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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.23 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2022

http://dx.doi.org/https://doi.org/10.32467/issn.2175-3628v23n2a1 

https://doi.org/10.32467/issn.2175-3628v23n2a1

EDITORIAL

 

É preciso renovar a esperança: intervenções em Psicologia do Desenvolvimento no Brasil – lacunas, possibilidades e convites

 

 

Fabio Scorsolini-Comin1,I; Luciana Dutra-Thomé2,II; Giana Bitencourt Frizzo3,III; Dóris Firmino Rabelo4,IV

IUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil
IIUniversidade Federal da Bahia, Salvador-BA, Brasil
III
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil
IV
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Santo Antônio de Jesus-BA, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Desde a emergência da Psicologia como ciência, diversas áreas foram sendo compostas a partir de suas especificidades. Entre as primeiras áreas encontramos a Psicologia do Desenvolvimento, motivo pelo qual nos referimos a esse campo como um dos mais tradicionais da Psicologia. Essa alcunha, no entanto, não é sinônimo de uma valorização ou de um status superior aos demais.

Como área considerada tradicional, desde a primeira metade do século XX até os dias atuais, esse campo tem sido permanentemente revisitado. Não que o seu objeto não esteja bem delimitado, pelo contrário. Essa perene revisão se dá em consonância com um mundo em transformação, com um ser humano em constante processo de mudança - mudanças essas tão bem integradas aos objetivos da Psicologia do Desenvolvimento. Ora, se essa área foi concebida para apreender essas mudanças/transformações, é mister que essa missão também atravesse a delimitação do seu objeto.

A ciência do desenvolvimento esteve, por muito tempo, atrelada à constatação das mudanças que ocorriam nos seres humanos ao longo do seu processo de vida, o que ficou classicamente identificado como o ciclo vital. Ao longo desse ciclo de vida, a tarefa dos pesquisadores e das pesquisadoras do desenvolvimento era descrever essas mudanças, observar a sua manutenção ou não ao longo do tempo, as variáveis que promoviam esses processos de mudança, a importância dos contextos, das pessoas, em uma tentativa de ultrapassar a dimensão do indivíduo e pensá-lo de modo integrado ao seu meio. Por um longo período, a tradição na Psicologia do Desenvolvimento foi descrever essas transformações para pensar possíveis estabilidades, repetições e instabilidades.

Esses estudos, em sua maioria, foram conduzidos por pesquisadores homens, brancos, norte-americanos e europeus, o que, inevitavelmente, possibilitou a emergência de determinadas perspectivas capazes de descrever um determinado desenvolvimento, em um determinado tempo, sob uma determinada perspectiva. Esse olhar foi por muito tempo exportado e aceito sem grandes contestações, dando origem a diversos problemas. Desrespeitando as particularidades de povos, territórios e comunidades, muitos desses estudos contribuíram para o acirramento das diferenças, para a estatização da noção de normalidade e, consequentemente, para a exclusão.

Aqui no Brasil, por exemplo, cabia-nos compreender essas perspectivas, acessar grossos manuais que nos traziam posições bem rígidas acerca do que podia ser considerado normal, típico e do que se desviava dessa linha normal. Obviamente que esse percurso teve uma repercussão importante no modo como a Psicologia do Desenvolvimento foi ensinada na universidade, como esteve na base da formação de psicólogos e de demais profissionais de saúde e de professores, bem como fomos construindo uma tradição de pesquisa aqui e em outras partes do mundo (Scorsolini- Comin, 2021). Um olhar eminentemente colonizador e que apagava nossas experiências, nossos marcadores identitários, nossas especificidades contextuais, nossa diversidade.

Os grandes manuais de Psicologia do Desenvolvimento foram, em sua maioria, produzidos no exterior e retratavam uma realidade bem distinta da nossa, levando a equívocos no modo como esses conhecimentos eram transmitidos e também quando buscávamos estabelecer comparações com populações distintas. Obviamente que a Psicologia do Desenvolvimento produzida nesse esteio pouco se comprometia com a diversidade, no máximo cotejada em termos das diferenças em relação à norma. Assim, essa área da Psicologia passou a ser reconhecida como estática, rígida, ainda que, paradoxalmente, tivesse como objeto os processos desenvolvimentais ao longo da vida, ou seja, as mudanças que nos constituem e nos atravessam.

