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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.22 no.1 Ribeirão Preto Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

Pressupostos para a escuta psicanalítica em instituição de acolhimento de crianças e adolescentes

 

Assumptions for psychoanalytic listening in a children's and adolescents' hostelling institution

 

Presupuestos para la escucha psicoanalítica en una institución de acogida para niños y adolescentes

 

 

Fernanda Mariana Silva Souza1; Fuad Kyrillos Neto2; Maria Gláucia Pires Calzavara3

Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partimos do trabalho em uma instituição de acolhimento para crianças e adolescentes propondo uma escuta orientada pela psicanálise. Considerando as tensões entre instituição e psicanálise, a questão que nos orienta é de que forma a transferência pode contribuir para uma instauração de escuta, que permitirá a elaboração da situação de vulnerabilidade desses sujeitos. Utilizamos como método de pesquisa a revisão bibliográfica associada à psicanálise aplicada e recorremos aos fragmentos de recordação das situações vividas no cotidiano institucional. Concluiu-se que há um lugar de escuta sob transferência a ser considerada na instituição e que o Plano Individual de Atendimento (PIA) necessita ser efetivado sob transferência, para que seja implementado como instrumento que valorize o surgimento das singularidades dos acolhidos.

Palavras-chave: Psicanálise; Instituição; Transferência; Escuta; Sujeito.


ABSTRACT

We started from work at a host institution for children and adolescents, proposing a listening guided by psychoanalysis. Considering the tensions between institution and psychoanalysis, the question that guides us is how the transfer can contribute to establishing a listening that will allow the elaboration of the situation of vulnerability of these subjects. We used as a research method the bibliographic review associated with applied psychoanalysis and we also used fragments of remembrance of the situations experienced in the institutional daily life. It was concluded that there is a place of listening under the transfer to be considered in the institution and that the Individual Assistance Plan needs to be carried out under the transfer in order to be implemented as an instrument that values the emergence of the singularities of the sheltered.

Keywords: Psychoanalysis; Institution; Transfer, Listening, Subject.


RESUMEN

Partimos desde el trabajo en una institución de acogida para niños y adolescentes proponiendo una escucha orientada por el psicoanálisis. Considerando las tensiones entre institución y psicoanálisis, la cuestión que nos orienta es de qué forma la transferencia puede contribuir al establecimiento de un escuchar que permitirá la elaboración de la situación de vulnerabilidad de esos sujetos. Utilizamos como método de investigación la revisión bibliográfica asociada al psicoanálisis aplicado y recurrimos a los fragmentos de recuerdos de las situaciones de la vida cotidiana institucional. Concluimos que hay un lugar de escucha bajo transferencia a ser considerado en la institución y que el Plan Individual de Atención necesita ser efectivado bajo transferencia para que sea implementado como un instrumento que valore el surgimiento de las singularidades de los acogidos.

Palabras clave: Psicoanálisis; Institución; Transferencia; Escucha; Sujeto.


 

 

Este estudo é uma comunicação de pesquisa realizada a partir do trabalho como psicólogo que atua na perspectiva psicanalítica, designado, ao longo do texto, como psicanalista, em uma instituição de acolhimento para crianças e adolescentes, os quais, por medida protetiva, encontram-se afastados do contexto familiar. Trata-se de uma instituição de caráter social, vinculada ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Entretanto, nota-se a importância de ser oferecido, às crianças e adolescentes e suas famílias, um espaço de escuta, onde possam emergir suas singularidades. Nessa instituição, o psicanalista realiza o estudo dos casos por meio de um trabalho articulado com a rede socioassistencial dos municípios e o acompanhamento das famílias, para, assim, fazer uma espécie de elo entre a criança, a sua família e o Poder Judiciário. Dessa forma, com sua escuta e observação, irá auxiliar o Poder Judiciário a tomar decisões importantes na vida das crianças acolhidas e suas famílias.

No entanto, observa-se que a escuta pode suscitar, tanto nas famílias quanto nas crianças abrigadas, diversas fantasias atinentes ao abrigamento e ao desligamento da instituição. Essas fantasias bem como os sentimentos que as crianças e adolescentes possuem em relação ao afastamento da família incidem na transferência que esses sujeitos estabelecem com o psicanalista. Diante desse contexto e dos desafios de se sustentar uma escuta com as particularidades que comporta a transferência nesse espaço, surgiu o seguinte questionamento: de que forma a transferência pode contribuir para a instauração de uma escuta, que permitirá a elaboração da situação de vulnerabilidade social vivida por esses sujeitos?

Para tal intento, servimo-nos da experiência de trabalho em uma instituição de acolhimento, pertencente à modalidade Abrigo Institucional, em uma cidade de médio porte no interior de Minas Gerais. Utilizamos como método a psicanálise aplicada associada à revisão bibliográfica sobre as tensões entre a escuta psicanalítica e o discurso institucional. Com os elementos colhidos nesses textos, que apontam para a tensão entre as aspirações universais do discurso institucional e a ênfase no particular própria da teoria psicanalítica, direcionamos nossa discussão para instituições de acolhimento para crianças e adolescentes e as possibilidades de trabalho do psicanalista nesse espaço. Seguimos dois eixos de trabalho: a pesquisa bibliográfica e a recordação da escuta pontual dos fragmentos de discursos presentes no cotidiano institucional.

