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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.22 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2021

 

EDITORIAL

 

Quarentenados no século XX

 

 

Alice Costa Macedo1

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Amargosa-BA, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromissos, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora, pode não haver o ano que vem (Krenak, 2020, p. 6).

 

Em inúmeras conferências virtuais de lançamento de seu livro A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil, no final de 2020, Lilia Schwarcz (2020) afirma que o século XXI se inicia com a pandemia do novo coronavírus. O que os historiadores chamam de "início" deve ser algo que se dilata no tempo. Supõe-se, portanto, que esse marco de virada de século não seja tão instantâneo como um réveillon em contagem regressiva de segundos finais com a explosão da champagne. Até lá, temos a impressão de que seguimos quarentenados no final do século XX, inertes, em crise, em caos, em rasgos, fissuras e em corte profundo. Na secção entre o século e outro, parece haver um abismo, no qual caímos em queda livre e do qual não se vê perspectiva de escape.

17 de março de 2020: entramos em casa com a certeza de que, após 15 dias mantendo medidas de contenção da propagação do novo coronavírus, voltaríamos à vida anterior. As mensagens publicitárias invadiam-nos em isolamentos "supostamente temporários" e vendiam promessas jamais cumpridas – "tudo isso vai passar"; "é só mais um tempo"; "sairemos mais fortes"; "sairemos melhores". Não passou, embora tenha transcorrido mais de um ano. Lá se vão longos meses. Não nos tornamos melhores, embora a garantia que nos apresentaram parecia simples (para não dizer simplória): vivenciar a quarentena era quase uma dádiva, uma grande oportunidade de evolução da espécie humana.

Todos dentro de casa, acreditávamos que haveria maior igualdade de gênero na distribuição de tarefas domésticas; ofereceríamos mais atenção à relação com os filhos; perceberíamos de perto o valor do professor e do profissional de saúde; entenderíamos finalmente a importância da solidariedade. Ledo engano: os resultados foram bem diferentes do que o contrato publicitário previa. As mulheres exauridas fizeram/fazem malabarismos com 24 horas de jornadas triplas, quádruplas. A violência doméstica alcançou recordes em 2020. Segundo o Data-Folha, no Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), uma em cada quatro mulheres brasileiras foi vítima de alguma violência na pandemia; as agressões cometidas dentro de casa aumentaram de 42% em 2019 para 48% em 2020; 51,5% dos brasileiros relatam ter visto alguma situação de violência contra a mulher durante a pandemia.

A violência doméstica não envolve somente as mulheres, mas igualmente as crianças. A subnotificação desses episódios de agressão foi acirrada pelo fechamento das escolas (espaço de atenção e acolhimento de denúncias através dos próprios estudantes). Os professores das redes públicas (do ensino básico e superior) foram criticados, acusados de "preguiçosos", embora sobrecarregados com a gravação de aulas remotas, ou confecção de material, pressionados a retornarem ao trabalho (apesar do aumento dos casos e mortes por Covid-19), tiveram cortes e congelamentos de salários. O sistema de saúde entrou em colapso, os profissionais adoeciam física e mentalmente, o aumento de internações e mortes ocasionou a exaustão das equipes.

Logicamente, o colapso não se manteve apenas no campo da saúde. A crise é sanitária, econômica, social, política (com ameaças à própria democracia), ambiental, educacional e institucional. Neste cenário, o novíssimo conceito de "novo normal" soa tão abjeto quanto a própria e pura noção de "normal":

Normal é um adjetivo de duplo gênero, com origem no latim normalis, que significa aquilo que remete a algo feito com esquadros (sim, aquele instrumento usado para traçar ângulos que você já manuseou no colégio). Normal é tudo aquilo feito conforme a regra ou norma, sem defeitos, correto de acordo com algum ponto de vista. Para que algo seja normal é preciso ser considerado aceitável por uma maioria comum. Anormal seria quem contraria esta maioria normal. Reside na semântica e na etimologia da palavra o maior problema dela: normal é algo que exclui. E, no Brasil, exclusão faz parte de nossa bagagem cultural e social (Sbragia, 2020, p. 30).

Portanto, dizer que nosso cenário é novo e é normal nos aproxima das mais escalafobéticas e costumeiras expressões pandêmicas: "vida que segue"; "o Brasil não pode parar"; "temos que nos adaptar, é o novo normal". Vive-se a maior macro-tragédia humanitária das últimas gerações no Brasil. A contração da noção de pertencimento comunitário se reflete nas aglomerações, nas "máscaras de queixo", nos propagadores de vírus e de fake news, nos bares lotados, nas festinhas íntimas, nos fura-filas de vacinas. Já que estamos falando de início de século, vejamos uma análise filosófica "quarentenada" no século passado (o XX) e ainda tão atual, ao escancarar a falácia do "normal pandêmico" que tem muito pouco de "novo":

Acreditar numa inequívoca voz da consciência – ou, na linguagem ainda mais vaga dos juristas, num sentimento geral de humanidade – é não só fugir da questão como significa uma recusa deliberada em perceber os fenômenos morais, legais e políticos mais importantes do nosso século (Arendt, 2019, p. 166).

O "novo normal" transmite-nos ainda a ideia esdrúxula de que simplesmente nos adaptamos e que tudo segue normalmente, embora com nova e remota roupagem. A vida seguiu para quem? A vida não parou para quem? Para meio milhão de brasileiros não. Para seus familiares não. Para quase metade da população brasileira em situação de insegurança alimentar também não. No clássico literário "A Peste", perscrutamos respostas:

A peste, que, pela imparcialidade eficaz com que exercia seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre nossos concidadãos pelo jogo normal dos egoísmos, tornava, ao contrário, mais acentuado no coração dos homens o sentimento da injustiça (Camus, 2019, p. 164).