Urie Bronfenbrenner (2011) é um autor central em uma reflexão que se ampliou desde a segunda metade do século XX: a Psicologia do Desenvolvimento vinha estudando o comportamento em ambientes artificiais e que em nada lembravam os meios nos quais os sujeitos estavam imersos, em um período de tempo insuficiente para que pudéssemos observar mudanças e estabilidades, produzindo uma Psicologia do Desenvolvimento que, de fato, não conseguia apreender o desenvolvimento.

Ainda que esse autor gozasse dos mesmos privilégios e marcadores daqueles que nos ajudaram a construir a ciência do desenvolvimento, abria-se, com a sua consideração, a possibilidade de revisitar a Psicologia do Desenvolvimento, essa área tão tradicional. Obviamente que essa tarefa não pode ser assumida automaticamente.

Atualmente, há consenso científico que o desenvolvimento é um processo complexo e que se dá ao longo de todo o ciclo vital. O desafio de ultrapassar uma Psicologia do Desenvolvimento focada em crianças e adolescentes foi assumido por diversos pesquisadores e pesquisadoras, abrindo a possibilidade de cotejar as mudanças que atravessam a adultez e a velhice, por exemplo, permitindo que também novos desafios emergissem a partir do estudo dessas etapas e nas mais diversas populações e amostras.

Conforme a American Psychological Association (APA), uma das principais associações de Psicologia do mundo, o campo da Psicologia do Desenvolvimento tem como foco o crescimento humano e as mudanças ao longo do ciclo vital, incluindo o desenvolvimento físico, cognitivo, social, intelectual, perceptivo, emocional e da personalidade nos mais diversos contextos (APA, 2014).

A Psicologia do Desenvolvimento, desse modo, passou a não apenas retratar para classificar, mas a possibilitar intervenções, contribuir com mudanças, promover, em linhas mais amplas, a saúde, o bem-estar, o desenvolvimento saudável, a justiça, a reflexão, o acolhimento, o compromisso com a justiça social e com o combate perene a movimentos de exclusão.

A análise dos trabalhos apresentados no mais recente congresso em Psicologia do Desenvolvimento da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento (ABPD) indicou importantes intersecções entre a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicologia da Saúde e a Psicologia Escolar e da Educação. O compromisso firmado em seu início, fortemente associado à Psicologia Experimental, já é outro, produzindo importantes ressonâncias.

Ainda que os autores clássicos continuem a ser ensinados e estudados, um olhar crítico para essa produção tem se tornado fundamental. O modo de pensar a Psicologia do Desenvolvimento a partir de diferentes marcadores, populações e contextos também passa a se corporificar em pesquisas, em livros, em manuais que não mais buscam a padronização, mas a abertura a novas experiências.

Sabemos que alguns desafios são urgentes para uma ciência do desenvolvimento contextualizada: a necessidade de produzirmos estudos que, de fato, se ancorem e representem especificidades locais, a necessidade de que vozes tradicionalmente silenciadas na ciência possam ser cada vez mais conhecidas, como a de mulheres, de pessoas negras, de povos originários, em um compromisso decolonial constante – e sem volta. O envelhecimento da população também demandará novas oportunidades de compreensão de tal processo, bem como a necessidade de promoção de intervenções que auxiliem o melhor desenvolvimento nas fases finais do ciclo vital.

A Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento foi fundada em 1998 com um grupo de pesquisadores interessados inicialmente em temas de infância e adolescência, temas que, à época, ocupavam boa parte da pesquisa na área (o que ainda se mantém em volume de publicações). Rapidamente a associação abrangeu um grupo bastante extenso ao longo de todo território nacional, muitas vezes primando por conjugar conhecimento acadêmico com aplicações práticas, além de aprimorar a formação na área em cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia.

Bianualmente, a associação também organiza o Congresso Brasileiro de Psicologia do Desenvolvimento, a fim de promover as mais atuais discussões a respeito da grande área da Psicologia do Desenvolvimento, com estudantes e pesquisadores de vários países e regiões do Brasil, atividade interrompida apenas durante a pandemia da COVID-19.

Sem dúvida a Psicologia do Desenvolvimento congrega uma série de teorias e opções metodológicas, mas tal riqueza permite que também seja empregada em aplicações práticas nas políticas públicas (Pizzinatto et al., 2021) e em diversas modalidades de intervenção ao longo de todo o ciclo vital, especialmente em momentos de transição entre essas etapas. Afinal, "Sem conhecer o desenvolvimento humano, forjado na nossa filogênese e organizado em contextos culturais específicos não é possível ser um bom psicólogo." (Seidel de Moura, s.d).