A pesquisa bibliográfica é consonante com os princípios da pesquisa em psicanálise. Para construir a teoria, Freud (1913/1996) utilizou a escuta do caso a caso: "(...) a psicanálise não é fruto da especulação, mas sim o resultado da experiência (...)" (p. 225). A metodologia de pesquisa, pensada na perspectiva da psicanálise, nos autoriza a afirmar que toda pesquisa ocorre sob transferência, pois esta ocupa a posição de epicentro da cura e também desvela a pregnância do próprio fenômeno da transferência nas relações entre sujeitos (Beividas, 1999). Assim, entendemos que a presença do pesquisador no campo é o bastante para alterar as relações e os discursos produzidos.

Do mesmo modo, a recordação da escuta de fragmentos do cotidiano institucional é retida, demonstrando que o problema de pesquisa se deu a partir do fenômeno transferencial, pois a transferência é condição de pesquisa. Tais fragmentos são referentes a crianças acolhidas na instituição e baseiam-se nos traços mnêmicos de uma das autoras do artigo, que foram reavivados durante a escrita do trabalho. Lembramos que a teoria da representação freudiana considera que as representações possuem traços mnêmicos que surgem a partir de experiências vividas pelos sujeitos. Os estímulos advindos do mundo externo permitem uma reorganização dessas representações de tal modo que elas podem ser definidas como produções mentais que tornam o objeto subjetivamente presente.

Em "Construções em Análise", Freud (1937/1996) enfatiza que a tarefa do analista é transmitir as construções e explicações que a acompanham e completam aquilo que foi esquecido. Ratificando a posição freudiana, Dunker (2013) elucida quais seriam as condições do método para a construção de evidências clínicas. Ele destaca três características relevantes: recordação, implicação e transferência. A recordação de uma das autoras, utilizada neste manuscrito, diz respeito à história e contingências que ela implica; a segunda requer a interrogação ética sobre o estranhamento com o qual o pesquisador se depara; e a terceira pressupõe a suposição de saber. Essas características reveladas na pesquisa pelos fragmentos recordados do discurso do outro, diz-nos Dunker (2013), "fazem, da psicanálise aplicada e do discurso analisante a ela ligado, um método de invenção, um método de descoberta" (p. 71).

Essa modalidade de pesquisa aponta, definitivamente, o que poderíamos considerar como uma pesquisa em psicanálise, que, segundo, Tavares e Hashimoto (2013), "pressupõe um desenvolvimento teórico atravessado pelas experiências do pesquisador enquanto analista e/ou paciente, mesmo naquelas de cunho e desenvolvimento essencialmente teóricos (p. 173).

Acreditamos que a pesquisa em instituição de acolhimento para crianças e adolescentes, cuja proposta é construir os pressupostos conceituais de uma escuta em instituição com base nos conceitos psicanalíticos de sujeito e transferência, possa ser mais uma contribuição social dentre tantas outras, que buscam compreender o modo de inserção do analista nas instituições. Uma inserção em que o analista, por seu ato, não se limite a atender à instituição, mas que ele possa escutar o sujeito.

BREVE PERCURSO PELA HISTÓRIA DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS

A história da institucionalização de crianças e adolescentes teve seu início circunscrito sob a tutela da igreja com a chegada dos jesuítas no período colonial e do abrigamento das crianças na Roda dos Expostos. Esta é referida como a forma de institucionalização mais duradoura ocorrida no Brasil, sendo extinta no ano de 1950 (Marcílio, 2016).

No século XX, a igreja perdeu sua autonomia em detrimento das ações sob o controle do Estado. Fruto desse contexto, em 1927, o Código de Menores1 inaugurou esse momento. A partir de sua criação, a assistência a crianças e adolescentes carentes ou autores de atos infracionais passou a ser obrigação do Estado. Fato curioso a destacar é que, nesse Código, já se apresentava implícito que as instituições, as quais acolhiam as crianças, traziam em seu âmago a uniformização ao atendimento em detrimento da salvaguarda das particularidades (Gulassa, 2010).

O extenso movimento pela redemocratização do País, no final da década de 1970, criou condições para que essas questões relativas às crianças e aos adolescentes pudessem ser superadas. A promulgação da Carta Magna de 1988 representou um marco no que concerne ao olhar para os direitos das crianças e foi fundamental para a superação das práticas assistencialistas vigentes até então, o que resultou, no ano de 1990, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990). O ECA e as políticas públicas da Assistência Social representaram uma mudança significativa no que diz respeito à garantia de direitos das crianças e adolescentes no Brasil, provocando mudanças na perspectiva das medidas de assistência a eles direcionadas. Com isso, a institucionalização de crianças e adolescentes, também, tomou novos rumos. A lógica da reclusão e do recolhimento deu lugar à do acolhimento e do abrigamento. A prevalência da reinserção familiar, a oferta do atendimento personalizado, a convivência comunitária, a provisoriedade e a excepcionalidade da medida passaram a ser princípios norteadores do acolhimento institucional, delimitando, assim, uma mudança ideológica em relação à institucionalização.

