidade.

Fomos formados nessa lógica e formamos, muitas vezes, nessa lógica. Esses modelos são tão fortes – onipresentes mesmo – que acabam calando qualquer tentativa de ruptura efetiva: qualquer incerteza ou instabilidade passa a ser algo a ser combatido. Produzem-se, assim, evidências para a melhor forma de apagar a incerteza e para a tentativa de bloquear o imprevisto. Recordo-me, nesse sentido, de uma passagem do artigo do importante grupalista brasileiro Waldemar Fernandes (2014) sobre um de seus atendimentos:

Nunca me esqueço de uma sessão de grupoterapia, em que um dos participantes, ao final de um cansativo dia no trabalho, dirigiu-se para sua residência para o merecido repouso. Entretanto, após ter um pneu furado no caminho de casa, com chuva, ao colocar a chave na fechadura, a chave quebrou, ficando uma parte presa no miolo. Ele nos contou que naquele momento gritou: "tinha de acontecer hoje?". Na ocasião, não pensei duas vezes, e, imediatamente, lhe perguntei: que dia você achava que seria mais apropriado para aquele acontecimento? (p. 7).

Fernandes (2014) prossegue o seu raciocínio e discute a necessidade que possuímos, como humanos, de controlar até o imprevisto, como se pudéssemos "agendá-los" para um momento de maior conveniência. Ao tentarmos controlar o que não podemos deixamos escapar a importante possibilidade de que o imprevisto nos coloque diante também de respostas originais e para as quais ainda não estávamos ou julgávamos estar preparados. Isso nos abre diferentes possibilidades não apenas criativas, mas também de aceitarmos a incerteza como um componente que nos relembra, a todo o momento, a nossa condição finita como humanos. E isso nos humaniza.

O trânsito pela pandemia e pela pós-pandemia nos trarão outras tantas reflexões. Vão nos obrigar a rever nossos artigos, os dados que apresentamos nos mesmos, as reflexões que instauramos como inovadoras em nossas clínicas. Esse momento e este texto são muito próximos, assumindo a instabilidade que os mobiliza e os aviva. Essa instabilidade não é uma invenção de 2020 – o que ocorre é que nunca nos pareceu tão importante olhar para isso.

Em saúde mental precisamos trabalhar com menos negações, com menos receitas, com menos protocolos que nos tragam certezas que não conseguem ser destruídas facilmente. Isso pode ser exemplificado, por exemplo, pelas discussões sobre os modelos de atendimento em psicoterapia online. De embates ferrenhos sobre as questões éticas, relacionais e transferenciais desses modelos de atendimento até 2019 passamos pela onipresença dessa possibilidade de contato (Marasca, Yates, Schneider, Feijó, & Bandeira, 2020; Rodrigues & Tavares, 2016).

Nossos embates, nossas reflexões e nossas evidências são também provisórias. Desconstroem-se ou são desconstruídas. Então não temos nada de concreto em que possamos nos fiar nesse momento para cuidarmos de nossa saúde mental? Temos à nossa disposição os conhecimentos produzidos até o momento e que não podem ser negados – o que não significa que não possam mudar ou ser revisitados em um futuro bem próximo, por exemplo. Temos nossa responsabilidade científica e social pelo que produzimos e pelos impactos que esses produtos podem ter em nossa sociedade. Temos o desafio de informar nossas coletividades, compartilhando conhecimentos e combatendo a desinformação, as notícias falsas e também o movimento social que prioriza a distorção como forma de contornar uma realidade que será implacável.

Assim, é importante enfatizar que a perspectiva de cuidado em saúde mental aqui defendida não se posiciona de modo individual, mas como prática coletiva (Kabad et al., 2020). Considerando as repercussões globais da pandemia, embora não nos recusemos a discutir as implicações e itinerários individuais, é mister buscar formas de atuação, sobretudo em saúde e em educação, que gerem o compartilhamento, o reconhecimento de si no outro, o diálogo, o encontro e a possibilidade de que as vozes coletivas digam sempre de um nós complexo e permanentemente construído, tecido e (re)posicionado (Scorsolini-Comin, 2020). O sentido político desse posicionamento permite-nos extrapolar os limites de uma pretensa clínica individual –a recusa em caber nas mesmas formas deve ser um posicionamento coletivo, reaquecido coletivamente, relembrado por nossas memórias sociais. Deve nos permitir adentrar em territórios outros e que nos tragam inteligibilidades para a nossa discussão perene: saúde, educação, economia, política e o fazer-se humano.

Temos, sobretudo, competências para problematizar as (in)certezas e operacionalizarmos uma atuação mais flexível, mais desdobrável e convicta de que o incerto, o inseguro, a dissonância e o contraditório podem sim nos habitar quanto profissionais de saúde, podem habitar nossos cenários de prática, nossos clientes/pacientes/usuários, nosso modo de pensar e promover cuidado em saúde mental, nossas estratégias de ensino e aprendizado, o modo como pensamos a formação e a pesquisa, nossos alunos. Esse reconhecimento não é uma solução nem almeja esse status. A incerteza pode ser um recurso. Não apenas para 2021.

 

REFERÊNCIAS

Fernandes, W. J. (2014). Sobre o inesperado: administrando a adversidade do imprevisto e do diverso no trabalho grupal. Revista da SPAGESP, 15(2), 4-11.         [ Links ]

Kabad, J. F., Noal, D. S., Passos, M. F. D., Melo, B. D., Pereira, D. R., ... & Freitas, C. M. (2020). A experiência do trabalho voluntário e colaborativo em saúde mental e atenção psicossocial na COVID-19. Cadernos de Saúde Pública, 36(9), e00132120. https://doi.org/10.1590/0102-311X00132120        [ Links ]

Leite, K. C. (2020). A (in)esperada pandemia e suas implicações para o mundo do trabalho. Psicologia & Sociedade, 32, e020009. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240215        [ Links ]

Marasca, A. R., Yates, D. B., Schneider, A. M. A., Feijó, L. P., & Bandeira, D. R. (2020). Avaliação psicológica online: considerações a partir da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) para a prática e o ensino no contexto a distância. Estudos de Psicologia (Campinas), 37, e200085. https://dx.doi.org/10.1590/1982-0275202037e200085        [ Links ]

Rodrigues, C. G., & Tavares, M. A. (2016). Psicoterapia online: demanda crescente e sugestões para regulamentação. Psicologia em Estudo, 21(4), 735-744. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i4.31840        [ Links ]

Scorsolini-Comin, F. (2014). O inesperado como convite ao aprendizado: experiências de grupos em saúde mental. Revista da SPAGESP, 15(2), 1-3.         [ Links ]

Scorsolini-Comin, F. (2020). Programa de tutoría com estudiantes de enfermeira em el contexto de la pandemia de COVID-19 en Brasil. Index de Enfermería, 29(1), e12901.         [ Links ]

Spink, M. J. P. (2020). "Fique em casa": a gestão de riscos em contextos de incerteza. Psicologia & Sociedade, 32, e020002. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32239826        [ Links ]

World Health Organization. (2020). Mental health and psychosocial considerations during COVID-19 outbreak. https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/mental-health-considerations.pdf        [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin
E-mail: fabio.scorsolini@usp.br

 

 

1 Fabio Scorsolini-Comin é professor do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e Editor da Revista da SPAGESP.

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