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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) v.2 n.2 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Saúde mental e programa de saúde da família: percepções do agente comunitário de saúde

 

PSF and mental health: communitary health agent’s (cha) – perceptins about mental health illness

 

 

Silvia R. G. Feneric1; Walter Augusto B. Pereira2; Fernanda M. Zeoula3

 

 


RESUMO

Esse trabalho tem como objetivo investigar concepções e relatos de experiências, que revelam a percepção do Agente Comunitário sobre os problemas de saúde mental na comunidade onde atuam. A partir da identificação dos problemas, que relação ele estabelece com a equipe de saúde mental que serve de referência para o seu trabalho. Trata-se de um estudo inserido na perspectiva da pesquisa qualitativa que analisa os conteúdos das entrevistas, aproximando-se do campo da Antropologia da Saúde. Surpreendeu-nos como o agente transcende o lugar esperado, tendo açÕes de intervenção e de agenciamentos importantes. Confirmou se sua dificuldade para entrar em contato com questÕes de saúde mental e a possibilidade de desgaste pessoal no seu dia-a-dia, gerando fortes reaçÕes afetivas e até adoecimento. Concluímos que é necessário  que o saber do agente seja validado dentro das equipes do PSF, na construção de um novo fazer em saúde e que a equipe de Saúde Mental, mais do que a possibilidade de “capacitá-lo” ou “sensibilizá-lo” para as questÕes relacionadas a esse campo, possa se disponibilizar para escutá-lo, aprendendo a lidar com a realidade do trabalho no território através dele.

Palavras-chave: Programa de Saúde da Família, Saúde mental, Saúde comunitária.


ABSTRACT

The purpose of this work is investigate the conceptions,”word view”and living experiences of  CHA concerning mental health issues in his own community and, afterwards, the relationship he estabilishes with mental health team that supports his work. The method used in this work is a qualitative research based on CHA’s interviews which is closely connected to health antropology. We were astonished to realise CHA overcomes his own professional attributions as he makes important interventions and managements. It has been demonstrated his personal difficulties to manege mental health issues and the possibility of daily weaviness leading to strong emotional reactions and illness. Our conclusion is that CHA knowledge, regarding his local experience, should be valued within communitary health team in order to construct a new health praxis. Far more than trying to “educate or ïlluminate”the CHA with the so-called “scientific knowledge”, the mental health team wich supports his work should be available to listen to him in order to learn how to deal with local work trough the CHA role.

Keywords: Mental health, Health Family Program.


 

 

INTRODUÇÃO

“... Não serve falar de território em si mesmo, mas de território usado de modo a incluir todos os atores. O importante é saber que a sociedade exerce permanentemente um diálogo com o território usado e que esse diálogo inclui as coisas naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento atual.”

Milton Santos

O movimento da Reforma Sanitária em finais da década de 70 e que culminou com a VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986, consolidando o Sistema Único de Saúde (SUS), declara que a saúde é um direito do cidadão, um dever do Estado.

O SUS tem como princípios gerais: a Universalização do Direito à Saúde; a descentralização com direção única para o sistema; a integralização da assistência, garantindo acesso dos cidadãos a todos os níveis de assistência; bem como a participação popular visando o controle social dos serviços prestados pelo sistema.

Inspirado em experiências anteriores, em 1993, o Ministério da Saúde amplia essa orientação com um projeto nacional de reorientação dos serviços básicos de saúde, centrado nas dimensÕes família e comunidade, sendo lançado então o Programa de Saúde da Família.

Para Dominguez (1998), o Programa de Saúde da Família propÕe uma estratégia de reversão do modelo assistencial. A família passa a ser o objeto de atenção, e é entendida a partir do ambiente onde vive. É nesse espaço que se constróem as relaçÕes intra e extra familiares e onde se pode ter uma compreensão ampliada do processo saúde-doença e, portanto, da necessidade de intervençÕes de maior impacto e significação social. Esse modelo rompe com os muros das unidades de saúde e vai para o meio onde as pessoas vivem, trabalham e se relacionam. O ponto central é o estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromisso e de co-responsabilidade entre os profissionais de saúde e a população.