Na esteira da consolidação de políticas públicas nacionais, a partir da aprovação da Constituição Federal, foi instituída a Seguridade Social (Assistência Social, Saúde e Previdência Social), que garantiria, juridicamente, direitos a todos os cidadãos. Todavia, somente com a promulgação da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (Brasil, 1993), a assistência social passou a ser direito do cidadão e competência do Estado (Yamamoto & Oliveira, 2010). Essa Lei afirma, então, a assistência como direito social. Entre seus objetivos, está a proteção à família, à criança e ao adolescente.

Previsto na LOAS, o SUAS teve suas bases de implantação consolidadas no ano de 2005. O SUAS organiza a assistência social em dois níveis de proteção: proteção social básica e proteção social especial. A proteção social básica visa à prevenção de situações de vulnerabilidade e risco social por meio do desenvolvimento de potencialidades e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Dentro da proteção social básica, os serviços são organizados e oferecidos pelo Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), que é um equipamento estatal da Política Nacional da Assistência Social e se localiza nas áreas de risco e vulnerabilidade social (Brasil, 2009b).

Já a proteção social especial é destinada a famílias e indivíduos, que já se encontram em situação de risco e tiveram seus direitos violados por ocorrência de abandono e maus-tratos entre outros. Tem como objetivo contribuir para a reconstrução de vínculos familiares e comunitários bem como o fortalecimento das potencialidades e aquisições e a proteção de famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de violação de direitos (Brasil, 1993). Além disso, a proteção social especial é dividida em média e alta complexidades.

As ações da proteção social de média complexidade são executadas pelos Centros Especializados da Assistência Social (CREAS). Esse equipamento realiza um trabalho voltado para famílias e indivíduos, que tiveram seus direitos violados e cujos vínculos familiares ainda não foram rompidos, enquanto a proteção social de alta complexidade tem como objetivo garantir alimentação, moradia e higienização a famílias e indivíduos, que estão em situação de ameaça e necessitam ser retirados de seu núcleo familiar (Brasil, 2009b).

As ações de proteção especial possuem um desafio importante: mitigar a presença de significantes como "abandono", "menor", "carência", "delinquência", "crianças em situação de risco" e outros. Na circulação do discurso institucional, tais significantes, ainda, ressoam nas ações de atendimento oferecidas às crianças e adolescentes. Com isso, novos significantes foram tecidos no discurso social; dentre eles, destacam-se: "bem-estar" e "sujeito de direitos". Esse último significante engloba, metonimicamente, vários direitos, que, como vimos, no passado, foram negligenciados à criança e ao adolescente. A criança tem direito à saúde, educação, moradia, liberdade e dignidade entre outros. Sendo assim, a criança passa a ser cidadã; entretanto, nem sempre sujeito. Dessa mesma forma, o primeiro significante, também, pode provocar um assujeitamento na criança e no adolescente na medida em que este "bem-estar" é, muitas vezes, pensado em uma perspectiva do universal. O que prevalece é o bem-estar de todos. Assim, o bem-estar de cada um deve corresponder ao bem-estar universal. Entre "bem-estar" e "sujeito de direitos", necessitamos, ainda, pensar sobre o sujeito que atravessa essas concepções.

Desse modo, para se pensar a dimensão do sujeito, adentramos no campo da ética. A questão primordial da ética clássica é pensar como o ser pode aperfeiçoar sua conduta para se aproximar cada vez mais do Bem. A lei não tinha um valor em si mesma, mas somente quando se apresentava como representante de um Bem maior. A ação dos indivíduos, que os faria agir melhor, se guiava a partir de sua condição como cidadão no mundo, cujo propósito era se aproximar de um Bem maior para si mesmo, e não pela lei em si.

Essa questão passou por transformações no século XVIII. Nessa data, "a partir de Kant a ética deixa de marcar o caminho na direção do Bem para tornar-se uma relação entre as ações de um sujeito – individual ou coletivo – e uma lei universal" (Gondar, 2004, p. 33). Nesse momento, surgiu o sujeito em sua relação com a lei moral, não mais subordinada ao Bem, mas uma lei que vale por si mesma; ou seja, a Lei determinará o que é Bem, e não o Bem determinará a Lei (Gondar, 2004).

Muito já se fez em nome de um Bem comum. E uma das consequências da ética do Bem, diz-nos Altoé (2004), é decidir o que é bom ou não é bom para o outro. Em nome de se fazer o Bem, de separar a criança de todo o mal que incidia sobre ela, o que ocorria era o confinamento das crianças em internatos. No entanto, quando se apresenta o sujeito de direitos destacado no ECA (Brasil, 1990), é a ética kantiana que deverá tomar a cena. Têm-se, assim, duas orientações em relação à ética, que nos servem de guia para se pensarem a criança e o adolescente institucionalizados: uma, em relação ao Bem, na qual não há lugar para o sujeito do inconsciente; e outra, que leva em alta conta a subjetividade.

