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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) v.2 n.2 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Câncer e estresse: um estudo sobre crianças em tratamento quimioterápico

 

Cancer and stress: a study on children in chemotherapy treatment

 

 

Ana Paula Felippe de Souza Marques1

 

 


RESUMO

Este trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica e de campo desenvolvida no Hospital Ofir Loyola em Belém (Pa), que teve por objetivo compreender melhor a relação câncer e estresse infantil, observando como as exigências do tratamento influenciam na exacerbação da sintomatologia estresse e quais suas repercussões biopsicossociais na vida da criança. O presente artigo descreve a pesquisa realizada e discute o referido tema, no intuito de contribuir para elaboração de meios que possibilitem às crianças desta enfermidade um espaço de escuta para elaboração de suas experiências e sentimentos.

Palavras-chave: Câncer, Estresse, Tratamento infantil.


ABSTRACT

This paper is the result of a fild and theoretical research, performed at Ofir Loyola Hospital in Belém (Pa), wich the main objective was to compreehend better the relation of  infant cancer and stress, considering  the hard exigence treatment influences in aggravated of stress symptomatology and what its repercussion in the biopsychosocials child  life.  This article describes the research wich was developed and discuss about the theme reported,  contributing  to criate ways that allow  children who suffer this disease a listening  space for them to resignify their experiences and feelings.

Keywords: Cancer, Stress, Infant treatment.


 

 

1 - INTRODUÇÃO

O estudo sobre as relações entre fatores psicossociais, adoecer e tratamento é um dos temas que vem assumindo progressiva importância no espaço da Psicologia da Saúde. A compreensão desta perspectiva está intrinsecamente relacionada ao conceito de holismo, no qual considera-se levar em conta a pessoa como um todo, deixando de compartimentalizá-la em sistemas orgânicos. A objetivação desta perspectiva “procurou adicionar aos conhecimentos gerados pela medicina através do método bio-físico-químico um outro conjunto de saberes que nos mostra as facetas do ser enquanto ser psicológico e social” (Mello Filho, 1992, p. 95).

Isto implica dizer que ao conceber o homem como biopsicossocial, tanto na saúde como na doença, procura-se compreendê-lo além da realidade física, sem, no entanto, negá-la, pois é indispensável a terapêutica clínica ao tratamento de doenças que estão afetando o organismo, para que se alcance a cura e reabilitação do indivíduo, sem no entanto, deixar de levar em consideração que o bem estar também inclui implicações emocionais e sociais.

Este novo enfoque biopsicossocial, que surgiu como uma compreensão acerca do que vem a ser saúde e doença, oferece reflexões para adicionar à prática a promoção de saúde mais voltada para o paciente e não somente ao sintoma ou à doença, idéias estas que vêm ganhando terreno na formação e na prática dos profissionais de saúde. Sendo prova disto, acompanhando estes avanços, a Organização Mundial de Saúde (OMS) define que: “saúde é o total bem estar biopsicossocial da pessoa e não somente, ausência de doença” (Angerami-Camon, 1996, p. 149).

O câncer é uma doença de proporções graves, pois ameaça a vida, podendo afetar qualquer parte do organismo, atacando pessoas de todas as idades, ocorrendo quase com a mesma proporção para ambos os sexos; podendo ser definido como uma doença degenerativa resultante do acúmulo de lesões no material genético das células, que induz o processo de crescimento, reprodução e dispersão anormal das células no qual o controle sobre a proliferação e morte celular está alterado (Yamaguchi, 1999).

Existem aproximadamente 802 tipos diferentes de câncer, muitos deles curáveis, se detectados precocemente (Dieguez, 2001). Um diagnóstico precoce é geralmente difícil de ser alcançado na maioria dos tumores nas crianças, pois a progressão da doença desde o início é silenciosa, muitas vezes os sinais e sintomas só aparecem quando a doença já está avançada.

A revelação do diagnóstico de um câncer na criança vem geralmente como uma catástrofe, é fator de ruptura e intensa desestruturação psicológica, pois o câncer ocupa um espaço de temor, desempenhando o papel de enfermidade cruel e devastadora. Para muitos o diagnóstico significa uma sentença de morte. Segundo Valle (1997, p. 60):

... ao ser lançado no mundo da doença, o homem percebe que perdeu o seu mundo anterior e que não tem escapatória: está ameaçado na sua existência. Todas as situações que vive remetem-no à doença e à possibilidade que ela encerra: a morte. Com isso, há um estreitamento do seu horizonte, limitando e reduzindo suas perspectivas de vida.