O Programa prevê a criação de equipes de saúde compostas por um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e 6 agentes comunitários de saúde que seriam responsáveis por uma área geográfica onde habitam entre 600 a 1000 famílias. Os profissionais devem residir no município e trabalhar em tempo integral. O agente comunitário de saúde deve residir na área sob sua responsabilidade.

Dentro dessa política de saúde, o agente comunitário, cujo trabalho é remunerado, estabeleceu-se como um profissional central, ocupando um lugar de destaque nas açÕes de atenção básica à saúde da comunidade. Ele atende aos moradores de cada casa em todas as questÕes relacionadas com a saúde: identifica problemas, orienta, encaminha e acompanha a realização dos procedimentos necessários à proteção, à promoção, à recuperação/reabilitação da saúde das pessoas daquela comunidade.

Os agentes comunitários de saúde, portanto, ocupam o lugar de operadores centrais do Programa, sendo os disparadores das açÕes de atenção e cuidados à saúde pela equipe do PSF, incluindo as açÕes de saúde mental.

 

A SAÚDE MENTAL NO PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA

O momento atual de transformação no sistema de saúde caracteriza um cenário privilegiado para a implementação de modificaçÕes de saberes e práticas. É de fundamental importância que se perceba a multicausalidade dos agravos à saúde. Segundo Lancetti (2000, p. 117): “As pessoas não padecem de sofrimento físico e mental separadamente. As condiçÕes ambientais, sociais e mentais formam parte de ecologias inter-relacionadas.”

A escolha da família como novo objeto de atenção e a proximidade das equipes de saúde com a comunidade, no território, revela um maior número de pessoas em situação de sofrimento e de falta de cuidados, vivenciando o estigma, a vergonha, a exclusão e com muita freqüência, a morte (Oliveira & Colvero, 2001).

Para tanto, se impÕe a necessidade de construir um novo paradigma de atenção à saúde, que considera o sofrimento e a dor dos sujeitos e grupos indissociável da forma como vivem a vida, produzindo novas respostas e não mais centrado no modelo hospitalar.

Lancetti (2000) se refere à construção de novas metodologias em um campo pós-manicomial, baseado nos princípios da Reforma Psiquiátrica, do Território, como base de operaçÕes da Reabilitação Psicossocial e na parceria das equipes de saúde da família  como articulação fundamental para libertação de uma nova clínica.

Em 2004, o Ministério da Saúde lança um documento denominado: Saúde Mental e Atenção Básica – o vínculo e o diálogo necessários, indicando as diretrizes para o trabalho no PSF.

 

PROJETO QUALIS

Com base nos bons resultados obtidos em municípios de diversas regiÕes do país, a partir da estratégia de saúde da família, iniciou-se em São Paulo, em 1996, a implantação do Projeto Qualis (Qualidade Integral à Saúde). Fruto de um convênio que reuniu o Ministério da Saúde, a Secretaria Estadual de Saúde e o Hospital Santa Marcelina, foi implantado primeiramente no distrito de Itaquera e os resultados colhidos na experiência da zona leste convenceram o Prof. Adib Jatene, então ministro da Saúde, a propor em 1997 ao Governo Estadual a expansão do Qualis para novas áreas.

As áreas escolhidas foram a zona norte e o Parque São Lucas (zona sudeste) ao qual foi agregado o Distrito de Sapopemba. O convênio foi estabelecido com a Fundação E. J. Zerbini que assumiu a gerência do programa.

Capistrano Filho (1999) afirma que na implantação do Qualis/PSF houve um trabalho de mobilização da comunidade onde seus participantes puderam conhecer detalhadamente as propostas e debatê-las com os técnicos responsáveis pela construção do programa. Estes, por sua vez, puderam conhecer a história daquelas comunidades, suas formas de organização e convivência, assim como a hierarquia de seus problemas. Conhecer o que há de útil e eficaz no saber popular, bem como legitimar práticas que dão resultados, embora não sejam reconhecidas, usando o método científico, foi uma das características diferenciais do Qualis/PSF.

A busca da qualidade é inseparável do conceito chave da Integralidade da assistência. E a Integralidade requer o suporte de serviços ambulatoriais especializados, a retaguarda laboratorial e a inclusão dos cuidados nas áreas da saúde mental, bucal e do parto (Capistrano Filho, 1999).