Sendo assim, o psicanalista se posiciona de forma favorável aos avanços em referência ao "bem-estar" e ao "sujeito de direitos", representados pelo ECA, na perspectiva de proteção a crianças e adolescentes (Brasil, 1990). Porém, asseveramos que a posição ética das políticas assistenciais deve consistir em se preocupar com o respeito a esses direitos, associando-os a uma escuta, que possibilite a emergência do sujeito do inconsciente, que se constitui como produto e efeito da linguagem. Esta noção de sujeito, que se caracteriza por uma ausência de controle absoluto de seus pensamentos, tem como principal marca a centralidade da falta onde se localiza o desejo (Baratto, 2012). Considerar a ética como um modo de reflexão para se pensar o sujeito na instituição nos orienta a considerar mais à frente o lugar do psicanalista nesta.

CARACTERIZANDO A INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO

Os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes estão definidos e regulados como Serviços de Proteção Especial de Alta Complexidade do SUAS. Eles podem ser executados nas modalidades de Casa Lar, Abrigo Institucional, Família Acolhedora ou República. Todavia, a instituição de acolhimento referida neste artigo pertence à modalidade Abrigo Institucional. Essas modalidades se caracterizam por serem um serviço de acolhimento provisório, oferecido em áreas residenciais com cuidadores em condições de oferecer atendimento com padrões de dignidade. Entretanto, o que diferencia essas modalidades é o número de crianças lotadas em cada unidade: na Casa Lar, instituição pesquisada, deverá haver o máximo de 10 crianças; e no Abrigo Institucional; o máximo de 20 (Brasil, 2009a).

O serviço de acolhimento referido neste artigo encontra-se no nível da proteção social especial de alta complexidade. Para contextualizar o abrigo em questão, faremos um recorte da trajetória da institucionalização de crianças nessa cidade.

No ano de 1998, foi construído o primeiro abrigo municipal. Essa instituição chegou a acolher mais de 70 crianças e adolescentes. No discurso de funcionários que trabalharam na instituição desde a sua fundação e de crianças que estiveram acolhidas nesse período, um significante aparece de forma recorrente: depósito de crianças. De acordo com esses funcionários, nessa entidade, não havia estrutura física adequada e, tampouco, profissionais para o número de crianças acolhidas. Eles afirmam, também, que as crianças não tinham contato com as famílias e, praticamente, não transitavam pela cidade. Desse modo, a convivência comunitária e familiar não era estimulada.

A princípio, o abrigo municipal acolheu, institucionalmente, tanto as crianças e os adolescentes dessa cidade como os das demais cidades da Comarca. Até que, devido ao grande número de crianças e ao atendimento precário oferecido a estas, foi criado um novo abrigo. Dessa forma, o abrigo municipal continuou a acolher crianças e adolescentes dessa cidade, enquanto a nova instituição, de caráter regional, passou a acolher crianças e adolescentes residentes de cidades vizinhas.

Inicialmente, o abrigo regional teve sua sede no município vizinho, que administrava o repasse dos municípios para a manutenção da instituição. No entanto, a criação dessa nova instituição não superou a precariedade do atendimento a crianças e adolescentes acolhidos. Dessa maneira, a magistrada, que atuava à época, interferiu em prol de melhorias no atendimento, junto às prefeituras, obrigando os municípios, que acolhiam crianças e adolescentes na instituição, a se organizarem e reestruturarem o serviço de acolhimento. O abrigo regional passou a ser administrado por um consórcio intermunicipal de saúde por meio de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) assinado pelos prefeitos dos municípios consorciados.

Atualmente, a equipe técnica dessa instituição é composta por uma psicóloga, uma assistente social, uma pedagoga e uma diretora. Uma psicóloga clínica, também, foi contratada e integra o quadro de funcionários da instituição, porém ela não pertence à equipe técnica. A contratação de uma equipe técnica foi fruto das mudanças a respeito da concepção que se tinha em relação ao acolhimento bem como da consequente evolução na esfera jurídica no que tange aos direitos de crianças e adolescentes. Essas mudanças repercutiram na oferta dos serviços de acolhimento e em seus parâmetros de funcionamento.

Os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes integram os Serviços de Alta Complexidade do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e devem pautar-se nos pressupostos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, da Política Nacional de Assistência Social. De maneira geral, os serviços de acolhimento a crianças e adolescentes deverão estruturar seu atendimento pautado nos princípios de provisoriedade do afastamento do convívio familiar, fortalecimento desses vínculos e respeito à autonomia da criança, do adolescente e do jovem (Brasil, 2009a).