Quem, afinal, se adaptou ao normal, nesta máscara do novo? Para Krenak (2020, p. 2), "essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma humanidade". A doença, o cuidado, a morte, a cura, a fome, o medo, o luto, a incerteza, a vacina, o desemprego, o desgoverno, o desamparo, o descompasso, o trauma. Sim, o trauma. Após um ano de pandemia, há/haverá eventos não simbolizados que retornam/retornarão ininterruptamente.

Nos primeiros meses da pandemia, havia uma interrupção do fluxo cotidiano, o mundo "em stand-by", "depois eu volto", "depois eu faço", "quando acabar", "quando passar", a vida "em suspenso", "em suspense", o grito contido. Com o tempo, entendemos que se tratava de algo a longo prazo, adentrávamos um novo século. Não dava para simplesmente saltar, em apenas quinze dias de confinamento, a cratera que separa a robusteza entre um tempo e outro. Os grotões que marcam a virada dos séculos são longos e profundos. Para Preger (2020), não acreditávamos (e talvez ainda não acreditemos) no que está por vir:

A humanidade se achava protegida em sua "couraça" tecnológica, imunizada contra novos surtos epidêmicos, que estariam reservados apenas às regiões "atrasadas" do planeta. A ilusão da imunidade tecnológica foi desfeita e a pandemia do coronavírus revela o corpo social adoecido (Preger, 2020, p. 35).

Segundo o Conselho Federal de Psicologia (2021), multiplicou-se o número de terapeutas que atendem online no período de pandemia; evidenciou-se aumento no número de busca por atendimento psicológico. Aos poucos a suspensão torna-se rotina, tentamos enquadrar a realidade de luto, compreender o caos. Esforço inócuo diante do incognoscível. Tudo parece escapar de nossa tentativa de racionalização. Ao horizontar o olhar, o trauma descortina-se para um futuro pós-pandêmico: ansiedade, depressão, paranoia, pânico, ideias obsessivas, comportamentos compulsivos, abuso de álcool e substâncias psicoativas, insônia, medo, tristeza, luto.

Desde março de 2020, silenciamentos quanto ao futuro, os planos, os projetos, os sonhos, a esperança, a incerteza da pandemia. Benjamin (1994, p. 198) retoma o silêncio ao referir-se aos traumas provenientes das trincheiras: "no final da guerra, observou-se que os combatentes tinham voltado mudos do campo de batalha, não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável". Basevi (2013) discute quais são os limites da linguagem diante de uma tragédia e propõe possibilidades discursivas que incluam as lacunas, as impossibilidades, os paradoxos do essencialmente humano.

Impõem-se, então, grandes desafios para a Psicologia e seus conviventes, sejam eles habitantes da clínica tradicional (a humanidade inteira no enquadre de suas quatro paredes), sejam atuantes em circuitos comunitários, organizacionais, grupais, escolares, acadêmicos. Onde repousarmos nossos "divãs", estará lá o humano, à nossa espera. Não sei (ousei a liberdade de tomar a pena em primeira pessoa do singular) exatamente o que faremos, não sei como faremos. Mas estaremos atentos, em escuta fina, em acolhimento, cuidado, autocuidado e reflexão ética. O pós-pandemia nos clama. O século XXI nos exige. Eis aí o nosso ofício,

porque o mundo está numa situação ruim. Porém, tudo vai piorar ainda mais se cada um de nós não fizer o melhor que puder. Portanto fiquemos alerta – alerta em duplo sentido: desde Auschwitz nós sabemos do que o ser humano é capaz. E desde Hiroshima nós sabemos o que está em jogo (Frankl, 1984, p. 175).

 

REFERÊNCIAS

Arendt, H. (2019). Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Companhia das Letras.         [ Links ]

Basevi, A. (2013). Silêncio e Literatura: as aporias da testemunha. Alea, 15(1), 152-169.         [ Links ]

Benjamin, W. (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasiliense.         [ Links ]

Camus, A. (2019). A peste. Record.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia [CRP] (2020). Nova Resolução do CFP orienta categoria sobre atendimento on-line durante pandemia da Covid-19. https://site.cfp.org.br/nova-resolucao-do-cfp-orienta-categoria-sobre-atendimento-on-line-durante-pandemia-da-covid-19/

Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP] (2020). https://forumseguranca.org.br/

Frankl, V. (1994). Em busca de sentido. Vozes.         [ Links ]

Krenak, A. (2020). O amanhã não está a venda. Companhia das Letras.         [ Links ]

Preger, G. F. (2020). Cenários especulativos pós-pandêmicos: a catástrofe sanitária e as redes solidárias. P2P e Inovação, 7(1), 32-70. https://doi.org/10.21721/p2p.2020v7n1.p32-70        [ Links ]

Sbragia, P. (2020). A falácia do suposto novo normal. In A. Almas, L. F. Ramos, D. Feitosa, D. Lima, L. Oliveira, & J. Knijnik (Orgs.), Vírus, Contaminações e Confinamentos: Pandemídia (pp. 30-37). ECA-USP/Invisíveis Produções.         [ Links ]

Schwarcz, L. M., & Starling, H. M. (2020). A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Alice Costa Macedo
E-mail: alicemacedo@ufrb.edu.br

 

 

1 Alice Costa Macedo é psicóloga, mestra e doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, com estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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