Capistrano Filho (1999) entende que há três conceitos essenciais para o entendimento do programa: o de grupo, o de território e o de responsabilização. Com relação ao conceito de grupo:

- Ao buscar evitar qualquer enfoque medicalizante, psicologizante ou socializante da família e seus problemas, o programa propÕe a formação ou o fortalecimento de organizaçÕes ou entidades que efetivamente existam na comunidade, não recortadas por patologias (grupos de hipertensos, de diabéticos, de idosos, de tóxico-dependentes) ou situaçÕes especiais (grupos de gestantes, de mães, de adolescentes).

Quanto ao conceito de território:

- O programa, e, sobretudo os agentes comunitários que são parte integrante da população adscrita, antes devem trabalhar para organizar a parcela de sociedade agrupada num determinado território que é mais do que um espaço, pois incorpora uma população com sua estrutura, sua história, sua cultura, suas organizaçÕes.

Quanto à responsabilização:

- Somente um enérgico trabalho que seja ao mesmo tempo assistencial (estilo madre Teresa de Calcutá, costumávamos dizer) e incentivador da organização popular, do cultivo de uma nova sociabilidade, do combate feroz à filosofia de vida competitiva e individualista de nosso capitalismo selvagem modernizado (neoliberal), estimulador de uma atitude altiva, reivindicatória mas de “tomar as rédeas do destino em suas próprias mãos”, só esse trabalho é capaz de criar as redes ou nichos de solidariedade que viabilizam as intervençÕes das equipes. Realizar, dia após dia, esse trabalho enérgico requer uma entranhada ética de responsabilidade de toda a equipe pela vida da população que lhe é confiada.

 

PROJETO QUALIS E SAÚDE MENTAL

Apesar de derivados do mesmo modelo Qualis/PSF, algumas regiÕes foram escolhidas como experiência piloto para a implantação da Saúde Mental inserida no PSF, implicando a contratação de profissionais especificamente para compor a equipe de Saúde Mental, nas regiÕes sudeste e norte. Neste contexto se encontra o PSF/Qualis II na zona norte, que será escolhido como cenário do nosso estudo. Passaremos à sua descrição.

O Programa de Saúde Mental para o projeto Qualis II – PSF (zona norte), nasce da defesa que David Capistrano Filho (coordenador do Projeto) fazia da integralidade como princípio fundamental do SUS e, da determinação e vontade política para que isso ocorresse. O desafio era a criação de um programa em Saúde Mental para o PSF, que lidasse, pela primeira vez no Brasil, com a problemática de uma grande cidade.

O Programa de Saúde da Família tinha se mostrado eficaz em diversos municípios de pequeno porte, a maioria situados no Nordeste e Norte do país, mas nunca tinha sido testado em megalópoles de altíssima complexidade como São Paulo.

Ao invés de criar serviços substitutivos como NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial)/CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e HD (Hospital Dia), optou-se pela criação de uma “equipe volante” de Saúde Mental. Esta equipe funcionaria como retaguarda às equipes de Saúde da Família em todas as questÕes ligadas à Saúde Mental de um determinado território. Segundo Lancetti:

Três idéias forçaram esta decisão: a primeira era de que a trama traçada pelo Projeto e suas conexÕes com os recursos da comunidade deveriam ser consideradas e ativadas em primeiro lugar. A segunda era a de que qualquer processo terapêutico consiste na ressignificação do sintoma, e que, para isso, era preciso criar um dispositivo articulado à rede tecida pela organização social de saúde. A terceira idéia é que a invenção, e esse foi o tesouro que extraímos de todas as experiências vividas, deve fazer parte do método. (Lancetti, 2000, p. 19).

Entre abril e maio de 1998 elaborou-se a estratégia para a implementação do programa, sendo que em julho do mesmo ano iniciaram-se as primeiras atividades.

1. Estrutura do Serviço

O Projeto Qualis II (zona norte) conta com 22 equipes de Saúde da Família distribuídas em cinco unidades, sendo uma delas também um ambulatório de especialidades: Vila Penteado e Vila Souza, pertencentes ao Distrito de Brasilândia; Vila Ramos - pertencente ao Distrito da Freguesia do Ó e Ilza Hutzler e Vila Espanhola – pertencentes ao Distrito de Vila Nova Cachoeirinha.