No intuito de garantir um atendimento individualizado e personalizado, foi criado o Plano Individual de Atendimento (PIA), cujo objetivo é ser um instrumento, individualizador da medida protetiva, que permite à criança e ao adolescente se manifestarem sobre sua história. Entretanto, o que se percebe é que:

Na lei, o que observamos concretamente é a especificação de como o PIA deve ser organizado e gerido. Na letra da lei, a participação do adolescente aparece apenas no inciso 2 do artigo 54, que estabelece os componentes do PIA. No inciso, lê-se: 'os objetivos declarados pelo adolescente' (Jimenez et al., 2012, p. 8).

Autores como Scarparo (2008) e Rosário, Marcondes e Kyrillos Neto (2017) também, apontam em seus trabalhos o desafio e a importância de uma escuta singular mesmo em uma política, na qual o que se tem "é para todos". Tem-se, assim, a pertinência desta reflexão com a preocupação de que a garantia dos direitos do cidadão não suprima o sujeito.

Contudo, destacamos a contribuição que a teoria psicanalítica pode oferecer, a fim de que o PIA não se torne um mero documento de especificação da individualidade e que, dessa forma, não contribua para o disciplinamento dos indivíduos e a gestão de populações em situação de vulnerabilidade social (Jimenez et al., 2012). Dessa maneira, o PIA terá seu lugar e significado como um instrumento, que poderá escutar o sujeito e seus impasses em situação de abrigamento.

TRANSFERÊNCIA E SUJEITO: APORTES PSICANALÍTICOS PARA UM MÉTODO DE ESCUTA

A Doutrina Jurídica da Proteção Integral tem como base a concepção de que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos universalmente reconhecidos. A partir disso, conduzimo-nos à reflexão de que não se pode pensar essa definição de sujeito de direito, proposto nas concepções jurídicas, sem nos remetermos ao sujeito do desejo, este, sim, que se constrói no social e deverá ser capaz de viver segundo as leis.

Para a psicanálise, o sujeito não nasce pronto. Ele se constitui a partir da relação que estabelece com o Outro – lugar dos significantes, da linguagem e da fala. Na perspectiva lacaniana, resgatar a importância do inconsciente resulta no fato de se reconhecer que o sujeito proposto se manifesta no momento da divisão psíquica fundamental. Por essa divisão, o sujeito se define subjetivamente como sujeito do inconsciente, como efeito da linguagem (Calzavara & Silva, 2018). Ao advir pela linguagem, o sujeito se constitui como dividido, marcado por uma falta primordial, alienando uma parte de si mesmo no inconsciente e se inscrevendo no Outro como sujeito desejante (Lacan, 1953/1998). Por isso, o advento do sujeito na clínica de orientação lacaniana é resultado da relação intrínseca do desejo, da linguagem e do inconsciente.

Desse modo, a condição de divisão do sujeito nos esclarece sobre o mal-entendido no que concerne à demanda e ao desejo. A demanda revela que nada que alguém possa querer é suficiente para satisfazer o desejo. Assim, ela circunscreve uma distância considerável do desejo, pois desejar é sempre desejar outra coisa. Entretanto, por demanda, entende-se o pedido, o apelo em busca de alguma coisa, um complemento, que possa restituir o sujeito a um estado anterior que ele supunha ter existido (Moreira & Kyrillos Neto, 2017). Por outro lado, o desejo, condição do advento do sujeito em sua divisão fundamental, perdido desde sempre, traz a verdade como causa. Dessa maneira, no que concerne ao sujeito e àquilo que ele demanda, há uma distância notável daquilo que ele deseja.

Na instituição de acolhimento, a escuta, pelo psicanalista, de um discurso excessivamente reivindicativo, necessita ser interrogada, e não atendida em seu querer imediato. Responder, indiscriminadamente, às demandas dos sujeitos é uma forma de obliterar o desejo. O que importa é escutar a demanda e trabalhá-la, por intermédio de intervenções no discurso, para que certa implicação do sujeito se faça e para que algo de mais singular dele possa emergir.

No trabalho institucional, a psicanálise indica sua contribuição por meio da escuta sob transferência. Esta é o modus operandi da clínica psicanalítica e sua conceituação passou por uma transformação de Freud a Lacan. Segundo Freud (1912/2017), transferência é o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam na relação do paciente com o psicanalista no procedimento da relação analítica. Por sua vez, Lacan (1960-1961/2010) situa, no fundamento da transferência, uma função inédita em Freud nomeada de Sujeito Suposto Saber. Essa nomeação designa uma suposição de saber, por parte do analisando, de que o analista está de posse do saber sobre ele. Essa atribuição, progressivamente, perde o seu valor, uma vez que é na posição de suposto saber que o analista se inscreve. A posição de suposto saber é, então, a base do estabelecimento de um vínculo transferencial, que qualifica a escuta (Torres, 2016).

