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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.23 no.1 Ribeirão Preto jan./jun. 2022

http://dx.doi.org/https://doi.org/10.32467/issn.2175-3628v23n1a1 

https://doi.org/10.32467/issn.2175-3628v23n1a1

EDITORIAL

 

A re-humanização

 

 

Fabio Scorsolini-Comin1

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Ah viver é tão desconfortável! Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não para, viver parece ter sono e não poder dormir – viver é incômodo. Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito. (Clarice Lispector, Água viva)

 

Ao longo do final do século XX e início do XXI a discussão sobre a humanização em saúde tornou-se mais intensa. O modelo biomédico, fragmentando não apenas o sujeito como também o modo de cuidar havia promovido importantes prejuízos no estabelecimento de relações de proximidade, de respeito e de colaboração diante dos processos de saúde e de doença (Moreira, 2021). Buscando romper com esse paradigma, a humanização apresentava-se como um retorno a algo mais básico, evocando práticas que privilegiavam a escuta, o encontro, o contato e a consideração da complexidade dos sujeitos – dos que adoecem e daqueles que promovem a assistência.

A humanização, no entanto, não é um conceito exclusivo das ciências da saúde. O crítico Antonio Candido (1995) apresenta a literatura como uma possibilidade de nos humanizar e, nesse sentido, deveria ser alçada à condição de direito, de uma política capaz de garantir que todos, pela arte, pudessem se humanizar. Para ele, a humanização envolveria os nossos traços considerados essenciais, como o modo como nos colocamos diante do próximo, a nossa capacidade de nos emocionar, a possibilidade de refletirmos e estabelecermos uma relação mais crítica em relação ao mundo, à sociedade e ao nosso semelhante. Candido nos fala, essencialmente, sobre a nossa capacidade de encanto e de espanto diante do mundo e do outro.

Mas, para além da literatura, como podemos nos humanizar? No contexto brasileiro, tal debate tem sido permanentemente reaquecido pelo Sistema Único de Saúde, o SUS, capitaneado como um dos protagonistas em meio à catástrofe que se abateu sobre o mundo e, em especial, sobre o Brasil, país que está entre aqueles com mais registros de infecção pelo novo coronavírus e de mortes em decorrência das complicações da COVID-19. Numerá-los, aqui, não promoveria maior ou menor desalento. Nomeá-los, talvez. Assim, ao invés de perguntar "quantas pessoas que nos leem neste momento perderam alguém em decorrência da COVID-19?", questionaria: quem não está mais ao seu lado em função da pandemia?

O SUS, possibilitando o acesso a complexos tratamentos para pessoas infectadas pelo vírus e, posteriormente, permitindo a ampla distribuição de vacinas e de concretização da imunização da maior parte da população brasileira, passou a ser (re)apresentado à boa parcela de nosso povo entre os anos de 2020 e 2021. A possibilidade de reagirmos frente ao caos, de respirarmos diante da possibilidade de uma nova vida – ou de esperança de continuar vivendo – foram alicerçados pela potência do SUS como política pública. Uma política fortemente sustentada na humanização.

Mas a pandemia, de modo geral, e todo o seu trânsito, tem desafiado esse pilar (Scorsolini-Comin, 2021). Como podemos oferecer um tratamento humanizado e digno diante da impossibilidade de contato, de presença, de calor? Como oferecer um cuidado humanizado com máscaras e outros equipamentos de proteção individual que, muitas vezes, nem permitem que saibamos realmente quem está por trás dessas barreiras? Barreiras necessárias, mas barreiras. Como podemos acolher tendo telas que nos separam, conexões que nem sempre nos aproximam? Como podemos humanizar a experiência do morrer? (Giamattey et al., 2022).

Profissionais de saúde, sobretudo, foram e têm sido permanentemente desafiados a oferecer um cuidado humanizado. Profissionais de enfermagem que visavam a celebrar em 2020 o ano de sua profissão devido ao bicentenário de nascimento da criadora da enfermagem moderna, Florence Nightingale, tiveram que, mais do que nunca, reafirmar o compromisso com um cuidado ainda não prescrito e validado, mas urgente (Ribeiro et al., 2022).

Na pandemia, o conceito de urgência, muitas vezes, suplantou o de humanização. Diante do desconhecido e do caos instalado na maioria dos equipamentos de saúde, muitos deles convertidos em alas para tratamento exclusivo a pacientes de COVID-19, como pensar a humanização? Como ser humano e respeitar a humanidade do outro em um cenário nunca antes experienciado?

A humanização não deixou de ser um pilar. A humanização assumiu diferentes formas, muitas delas ainda inéditas para alguns equipamentos ou para alguns profissionais, mesmo os mais experientes. Algumas dessas estratégias chegaram até nós pela mídia: a possibilidade de um telefonema, de uma chamada de vídeo, de compartilhamento de um áudio, de escrita de um poema, de uma carta ou de um bilhete de agradecimento. Tudo isso mediado pelos profissionais que cumpriam o seu compromisso com o SUS, o de oferecer uma assistência humanizada (Brasil, 2004). Papéis, notebooks e smartphones tornaram-se ferramentas comuns para promover o encontro, para informar que estava tudo bem, para dar um último recado, para relembrar do amor – porque muitos ainda amam -, para se despedir.