A equipe de Saúde Mental é volante e funciona como referência para essas cinco unidades e, portanto, para essas 22 equipes de saúde da família.

É composta atualmente por um psiquiatra (20hs), um psiquiatra (30hs), um assistente social (40hs) e três psicólogas (40hs).

2. Metas do Programa de Saúde Mental

a –Sensibilizar as equipes de saúde da família a priorizar os casos mais graves.

b – Evitar a internação psiquiátrica.

c- Disparar um processo de promoção e produção de saúde mental nas famílias atendidas no território.

d – Ajudar as famílias na ajuda (cuidado) ao louco, drogado ou criança e adolescente com vida difícil.

3. Algumas questões conceituais e problemas metodológicos do Programa de Saúde Mental

Família:

Todo grupo de pessoas que coabitam e desenvolvem entre si as mais variadas formas de parentesco (Lancetti, 2000).

Interlocutor invisível:

Da etnopsiquiatria (Tobie Nathan, seguidor de Devereux) a idéia de que todo sujeito dialoga com um interlocutor invisível e que a consulta psiquiátrica e psicológica se dá muitas vezes como um embate epistemológico. Por exemplo: um diz que é um trabalho de macumba e o outro diz tratar-se de uma psicose paranóica.

Família de risco ou vulnerável:

Considera-se família de risco aquelas com história de violência, suicídio, drogadicção e/ou com  parentes psicóticos.

Estrutura familiar:

Contrariamente à idéia de família desestruturada e inspirados nos ensinamentos de Pichon Rivière, aprendemos que famílias com “loucos”, drogados ou crianças problemas são rigidamente estruturadas sendo que esses seus membros são os depositários da loucura familiar.

Saber popular:

Todo grupo social ou comunidade possuem um saber para o enfrentamento de questÕes cotidianas e dos problemas de saúde. Concretamente, vivemos o retorno de práticas populares, abandonadas pela hiperespecialização da medicina e dos ganhos decorrentes disso (capitalismo).

Clínica cartográfica:

Inspirado em Deleuze, Lancetti também afirma que a produção de agenciamentos que conectem as pessoas com as redes trançadas pela organização sanitária ou outras organizaçÕes sociais, com todos e quaisquer recursos escondidos da comunidade, permite a liberação para operacionalização de uma clínica cartográfica: um entremeado de percursos, de deslocamentos entre um mapa e outro.

4. Metodologia do trabalho de Saúde Mental no PSF Qualis Zerbini

Trabalho em equipe:

As equipes de saúde mental e de saúde da família trabalham a partir de reuniÕes de discussão de casos que em geral são identificados pelos agentes comunitários de saúde. O planejamento das estratégias e açÕes para cada família é uma construção feita pelo grupo, podendo resultar tanto num atendimento com duas equipes (domiciliar ou na unidade de saúde), quanto em uma orientação dos próximos passos a serem seguidos pela equipe de saúde da família.

Programa Terapêutico Pedagógico Familiar:

De início, todos os integrantes do grupo familiar ingressam no programa de saúde mental. Todos são pacientes. O reconhecimento do sofrimento grupal é apontado, bem como são agenciadas açÕes para o cuidado em saúde, de cada um dos membros da família. Essa proposta pode constituir-se das mais diversas açÕes: atendimento médico; odontológico; participação do grupo de caminhada da unidade de saúde; do grupo de capoeira; encaminhamento para orientação jurídica; rematernagem; agenciamento com a escola, creche, etc.

Estratégia da surpresa:

Sempre que possível, as equipes de saúde mental e de saúde da família chegam às famílias sem aviso prévio; essa estratégia possibilita que você se depare com uma situação em que não há uma demanda previamente construída, potencializando assim a intervenção e  evitando a reprodução do binômio demanda–respostas tradicionais.

Equipe volante:

O fato de não existir uma equipe fixada a um determinado equipamento ou presa a um agendamento previamente instituído, permite que esta equipe circule, transite, estabeleça agenciamentos e parcerias. Cada situação defrontada é nova. Não existem respostas estabelecidas. O arejamento desta equipe facilita que a invenção seja utilizada como estratégia metodológica.