No que corresponde ao trabalho de escuta sob transferência na instituição, a posição do profissional da psicologia nessa relação requer esclarecimentos, como mencionado anteriormente, em relação à ética. A ética tornou-se, hoje, presente nos mais variados discursos para referir-se a situações nas quais se produzem os atos de um sujeito, seja este individual ou coletivo (Gondar, 2004). É de um recurso à ética que se vale o ECA com o intento de orientar as instituições de formação e assistência a ele submetidas. Do mesmo modo, é em nome da ética que se erguem críticas contra as práticas ali instituídas, como o não acolhimento da singularidade dos assistidos.

Os profissionais de psicologia são convocados na instituição, na maioria das vezes, a ocuparem o lugar de técnico. Nesse lugar, seriam solicitados a eliminar as irregularidades que se apresentam nas relações institucionais. Aos técnicos psi, conforme Gondar (2004), seria solicitada "a tarefa, maquínica por excelência, de tradutibilidade entre dois sistemas – da organização social para o indivíduo" (p. 31). A função do profissional psi e técnico, nesse contexto, seria de normalizador, reafirmando uma ordem que funciona sobre a anulação da subjetividade.

Todavia, o sujeito, que apresentamos como sujeito do desejo, não é uma categoria técnica, pois estamos no plano da subjetividade. Desse modo, essa categoria tem que ser pensada no contexto da ética, já que esta, sim, coloca em primeiro plano o sujeito. Do mesmo modo, é preciso pensar o lugar do psicólogo como um lugar ético, e não técnico, uma vez que é ao sujeito que esse profissional se endereça em sua prática. As questões técnicas nesse campo se tornam questões éticas quando estamos falando do sujeito (Gondar, 2004). Assim, consideramos que nos posicionarmos como psicólogos na instituição nos exige uma posição ética com o sujeito a partir da escuta do singular e com a instituição, a partir de sua prática, sem desconsiderar os valores contidos no ECA (Brasil, 1990). A complexidade da inserção do psicólogo orientado pela psicanálise aqui exposta nos revela que sua prática institucional não transcorrerá sem momentos de tensão. Ao mesmo tempo, o solo institucional é um campo fértil para uma prática profícua desse profissional.

LAR OU LARGA? TENSÕES E POSSIBILIDADES DA PSICANÁLISE NA INSTITUIÇÃO

Pensar na transferência, em suas possibilidades e atravessamentos em uma instituição de acolhimento para crianças e adolescentes, convoca-nos, de imediato, a pensar, também, na relação da psicanálise com a instituição. Foi após a Primeira Guerra Mundial e a grande demanda para tratar dos traumatizados da guerra que Freud se sentiu convocado a pensar em como a psicanálise poderia estar para além dos limites do consultório. Em "Caminhos da Terapia Psicanalítica", Freud (1919, 1918/2017) expressa sua pretensão em inserir a psicanálise em espaços institucionais. A proposta desse novo modo de utilizar a psicanálise, agora na instituição, atrairia, a princípio, duas situações: ela atingiria um número maior de pessoas e, dessa forma, beneficiaria, também, as classes menos favorecidas. Certamente, isso exigiu de Freud (1919,1918/2017) a tarefa de adaptar a técnica psicanalítica às novas condições, mas não sem a preocupação de que a aplicação da psicanálise, em larga escala, "nos force a fundir o ouro puro da análise em grande medida com o cobre do sugestionamento direto" (p. 202). Todavia, como vemos na passagem a seguir, Freud (1919, 1918/2017) não deixou de conclamar que a psicanálise, mesmo na instituição, será sempre ancorada em seus fundamentos: "Mas seja de que forma essa psicoterapia para o povo se configure, ou de que elementos ela se constitua, as suas partes mais eficazes e importantes certamente serão aquelas emprestadas da Psicanálise propriamente dita, livre desta ou daquela tendência" (p. 202).

No caso abordado, trata-se da presença da psicanálise em uma instituição de assistência social, que possui uma relação com o meio jurídico. A interface do trabalho psicanalítico nas instituições gera significativas discussões, uma vez que, como expõe Rosa (2016), não se trata de transpor o modelo clínico do setting analítico para o contexto institucional. Cada instituição se constitui a partir de uma missão e possui uma função, processos que a fundamentam e políticas que a regem. Em "Psicologia das massas e análise do eu", Freud (1921/2017) demonstra que as instituições operam por intermédio de traços identificatórios, que facilitam a constituição de ideias de valores universais e normas, as quais visam a uma homogeneização. Para Rinaldi (2003), contrariamente ao funcionamento das instituições, o discurso do analista interroga os ideais desde a singularidade do sujeito, abstendo-se de um saber prévio para fazer surgir a verdade inconsciente a partir da fala de cada sujeito. A instituição e a psicanálise, dessa forma, operam por lógicas diferentes. Enquanto uma busca a unidade dentro da coletividade, a outra visa à singularidade. Camargo (2007) aponta que essa diferença gera, entre elas, aparentemente, uma relação de negação. Entretanto, segundo o autor, uma expressão que poderia ser usada para descrever a relação entre psicanálise e instituição seria lógico-matemática disjunção inclusiva.