Esta atitude reflete o quanto o estigma do câncer encontra-se arraigado às pessoas, sua inaceitabilidade e horror repercutindo numa conduta de afastamento, discriminação e rejeição social desde o âmbito familiar até nas atividades produtivas. Assim, o adoecer de câncer, sendo algo que traz mudanças e exige adaptações, adquire um sentido específico, com os significados que os sintomas, as experiências com o tratamento e as relações interpessoais passam a ter no contexto de vida (Valle, 1997).

O tratamento atual procura obter a maior sobrevida e melhor qualidade de vida. Em quase todos os casos a quimioterapia é empregada com o objetivo de maximizar as possibilidades de cura. Alguns medicamentos, no entanto, não atuam exclusivamente sobre as células cancerígenas, afetando outras células normais que estão se proliferando. Isso significa que ao mesmo tempo em que vêm possibilitar a cura, por outro lado essas drogas se tornam tão ou até mais assustadoras para o paciente porque produzem efeitos colaterais desagradáveis. Quando o paciente desta enfermidade é uma criança, a situação, de certa forma, causa maior impacto, porque a criança é considerada o símbolo da vida, nascimento e esperança, e o câncer ainda é visto como a “patologia da incerteza” (Valle, 1997).

O tratamento vem alterar rapidamente suas vidas, as perspectivas e possibilidades de escolhas e a vida cotidiana é interrompida bruscamente. A criança é retirada do convívio social a que está acostumada e passa a habitar em um mundo estranho e doloroso: o mundo do hospital, dos medicamentos e seus efeitos, do tratamento e seus procedimentos invasivos, o afastamento dos amigos, da escola, etc.

A busca da cura girará em torno dessa nova adaptação que é, em geral, a rotina do tratamento quimioterápico. Enfim, tem-se que habituar a uma vida estritamente ordenada, cheia de restrições, submeter-se a procedimentos muitas vezes dolorosos, sair da rotina de casa para a do hospital, etc. Esta situação, afirma Perina (1997), submete a criança a uma série de conseqüências como: a desestruturação do sistema biopsicossocial, intensificação das angústias de morte, levando à mobilização de defesas psicológicas e ao redirecionamento das energias para adaptação à realidade hospitalar e aos seus procedimentos.

Esses sentimentos frente à doença e ao tratamento são freqüentes, já que esta mudança brusca retira a criança do seu ambiente e a expõe tanto física como emocionalmente a situações estressantes, o que pode fragilizá-la ainda mais. Portanto, qualquer que seja o modo vivido da doença, deve ser visto como uma vivência que provoca desordem, pois sendo a doença algo novo, que traz mudanças, ela exige uma adaptação da criança que adoece.

A situação de doença foi caracterizada por Lipp et al. (1991) como uma causa externa do estresse infantil. Entende-se que a situação de doença não abrange somente os aspectos físicos, mas psicológicos e sociais, portanto engloba-se a hospitalização, o tratamento, a relação com outros, a mudança na rotina, entre outros fatores de acordo com o ponto de vista biopsicossocial. Lipp et.al. (1991) descreve, com base em observações clínicas, que os sintomas do estresse infantil, assim como nos adultos, são manifestações, exteriorizações de pressões e tensões sobre a criança e o adolescente e, que podem ser de ordens psicológicas, físicas ou ambos. Isto porque a criança vive um período de muita angústia e sofrimento determinado por fatores como ambiente desconhecido, medidas terapêuticas, retirada do ambiente familiar, convívio com outros que estão na mesma situação, apresentando quadros semelhantes ou até piores, onde elas podem apresentar irritabilidade ou retraimento, por exemplo.

As exigências de um tratamento de câncer, envolvendo hospitalização ou não, uma bateria de exames físicos, complexos esquemas de quimioterápicos, nomes complicados dos medicamentos, efeitos colaterais, entre outros, permeiam a criança de sentimentos como medo, angústia, impotência e dor. Assim, as reações de estresse podem ser identificadas em decorrência destas alterações, e também influenciadas pela idade da criança e pela forma como ela vivencia a situação de doença, hospitalização e tratamento, pois produzem nela exigências físicas e psicológicas, como reação a algo novo e que exigem o ajustamento e adaptação ao tratamento, incluindo a compreensão da mesma do que está lhe ocorrendo.