Parcerias e agenciamentos:

A realização de parcerias, de agenciamentos de desejos são fundamentais para operar os processos de reabilitação psicossocial. Desta forma, não entendemos que haja construção de proposta de vida sem que ocorra agenciamento com a organização sanitária, com outras políticas públicas e com os recursos escondidos na comunidade.

Capacitação:

A capacitação continuada para todos os profissionais do PSF é estratégica e deve fazer parte da metodologia de trabalho no PSF, uma vez que a aproximação e vinculação com uma realidade onde impera a violência, pobreza e exclusão social intensa exige do profissional um outro tipo de preparação.

 

OBJETIVO

Nosso interesse neste estudo é investigar um certo conjunto de concepçÕes e relatos de experiências, que revelam a percepção do Agente Comunitário sobre os problemas de saúde mental na comunidade onde atuam. A partir da identificação dos problemas no desenvolvimento das açÕes, qual relação o agente estabelece com a equipe de saúde mental que serve de referência para o seu trabalho?

 

MÉTODO

Este trabalho está inserido na perspectiva da pesquisa qualitativa, que usa como procedimento a coleta de relatos a partir de depoimentos.

Foram utilizados dados de duas entrevistas com agentes que estavam desde o início do projeto e que se dispuseram a participar. Elas se deram na forma de depoimentos nos quais cada agente pôde falar livremente sobre seu trabalho, a partir da questão: “quando você solicita a equipe de saúde mental?”

Para o embasamento das análises dos conteúdos das entrevistas o trabalho se aproxima do campo da Antropologia da Saúde, utilizando-se especialmente da discussão sobre a experiência narrada como suporte para o estudo sobre o processo saúde-doença. Nos apoiaremos em textos de Rabelo, Alves, Souza, Silveira e Minayo que buscam refletir sobre questões relativas à compreensão da doença como experiência vivida e significada.

A entrevista foi realizada por profissionais que não trabalhavam diretamente ligados aos agentes, considerando que isso comprometeria a expressão do entrevistado. Manteve-se, inclusive, seu anonimato.

Percebemos que os entrevistados falaram livremente, não respondendo necessariamente à proposição inicial, mas tocando em muitos aspectos que compõem a relação entre agentes e equipes, sempre a partir de seus relatos pessoais, ou sempre a partir da experiência vivida.

O material coletado foi organizado a partir de eixos de conteúdo que se destacaram no curso das narrativas, tentando buscar aspectos que pudessem ressaltar, além do que está explicitado na pergunta, outros temas tais como: 1- Como se dá a relação entre os agentes comunitários e a equipe de saúde mental; 2- Referências a respeito da compreensão da proposta de saúde mental no PSF e 3- Como a prática do agente se desenvolve.

Decidimos por destacar, também, a apresentação de um “caso emblemático”, uma situação vivida por um agente para pensar com que desafios eles se defrontam em seu trabalho e que possibilidades encontram para desenvolver sua prática.

 

DADOS RELEVANTES E DISCUSSÃO

1. A relação com a equipe

1.1 Solicitação da equipe no trabalho

O discurso dos agentes fala da relação com a saúde mental em vários níveis e sobre situaçÕes por vezes inesperadas em que sentem necessidade de ajuda da equipe.

O chamado para a saúde mental acaba se dando para além das paredes da unidade. Os agentes contam histórias nas quais encontram pessoas que estão sofrendo em suas casas, que estão aprisionadas pelo medo que sentem de sair ou pela proibição de familiares receosos de que saiam. Essas pessoas não chegam na unidade.

Os primeiros passos relatados são de uma aproximação e aos poucos de uma ligação; uma relação de confiança que vai se estabelecendo. A partir de então, a dificuldade de não saber lidar com esse tipo de problema leva à solicitação da equipe de saúde mental:

“Então, meu primeiro caso foi assim... logo que eu iniciei o cadastro, no começo de 99, eu fui numa casa cadastrar e uma menina me atende só pela janelinha, e mal via o rosto dela porque ela fechava a janela, eu explicava que eles tinham direito a estar usando o posto e ela não respondia, dizia para voltar quando a mãe estivesse. E eu insisti, continuei, era uma casa que ficava num quintal com várias casas, era um corredor com 11 casas, então ela me via nas outras. Mas não tinha condiçÕes de vir quando a mãe estava, porque a mãe trabalhava, só chegava muito à noite ou nos fins de semana. Até que um dia eu cheguei, ela abriu a janela, acho que uns dois meses depois ela abriu a janela, aí eu vi o rosto dela e eu ia lá pelo menos três vezes na semana e ela não saía pra fora, aí ela começou a conversar comigo, aí eu falei se ela queria que eu fizesse o cadastro, eu expliquei...