A demanda endereçada para o psicanalista chega como incômodos à equipe dos serviços, os quais causam mal-estar na instituição. E o que é formulado pela equipe, como pedido de tratamento, são reclamações de indivíduos ditos "desorganizadores"; ou seja, aqueles que não se adequam ao modelo instituído (Rosa, 2016). As reclamações referentes a esses sujeitos que não se adequam às normas institucionais são apontadas para o psicanalista como ponto central de seu trabalho. Não se questiona o que ocasiona o mal-estar na instituição, mas quem o provoca. É sobre esses sujeitos que a demanda de intervenção do psicanalista se volta, a fim de que ele tampone o mal-estar, que é próprio da instituição.

O acolhimento institucional implica a atuação de vários profissionais que prestarão atendimento e acompanhamento à criança e ao adolescente e sua família. Entre estes, podemos citar juízes, promotores, defensores públicos, conselheiros tutelares e funcionários do abrigo, e demais equipes das áreas de saúde, educação e assistência social, as quais integram a rede socioassistencial dos municípios. Todos esses atores institucionais, ao se debruçarem sobre a problemática do acolhimento institucional e de toda a complexidade que ela envolve, falam sobre a criança e sua família. A escuta desses profissionais integra a elaboração do PIA, que é o instrumento, que tem como objetivo planejar e organizar as ações e atividades a serem desenvolvidas com a criança e o adolescente e sua família durante o período de acolhimento e após seu desligamento da instituição. Enfim, a elaboração do PIA contempla a escuta da narrativa das crianças e dos adolescentes e suas famílias acerca de suas histórias de vida e dos percalços que os fizeram necessitar da instituição de acolhimento.

As crianças e os adolescentes que chegam à instituição de acolhimento trazem consigo a inscrição, no corpo e no psiquismo, do desamparo, da negligência e das mais variadas formas de violência que sofreram. A instituição de acolhimento, a partir de sua missão, é apresentada a essas crianças e a esses adolescentes como sua "nova casa", onde eles estarão afastados das situações que violavam seus direitos, e o abrigamento apresentado como o tempo em que a família terá para se conscientizar e modificar as condutas violadoras. As funcionárias são chamadas de "tias", remetendo a esta expectativa da extensão de uma relação familiar. Esse termo, ao mesmo tempo que evoca uma relação familiar, também denuncia um efeito da coletividade, que é a dificuldade de contemplar a singularidade.

A circulação institucional desses significantes, que remetem a um laço familiar, revela a expectativa de uma instituição de assistência social, que possui pronunciada interface com as instâncias jurídicas encarregadas de zelar pelas crianças e adolescentes. Parece-nos que a instituição almeja uma relação com os abrigados, que substitua integralmente a família. Porém, tal expectativa é carregada de frustração, uma vez que as modalidades de laço envolvidas são completamente distintas. O laço social construído no abrigo traz consigo a mediação da instituição, que representa uma política pública. Sabemos que o laço social constitui o homem e a civilização, introduzindo-o na linguagem e na cultura e, concomitantemente, no jogo relacional, afetivo-libidinal, e, também, no jogo político (Rosa, 2016). A inserção na cultura, como nos lembra Freud (1930/2010), faz surgir um antagonismo entre as exigências da pulsão e as da civilização. Assim, para se ter um maior grau de segurança para todos aqueles envolvidos no processo civilizatório, a vida em sociedade exige do sujeito alguma renúncia pulsional.

O abrigamento implica uma série de renúncias e perdas para as crianças e os adolescentes, tais como o convívio com amigos, o afastamento da comunidade da qual o sujeito é oriundo, o rompimento dos laços familiares e a perda da liberdade. A instituição responde a uma necessidade social e visa a suprir o que está previsto nas políticas de garantia dos direitos para as crianças e os adolescentes. Para a instituição, o abrigamento tem a finalidade de dar um lugar de cidadão à criança, promovendo a proteção e a garantia de seus direitos, tais como alimentação, moradia, educação, saúde, cultura e lazer. As cuidadoras, representando essa missão institucional, trazem, com frequência em seus discursos, que, na instituição, não falta nada às crianças e aos adolescentes. Elas enfatizam que as crianças possuem uma casa ampla e confortável, uma alimentação com um cardápio variado, carro e motorista, e possibilidades de realizarem passeios entre outros benefícios. Esse discurso surge, sobretudo, quando uma criança desempenha um comportamento que destoa das normas instituídas, quando algo de sua singularidade aparece. As renúncias, presentes em um abrigo público, não reduzem a relevância deste em um momento de desamparo do sujeito. Porém, o psicanalista que atua na instituição deve estar advertido de que os benefícios sociais distribuídos por ela, apesar de essenciais, não tamponam uma história familiar, que precisa ser significada pelos sujeitos por intermédio de uma escuta qualificada.