Há muitas formas de pensar essa ciência do desenvolvimento quando trabalhamos com a pesquisa e também com as intervenções. Respondendo aos desafios locais e mundiais que se colocam, a exemplo das crises políticas e da democracia em diversos países e de crises sanitárias como a pandemia da COVID-19, é importante que a Psicologia do Desenvolvimento continue a produzir conhecimentos, apresentando novas perguntas e revendo estabilizações em contribuição a uma ciência mutante, engajada socialmente, disposta ao novo, que consegue revisitar pressupostos e se propor a novos desafios.

No contexto brasileiro, essa discussão também incorpora os desafios vivenciados pelos profissionais de Psicologia. Em um ano em que celebramos os 60 anos do reconhecimento de nossa profissão no país, é mister que todos e todas estejam alinhados/as a uma ciência do desenvolvimento que não mais se prende a manuais importados e que nada dizem sobre a nossa realidade.

Essa Psicologia do Desenvolvimento mais engajada social e politicamente é o reflexo de muitas mudanças, de muitos processos, a maioria deles em trânsito, tanto que mesmo nesse número especial essa riqueza e diversidade toda não conseguiu ser amplamente representada. Estamos em um período importante de transição que tem congregado tensões que podem e devem ser capturadas pelas pesquisas em desenvolvimento e as vindouras.

Nesse contexto, não basta que estudemos a vulnerabilidade, por exemplo. O olhar para a vulnerabilidade social deve estar associado a um compromisso com a redução desse cenário (Pessoa & Scorsolini-Comin, 2020). Sem essa missão, a pesquisa sobre esse tema continuará a ser um espaço elitizado, por vezes pouco propositivo. Diversas vozes precisam ser integradas a esse debate, vozes essas por séculos excluídas em nossa sociedade racista, machista e patriarcal.

O número especial que apresentamos junto a esse editorial é uma iniciativa da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento (Gestão 2020-2022) em parceria com Revista da SPAGESP, periódico este que passou a contar, em 2022, com o importante apoio do NESME (Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares) para a sua manutenção. Buscamos, assim, resistir.

Essa publicação é também uma celebração dos 60 anos da Psicologia no Brasil e um ato de resistência em um cenário de desmantelamento ao qual temos assistido nos últimos anos. Essa publicação renova as esperanças por uma ciência brasileira viva e disposta a lutar pela diminuição das desigualdades e por uma sociedade mais justa. Essa publicação renova a importância de defendermos, todos nós, a ciência em nosso país.

Muitos são os desafios. Esse lugar-comum, no entanto, não pode mais ser tomado como uma limitação. Precisa ser, ao contrário, um convite ao novo, à mudança, à transformação, elementos esses que continuam a compor e a avivar a área da Psicologia do Desenvolvimento.

 

REFERÊNCIAS

American Psychological Association (2014). Developmental psychology studies humans across the lifespan. https://www.apa.org/education-career/guide/subfields/developmental#:~:text=Developmental%20Psychology%20Studies%20Humans%20Across,perceptual%2C%20personality%20and%20emotional%20growth.         [ Links ]

Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Artmed.         [ Links ]

Pessoa, A. S. G., & Scorsolini-Comin, F. (2020). Pesquisas com crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social no Brasil: debates inacabados e novos dilemas. Revista da SPAGESP, 21(1), 1-5.         [ Links ]

Pizzinato, A., Souza, L. L., & Vieira, M. (2021). Psicologia do Desenvolvimento: Panorama de contribuições e desafios para a área no contexto brasileiro. Psicologia: Ciência e Profissão, 41(3), 1-7. https://doi.org/10.1590/1982-3703003012020        [ Links ]

Scorsolini-Comin, F. (2021). Para além dos manuais: reflexões sobre o ensino de Psicologia do Desenvolvimento nas ciências da saúde. Reflexão e Ação, 29(2), 147-159. https://doi.org/10.17058/rea.v29i2.15408        [ Links ]

Seild de Moura, M. L. (s.d). Histórico da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento. https://www.abpd.psc.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=380.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin
E-mail: fabio.scorsolini@usp.br

 

 

1 Fabio Scorsolini-Comin é professor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Editor Chefe da Revista da SPAGESP.
2 Luciana Dutra-Thomé é professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento (Gestão 2020-2022).

3 Giana Bitencourt Frizzo é professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento (Gestão 2020-2022).

4 Dóris Firmino Rabelo é professora do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento (Gestão 2020-2022).

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