A doença física é acompanhada de manifestações na esfera psíquica, ocasionando alterações na esfera social, já que a doença provoca, precipita ou agrava desequilíbrios quer no paciente, quer na família (Campos, 1988).

Assim, o presente trabalho surgiu do interesse em compreender a problemática do câncer e estresse infantil, entendendo que na vivência de uma doença de proporções graves como o câncer, a rotina e as exigências do tratamento quimioterápico colocam o sujeito em situações de conflito, seja consigo mesmo, seja com a circunstância à qual está submetido dentro da perspectiva de um processo histórico e inter-relacional.

 

2 - OBJETIVOS

- Verificar a presença da sintomatologia estresse nas crianças em tratamento quimioterápico;

- Examinar a possível relação estresse e tratamento, observando o quadro físico, psicoafetivo e social que o tratamento implica no cotidiano da criança.

 

3 - METODOLOGIA

3.1 - Local: A realização desta pesquisa foi feita no Hospital Ofir Loyola, em Belém do Pará, por ser esta instituição o referencial para o tratamento oncológico neste estado.

3.2 - Método: Este trabalho obedeceu a um método de tipo quanti-qualitativo. A escolha da técnica quantitativa representou a intenção de garantir maior precisão dos resultados, como forma de obter uma margem de segurança quanto à mensuração adequada da presença do estresse nas crianças. Isto porque este estudo objetivava investigar a correlação entre fatores provenientes do tratamento quimioterápico e a presença de sintomas de estresse.

Para tanto, optou-se pela utilização de um instrumento validado que indicasse a presença do estresse e atendesse aos critérios de validade e confiabilidade. Utilizou-se na coleta de dados, como instrumento de indicação da presença do estresse, a Escala de Stress2 Infantil (ESI)3 que tem por objetivo fornecer qualidades psicométricas quanto à identificação dos sintomas do estresse na criança, pela sua dimensão preponderante (físico, psicológico, psicológico com componente depressivo e psicofisiológico).

A escolha da metodologia qualitativa como aporte ao método quantitativo ocorreu a partir da constatação de que a escala fornecia somente dados referentes à presença ou não do estresse. Um dos objetivos da pesquisa era o de verificar quais fatores poderiam influenciar no desencadeamento do estresse e, que não estavam sendo evidenciados na escala. Assim, assinala-se que os fenômenos psicológicos e sociais se fazem presentes em qualquer estudo que envolvam pessoas, entendendo-se que a situação de tratamento envolve também suas subjetividades. Para tanto, utilizou-se uma entrevista semi-estruturada, organizada através de questões norteadoras que assinalassem aspectos gerais da vida da criança. Estas foram:

- Quem o acompanha no hospital?

- Quem faz parte da sua família?

- Você sabe por que você está aqui?

- Você sabe qual é a sua doença?

- O que é quimioterapia?

- O que você acha do tratamento que você está realizando?

- O que você fazia antes de adoecer?

- Que mudanças aconteceram desde que você veio para o hospital?

É importante considerar que estas perguntas foram suportes para outras que surgiram no momento da entrevista, que se fizeram necessárias pela demanda de cada criança, estando vinculadas às questões norteadoras formuladas previamente, no intuito de explorar aspectos provenientes do estado da criança que poderiam estar relacionados ao estresse.

3.3. Participantes: participaram deste estudo 25 crianças entre 6 e 14 anos, independente da patologia específica, de ambos os sexos, registradas no ambulatório e na enfermaria pediátrica do hospital, independente do início do tratamento.

3.4. Procedimento para a pesquisa: Inicialmente foi estabelecido o contato com o Departamento de Ensino e Pesquisa da Instituição, visando o consentimento para a realização da pesquisa. Posteriormente à aprovação, foi efetuada a seleção das crianças, conforme os critérios já referidos anteriormente. Estabeleceu-se o contato com as crianças e seus familiares para solicitar o consentimento pessoal dos responsáveis para a participação das crianças na pesquisa e, depois à própria criança. Salienta-se ainda, que este trabalho foi norteado pelos princípios éticos de respeito e sigilo, visando a proteção dos envolvidos na pesquisa, conforme a Resolução 196/96 de Consentimento Livre e Esclarecido para participação em pesquisa, garantindo assim a confidencialidade no trato das informações. A aplicação da escala foi realizada individualmente junto a cada criança, que respondia a escala sendo auxiliada pela pesquisadora quando em situações de impossibilidade de utilização das mãos, na sala de quimioterapia infantil e na enfermaria pediátrica. As entrevistas foram realizadas em um momento posterior à aplicação do instrumento e transcritas pela pesquisadora logo após o término das mesmas.