Os profissionais de saúde tornaram-se mediadores, sentinelas, comunicadores, artistas. A celebração da vida – de um aniversário ou de uma pessoa que "venceu" a COVID-19 – por meio de uma faixa, de um cartaz, de flores, tudo sem a possibilidade do abraço, do toque, do afago, do beijo. O toque de punhos cerrados como a maior proximidade possível, como sinônimo de intimidade. Pudemos conhecer essas estratégias. Alguns de nós certamente também puderam desenvolver a própria forma de se comunicar. Outros não tiveram tempo para isso. O tempo roubado como uma última possibilidade de humanizar a vida e também a experiência de morrer.

Pudemos vivenciar a humanização como princípio do SUS, mas também como um pilar para a vida em sociedade. Para a vida que pudemos ter até agora e para a que vicejamos. É bem verdade que também entramos em contato com a desumanização: aquela que trata a vida como um número, que nega o que a ciência pode fazer por nós, que propaga a mentira, a confusão e a intolerância que podem matar, que podem nos tornar menos humanos. Nós nos tornamos menos humanos quando nos recusamos a humanizar a experiência de viver.

Em um cenário sanitário de retomada de atividades de nossa vida cotidiana, da escola ao trabalho, passando pelo lazer e pelo próprio correr da vida comum, a humanização tem permanecido como um pilar. É a humanização que baliza as escolhas que podemos ter a partir de então: até que ponto podemos ir, qual a proximidade que podemos ter com o outro, o que podemos fazer juntos, como devemos nos cuidar, como podemos, de fato, nos preparar para o futuro.

Mas mais urgente que isso é o modo como vamos poder novamente olhar para o outro. Estar com o outro. Trocar com o outro. Tocá-lo. É preciso reaprender o exercício fundamental da presença, da partilha, da escuta, da possibilidade de ser com o outro. Não como uma tentativa de recuperar o que fomos um dia ou de, ilusoriamente, viver o que nos foi extirpado ao longo desses desafiadores 2020 e 2021. A vida entre as telas continua sendo vida, mesmo quando deixamos essas telas provisoriamente de lado.

O exercício da re-humanização nos convoca para movimentos importantes para além das escolhas de como retomar as atividades outrora abandonadas ou interrompidas. Ele se sita para além dos protocolos que compartilhamos e que até mesmo subvertemos. É preciso que a re-humanização esteja disponível para a escuta do luto, da ausência, da dificuldade de interação, do medo de ser-estar com o outro, do desconforto com e do próprio viver. Para a escuta da voz embargada, do luto não elaborado, daquilo que não vamos nunca ser. É preciso assumir esse desconforto como uma potência para uma re-humanização, de fato, não naturalizada ou artificialmente produzida em uma sociedade adoecida que precisa, a todo custo, retomar, produzir, afirmar-se.

A retomada das atividades presenciais como metáfora da retomada da própria vida não pode ser estabelecida por decretos ou portarias. A humanização não pode mais ser ensinada sem que seja, de fato, vivenciada, assumida, cuidada. Por isso não grafo a re-humanização entre parênteses – (re)humanização – porque a re-humanização não é uma escolha, não é uma opção – nem do leitor, nem de qualquer um de nós. É, pois, uma forma premente de responder ao desconforto que agora parece nos constituir de modo mais evidente. É preciso continuar a vida para que ela nos possibilite o exercício ainda inédito da re-humanização como política, como princípio, como caminho.

 

 

REFERÊNCIAS

Brasil (2004). HumanizaSUS: política nacional de humanização. Autor.         [ Links ]

Candido, A. (1995). O direito à literatura. In Vários escritos (pp. 235-263). Duas Cidades.         [ Links ]

Giamattey, M. E. P., Frutuoso, J. T., Bellaguarda, M. L. R., & Luna, I. J. (2022). Rituais fúnebres na pandemia de COVID-19 e luto: possíveis reverberações. Escola Anna Nery, 26(n. spe), e20210208. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2021-0208

Moreira, M. C. N. (2021). Cuidado, descuido e afecção: uma perspectiva para a humanização em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 26(8), 2934. https://doi.org/10.1590/1413-81232021268.12592021        [ Links ]

Ribeiro, B. M. S. S., Scorsolini-Comin, F., Santos, S. V. M., & Dalri, R. C. M. B. (2022). Brazilian nursing in pandemic times and the bicentennial of Florence Nightingale. Revista Brasileira de Enfermagem, 75(Suppl 1), e20210081. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0081

Scorsolini-Comin, F. (2021). O que esperar depois do (in)esperado?: saúde mental no trânsito (pós)pandemia. Revista da SPAGESP, 22(1), 1-5.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin
E-mail: fabio.scorsolini@usp.br

 

 

1 Fabio Scorsolini-Comin é doutor e livre-docente em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professor Associado da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP. Editor Chefe da Revista da SPAGESP.

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