Diferentemente das cuidadoras e de outros atores institucionais que ouvem e veem as crianças a partir da missão institucional, o psicanalista escuta aquilo que escapa, o que há de singular. Temos um breve fragmento discursivo extraído de um dos momentos quando foi oferecido um espaço de escuta a uma criança, que havia acabado de chegar à instituição. A criança, segurando um boneco com uma brincadeira onde fazia um tom de voz diferente, dizia: "Eu não queria ter vindo para a casa larga". Percebe-se que a criança havia cometido um ato falho ao associar o significante "larga" com o nome da instituição. Perguntou-se a ela o que era a casa larga? Em um tom de surpresa, demonstrando que era algo muito óbvio, disse: "Você não sabe o que é casa larga? É aqui, onde eu vim morar, onde os pais largam as crianças". Para essa criança, diante de sua experiência subjetiva, seu mal-estar frente ao acolhimento institucional se faz presente nesse ato falho. O método de trabalho do psicanalista valoriza as manifestações inconscientes, como o ato falho, e aposta que eles possam ser traduzidos em palavras. O inconsciente testemunha, aqui, um saber que escapa, sobretudo pelo que comporta o afeto de se sentir abandonado, largado. O discurso institucional, voltado para sua missão, insiste na oferta de um "lar". Todavia, para esse sujeito, advém o significante "larga", demonstrando, por intermédio do discurso, a experiência vivida por ele. Esse significante marca, então, sua travessia da instituição familiar para a instituição de acolhimento.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A instituição, com o discurso voltado para sua missão coletiva, instaura posições. Os sujeitos, nesse contexto, tendem a se alienar no discurso institucional, seja por intermédio de uma paródia acrítica ou por uma impotência diante da recusa de acolhimento à sua crítica. Em nosso percurso, fica patente a importância da escuta do sujeito no contexto institucional bem como o arcabouço conceitual com o qual a psicanálise pode contribuir para essa escuta.

Lembramos que o PIA é o instrumento que deveria permitir que a singularidade dos sujeitos acolhidos possa aparecer tanto na instituição de acolhimento quanto na instituição judiciária, à qual os abrigos devem se remeter. As intervenções que fazem parte da elaboração do PIA constituem um dos primeiros contatos que os profissionais da instituição têm com a criança em sua chegada. Dessa forma, o PIA é um instrumento que pode se constituir como um facilitador, que permitirá ao psicanalista uma escuta singular desses sujeitos.

É importante nos atentarmos para o fato de que a manifestação da singularidade dos abrigados gera um incômodo na instituição por ameaçar a homogeneidade e as normas que visam ao controle dos sujeitos que ali se encontram. Essa singularidade, por vezes, ameaça o discurso institucional, seja pelo desconhecimento ou pela negação dos elementos desse discurso. O profissional que trabalha com a subjetividade precisa escutar o significante a partir de uma cadeia absolutamente singular, ou seja, descolada da cadeia de significantes enunciados pela instituição. É isso que a tensão entre os significantes "lar" e "larga" nos revela claramente.

Torna-se relevante reiterarmos que os pressupostos conceituais psicanalíticos são a chave para se pensar o sujeito de desejo que subjaz ao sujeito de direito em instituições, sejam elas quais forem. No entanto, o conhecimento dos princípios psicanalíticos, por si só, não basta. É preciso intervir no trabalho com a criança a partir de sua história como sujeito de desejo, a fim de que o olhar sobre ela seja transformado. É fundamental que os psicanalistas incidam na instituição e, assim, possam contribuir a partir de sua escuta. Desse modo, tal como nos diz Laurent (2007) sobre o analista cidadão, este pode e deve intervir com seu dizer silencioso no sentido de tomar partido de maneira ativa, silenciando a dinâmica que rodeia toda a organização social. Além do mais, continua o autor, os analistas não devem só escutar. Eles precisam transmitir à humanidade o interesse que a particularidade de cada um tem para todos e, desse modo, contribuir para que não se esqueça, em nome do universal, a particularidade de cada um.

Essas considerações nos permitem inferir que, além das questões teóricas referentes às contribuições da psicanálise para a escuta dos sujeitos, temos outra questão basilar. Para que o PIA seja implementado como instrumento que valorize a singularidade, é necessário que cada profissional, que pretende escutar, consiga renunciar às tentações de um saber absoluto representado pelo discurso instituído. Na impossibilidade desse fato, o PIA se reduzirá a mais um instrumento de controle das crianças e adolescentes que utilizam o serviço. Há, portanto, um lugar da escuta a ser considerado. No entanto, há, também, um saber fazer do psicanalista, a partir dessa escuta, para permitir que algo seja transformado, possibilitando o surgimento das singularidades dos acolhidos.

 

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Endereço para correspondência
Fuad Kyrillos Neto
E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br

Recebido: 27/05/2020
Reformulado: 26/08/2020
Aceito: 27/08/2020

 

 

1 Fernanda Mariana Silva Souza é psicóloga e mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Psicanalista e psicóloga em instituição de acolhimento para crianças e adolescentes em São João del-Rei.
2 Fuad Kyrillos Neto é doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei.
3 Maria Gláucia Pires Calzavara é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei.

4 Com a criação do Código de Menores, o termo "menor" passou a ser usado para designar crianças ou adolescentes pobres e desprotegidos.

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