 

4 - APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

Os dados que serão apresentados foram obtidos a partir das respostas dos questionários da escala de estresse infantil e da entrevista semi-dirigida.

4.1 - Dados obtidos na Escala

a) Manifestação de estresse

Do total de crianças entrevistadas (N=25), 60% (N=15) apresentaram sintomatologia de estresse, enquanto 40% (N=10) não apresentaram.

b) Área de manifestação do estresse

Verificou-se que em relação às crianças que manifestaram sintomatologia estresse, a mais predominante foi a psicológica em 40% (N=6), seguida de 27% (N= 4) psicológica com componente depressivo, 20% (N= 3) psicofisiológica e 13% (N=2) fisiológica.

c) Quanto ao gênero

As meninas apresentaram sintomas de estresse 53% (N=8) relativamente maior que os meninos 47% (N=7).

d) Faixa etária

Verificou-se que a maior concentração ficou entre as crianças menores na faixa etária entre 6 e 8 anos 53% (N=8), seguida da idade entre 12 e 14 anos 27% (N=4) e 9 e 11 anos 20% (N=3).

e) Localidade

Verificou-se que a variável localidade de origem foi um fator importante a ser considerado como fator estressor. Do total de crianças, 48% (N=12) eram da capital – Belém – e 52% (N=13) eram do interior. Dentre estes, a presença de estresse pôde ser considerada relativamente maior entre as crianças provenientes do interior 73% (N=11) e outros 27% (N=4) provindas da capital.

4.2 - Dados obtidos nas entrevistas

A sistematização das respostas referentes às entrevistas foi organizada em grupos temáticos a partir da compreensão global do significado que estes pacientes atribuíram à sua experiência. A partir daí, assinalou-se o relato cujo significado vinculava-se às questões norteadoras, o que permitiu dividi-los em unidades temáticas. Estas foram: percepção da doença, representação do tratamento, hospitalização, família, função da quimioterapia.

a) Percepção da doença

M (7a): “...quando eu morava em Tucuruí, eu gostava de pescar, brincar de carrinho com meus colegas (...) eu sou bom pescador, mas depois que eu fiquei doente e tiraram meu braço eu não faço mais isso (...) mudou tudo, eu não gosto daqui.”

 B (6a): “eu fiquei doente e não posso mais brincar nem estudar, eu brincava tanto, passava o dia jogando bola, eu estudava, agora eu fico aqui eu não gosto.”

 O (7a): “eu gostava de brincar, aqui a gente brinca mas é diferente, eu gostava de arrumar as coisas, de lavar roupa de boneca, de ajudar a mãe, de nadar, depois que fiquei doente fiquei mais triste(...) fico só dormindo”.

G (13a): “... eu brincava muito, hoje brinco menos (...) eu gosto de ir na escola (...) os amigos continuaram (...) mudou porque eu tenho que vim pra cá tomar remédio, eu não gosto. Tem muita gente que discrimina, olha de lado (...) eu não tenho namorado.”

S (14a): “Era boa, brincava com minhas colegas. As pessoas ficam malhando e eu fico angustiada porque as pessoas falam e eu fico com vergonha. Me sinto triste porque eu nunca faço o que eu gostaria de fazer.”

b) Representação do tratamento

 M (7a): “Eu não gosto, dói muito, mas a mamãe e o médico dizem que é bom pra eu ficar bom. Depois dele tive que vim pra cá e tiraram meu braço. Sinto muita dor de cabeça e vomito, eu não gosto.”

 H (10a): “Eu acho ruim, sinto um monte de coisas: vontade de vomitar, dor de cabeça ... fico triste às vezes. Tomar injeção é ruim toda vez.”

 B (6a): “Eu acho muito ruim, porque eu sinto muita dor... eu tenho medo... as coisas mudaram comigo, eu não posso fazer as coisas que eu gosto.”

 S (14a): “Me acho igual Jesus Cristo, um soro de um lado e outro do outro, toda crucificada, sofrendo (...) eu acho que sou estressada por causa desse tratamento, os meus irmãos falam isso e eu acho que eu sou, estressada é uma pessoa que fica com muita raiva e briga com todo mundo não é?”

c) Sentimentos referentes à hospitalização

H (10a): “A minha vida era boa, eu brincava, corria, fugia, deixava mamãe doidinha , agora não é mais boa, tiraram a minha perna pra eu ficar bom, mas eu não posso mais correr (...) tudo mudou, não vou mais pra rua.”

C (11a): “é bom pra saúde, mas é muito chato... eu tive que vim pro hospital e brincar menos, eu não gosto”.

 D (6a): “eu não gosto, é ruim, sente dor... quero ir embora tia, não gosto daqui”.

d) Relação com a família

M (7a): “Lá em casa é muito bom, eu gosto do meu pai e da minha mãe...eu brigo com meus irmãos as vezes...eu não acho que mudou, eu tenho mais carinho.”

H (10a): “Eu me dou bem com todo mundo, eu tenho um sobrinho, eu queria tá com ele agora. Todo mundo faz o que eu quero, isso é legal.”

B (6a): “Eu não gosto quando fazem barulho, lá em casa é legal eu gosto de todo mundo e todo mundo gosta de mim.”

G (13a) “Não mudou nada, às vezes sai discussão porque a mamãe não deixa eu fazer nada e eu quero brincar.”

S (14a) “Eu brigo com meus irmãos porque eles acham que eu sou estressada. Eu chamo atenção deles...antes eu era mais revoltada, agora eu converso, mas eu me dou bem com eles.”

M(11a): “Eu gosto de todo mundo, mais do meu irmão porque ele conversa mais comigo (...) a mamãe e o papai são muito carinhosos.”

J (12a): “Me dou bem com todo mundo, eles gostam muito de me beijar, meu irmão fica com ciúme, mas eu falo para ele não pensar besteira, porque o papai e a mamãe estão tristes porque eu tô assim”.

e) Descrição da quimioterapia

O (8a): “Eu gosto e não gosto. Eu gosto porque vai fazer eu boa... é ruim porque eu deixei meus colegas lá na cidade”

G (13a): “Tudo muda, o corpo, eu sinto dor, as pessoas me olham, não pego sol e ando com esse chapéu, o que eu acho do tratamento? Para melhorar eu sou capaz de fazer qualquer coisa. Esse tratamento faz eu sentir muita raiva, o remédio faz essas coisas com a gente, sabe, eu fico mal humorada, mas eu tenho que fazer, as vezes eu tenho vontade de desistir”.

 

5 - DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Considerando que a maioria das crianças apresentou sintomatologia de estresse, a análise dos resultados revelou o quanto a experiência do câncer e os fatores que o envolvem (tratamento, hospital, família, relações sociais, etc) repercutem no funcionamento biopsicossocial da criança. Isto porque leva a criança a ter que enfrentar mudanças de várias ordens, que rompem sua rotina, alterando toda uma dinâmica de vida objetiva (casa, escola, amigos, brincadeiras, etc) e também subjetivas. Diante de todas essas mudanças, estes fatores acabam por se constituírem em uma situação potencialmente geradora de estresse, pois o processo da doença e do tratamento provoca exigências sobre a capacidade de adaptação da mente e do corpo.

5.1 - Área de manifestação do estresse

Observou-se que a área psicológica apresentou-se em maior predominância de respostas referentes aos sintomas psicológicos com 40% de freqüência. As demais áreas: psicológica com componente depressivo (27%), psicofisiológica (20%) e a fisiológica (13%). Observou-se que esta área apresentou-se em maior grau pela predominância de respostas referentes aos sintomas psicológicos.

Estes aspectos são percebidos em sua maioria nas falas dos pacientes que se dizem tristes, que afirmam que a vida era melhor, sentem-se angustiados, com vergonha, sofrendo, não gostam da situação que se encontram, dizem sentir raiva, desânimo, dificuldades interpessoais etc. Em relação às outras áreas a diferença é relativamente pequena, levando-se em consideração a taxa percentual. Lipp et al. (1991) afirma que os sintomas podem ocorrer no campo psicológico, no físico ou em ambos, tornando-se necessário considerar que o estresse não se manifesta isoladamente nessas esferas. No entanto, pode-se dizer que determinada área pode apresentar-se predominante em relação às outras, mas isso dependerá de vários fatores como a personalidade de cada criança, a resistência ao tratamento, a vulnerabilidade, entre outros.

5.2 - Quanto à relação estresse com o dado gênero

Os resultados sugeriram que as meninas apresentaram-se numericamente mais estressadas que os meninos. No entanto, essa diferença pode ser considerada pequena, com uma diferença percentual de 6%, sugerindo que tanto as crianças do sexo feminino como masculino estão suscetíveis ao estresse. É importante considerar que cada qual tem suas particularidades quanto às percepções do que a doença reflete.

5.3 - Estresse e faixa etária

Observou-se que na faixa etária entre 6 a 8 anos, as crianças apresentaram sentimento de privação do mundo fora do hospital. Para as menores, principalmente, o impacto que a doença trouxe de mais negativo foi a imposição de restrições à atividade que elas mais gostavam de fazer. Isto significa para elas um impedimento em suas atividades normais, pois em seus relatos consideram que o processo de doença e o mundo do hospital promovem sentimentos de inconformismo e hostilidade quanto ao desconforto de não levar uma vida normal.

Verificou-se, no entanto, uma pequena diferença percentual quanto às crianças entre 9-11 anos e 12-14 anos de idade. Ao contrário dos menores, as crianças desta faixa etária têm um reconhecimeno maior do que está se passando; estão num momento de muita transformação no sentido de reconhecimento e busca de sua identidade, e no estabelecimento de relacionamentos interpessoais mais duradouros. Nestes pacientes a direção dos seus pensamentos está em relação ao futuro, se comparando aos outros da mesma idade. Isto é observado na maioria dos trechos de seus relatos, em que a idéia de doença remete sempre à uma vivência negativa, revelada nas avaliações de suas experiências com a dor e sofrimento. A isto associam-se as impressões negativas de auto-percepções de uma imagem muito distante da habitual: sem cabelos, sem braço, sem perna, com emagrecimento, que como conseqüências despertam sentimentos de desapontamento, revolta, tristeza. Estes pacientes, principalmente os mais velhos, estão muito preocupados com a aparência física e dizem ter perdido a auto-estima, sentido vergonha da aparência e tendo comprometida as suas relações com os outros em função da discriminação.

5.4 - Estresse e localidade

Para a realização do tratamento, que geralmente é duradouro, geralmente as crianças têm que se privar de muitas coisas do mundo fora do hospital, como por exemplo, deixar de ir à escola, ir freqüentemente ao hospital para ser medicada, limitações estas que acarretam na criança um impedimento para levar uma vida normal. Assim, os resultados demonstraram que a maior freqüência de crianças estressadas são aquelas vindas do interior do estado.

Uma criança que vem do interior, além das situações que causam sofrimento pela vivência da própria doença e tratamento além de outras já citadas anteriormente, têm que enfrentar o afastamento da família na cidade natal, não podendo mais brincar com os irmãos e os amigos, tendo que abandonar a escola e a casa para dedicar-se exclusivamente ao tratamento, já que em suas cidades esses cuidados não existem. Muitas destas crianças têm que se alojar em locais onde dividem espaços com pessoas que não têm intimidade, estando privadas do espaço de suas casas e de seus familiares, podendo-se supor que a distância apresenta-se como mais um fator relacionado ao estresse. Em suas falas, algumas transmitem o desejo de liberdade, de dar costas ao hospital. Outras manifestam certas atitudes ambíguas quanto ao hospital e ao tratamento; ao mesmo tempo que consideram o hospital fonte de dor e sofrimento, o representam como a possibilidade de poder ficar livre da doença.

Observa-se o quanto o tratamento torna-se para a criança uma experiência de intensificação do estresse. Assim, verificou-se através da análise do discurso das mesmas, em que a dor pelo tratamento invasivo juntamente à significação que a doença assume na vida da criança, com todas as implicações pessoais e sociais tornam a vivência de adoecimento e tratamento uma experiência de intensificação do estresse.

5.5 - Percepção da doença

Identificou-se que o conhecimento da criança acerca de sua doença e a significação que ela tem a respeito do que a doença havia modificado em sua vida, demonstra a dimensão subjetiva da doença e o impacto que ela traz. Assim, a doença é encarada como um fator de impossibilidade de aproveitamento da infância, principalmente no que se refere às brincadeiras, sendo privada do mundo exterior ao hospital.

5.6 - Quanto à representação do tratamento

Considera-se que a representação pode ser entendida como a forma de conhecimento, a elaboração psíquica da experiência de cada um, os valores e as informações em relação à submissão e às exigências do tratamento quimioterápico. Os relatos demonstraram atribuições negativas. Verbalizaram que o tratamento causa muito sofrimento e é doloroso. Ao falarem da quimioterapia as crianças a relacionam aos seus efeitos dolorosos.

5.7 - Quanto à hospitalização

As crianças revelaram sentimentos desagradáveis referentes à hospitalização, demonstrando o quanto se sentem isoladas, limitadas no brincar, impedidas de freqüentar a escola, manifestando a esperança em terminar logo o tratamento, já que o ‘mundo do hospital’ incomoda pois para elas significa uma forma de impor isolamento. Observou-se que o hospital é revestido de significados ambivalentes: por um lado representa o local que possibilita cura e/ou reabbilitação, por outro tem efeito controlador, agressivo e indesejado.

5.7 - Família

Observou-se que a relação família-criança poderia ser um fator propiciador de estresse, pois a revelação de um câncer na criança provoca profundas alterações no ambiente familiar. De acordo com Valle (1997), pode provocar muitos conflitos como acusações mútuas entre os pais pela responsabilidade da doença, sentimentos de culpa, dificuldades financeiras, conflitos matrimoniais, divórcios, brigas com irmãos por ciúmes do irmão doente que é visto como o mais querido. Tudo isto pode causar na criança sentimentos de culpa, por se perceber como a causa da discórdia na família, por se considerar como fonte de tristezas para a família, medo de ser abandonada, etc.

Percebe-se que a opinião sobre a família está sempre permeada de muito carinho referindo-se também à superproteção que é dada a elas. A idéia de que o carinho da família as torna queridas e aceitas está presente em todos os relatos. Percebeu-se o quanto esta é considerada importante pelas crianças, sentindo-se em sua maioria protegidas e amadas, o que é considerado necessário para o processo terapêutico, e para a própria afirmação da auto-estima.

5.8 - Função que exerce a quimioterapia

Esta foi percebida nas crianças como carregada de sentimentos ambivalentes. O tratamento que provoca dor, sofrimento, impedimento de sair ou brincar é o mesmo que poderá curá-las, envolvido em sentimentos esperançosos. A possibilidade de cura é que permite a elas o enfrentamento do tratamento.

 

6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se com este estudo, contribuir para o aprimoramento do conhecimento acerca das repercussões da doença, da terapêutica quimioterápica e suas implicações para o paciente. Pode-se referir que a partir dos resultados e da própria expressão dos participantes, notou-se que principalmente o conhecimento e percepção da doença e a representação do tratamento juntamente com outros fatores atuam como agentes estressores.

A doença é vista como perda, perda dos prazeres da infância, que gera limitações, que retira a criança de uma vida normal e sadia. No entanto, é de fundamental importância o papel da Psicologia no sentido de contribuir para o resgate da qualidade de vida, promovendo a compreensão da criança e de seus familiares para a restruturação dos mesmos sob situações adversas. O objetivo básico é a melhora da qualidade de vida, não apenas a resposta do tumor ao tratamento ou alguns meses de benefício no tempo de sobrevida.

Portanto, este trabalho pretendeu mostrar algumas condições da existência de pessoas que vivem a realidade de seu cotidiano com o câncer infantil, no intuito de instigar reflexões que suscitem uma atitude de busca de alternativas para amenizar o sofrimento da criança, como propostas de intervenções voltadas a ajudar a criança a lidar com o estresse, favorecendo o ajustamento e enfrentamento do tratamento na busca do bem-estar psíquico e social, incluindo ainda a habilidade da família em prover-lhe suporte emocional.

 

7 - REFERÊNCIAS

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1 Psicóloga  pela Universidade Federal do Pará.  Treinanda em Psicologia Hospitalar no Hospital Ofir Loyola
End: Tv. Timbó, 2415, ap. 202 H. CEP: 66043-340. Belém – PA. E-mail: alethea@amazonline.com.br
2 O termo stress em inglês mantém a nomenclatura utilizada pela autora do referido instrumento.
3 A Escala é uma adaptação do Inventário dos Sintomas de Stress Infantil (ISS-I) elaborado por Lipp & Romano, 1997.

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