Eu levei dois meses pra conseguir entrar na casa dela, em quinze dias ela se abriu comigo: ela tinha sido estuprada, o estuprador entrou dentro da casa, só estava ela com o irmão mais novo, estuprou ela dentro de casa com uma faca e desde então, fazia quatro anos que ela não punha a cara fora de casa, que ela tinha medo, que ela não confiava nas pessoas. R. é uma mulata muito bonita.

Falei: Meu Deus! Eu tenho que pedir ajuda porque, sabe, eu não estava preparada, ela começou a confiar em mim e eu conversei com ela que tinha a equipe de mental que trabalhava junto com a equipe de família, que eles poderiam estar escutando, ajudando ela.”

A cada nova situação na qual os agentes falam que se sentem envolvidos emocionalmente com os casos, que se colocam no lugar de familiares, a possibilidade de conseguirem dar respostas parece prejudicada e a presença da saúde mental é solicitada.

“Eu falei: olha, eu vou conversar com a equipe, falar com a equipe de saúde mental, porque eu olhava pra ele e eu chorava junto, eu sei lá, eu tento não me envolver mas eu fico olhando... M. estudou com o meu filho, tem a idade dele, agora meu filho fez 21 anos, ele tem 21 anos e desde os 16 anos que a gente vem cuidando do M.”

Nos relatos identificamos que o agente também solicita a equipe de saúde mental nas situações em que pessoas, que já são atendidas pela equipe de saúde da família, aparecem na unidade apresentando sintomas de descontrole emocional.

“... Que nem outro dia, chegou aqui uma paciente, estávamos eu e a enfermeira nesse dia e ela chegou, chorando, me procurando e começou a gritar, gritar e eu fiquei olhando pra ela e ela gritando. E agora, a mulher não pára de gritar? Levamos ela pra uma sala, ela começou a contar umas coisas e começou a puxar os cabelos, e começou a se bater, e eu disse: deixa ela. Ela se deitou no chão e eu telefonei e falaram: tá numa reunião. Eu falei: num quero saber, eu quero que alguém ligue agora. A gente não sabe o que fazer, a L. já acompanhava o caso.

Enfim, chegou num estado que a enfermeira tava tentando conversar para deixá-la um pouco mais calma, mas ela queria a L. Ela falava: a L. já sabe, já sabe. Mas a gente não sabia, e foi quando a L. chegou e tudo bem, ela conseguiu contornar. Eu também fiquei na sala, mas aquele dia, pra mim, era preciso que alguém da mental tivesse vindo. Muito importante, um caso que eu acho assim: fazer o que com a mulher? A gente não sabia se ela tinha sido medicada, se tomava algum remédio, a médica não estava aqui, não sabia o que fazer com ela.”

Nos casos de abuso infantil, os agentes relatam posições diferentes com relação à solicitação da equipe de saúde mental. Um dos agentes compreende que a saúde mental pode ser chamada para orientar a equipe, mesmo que para dar prosseguimento ao caso que já está sendo atendido:

“Então, que nem na minha área, abuso de criança, é claro que a mental... acho que não seja um caso pra eles, mas que eles tem que estar presentes ali também. A gente precisa deles, porque além ser uma coisa que mexe muito comigo, a primeira coisa que a médica da família ou a enfermeira fala é que vai pedir a presença do profissional que acompanha a equipe, nem que seja pra eles estarem orientando a dar seqüência aquilo que a gente já tava fazendo.”

O outro agente desconfirma a necessidade da saúde mental nesses casos, assinalando que, em sua área, se resolve o dilema de outra forma:

“Assim, casos de estupro na minha área eu não preciso da saúde mental porque casos de estupro são raros e quando tem, eles mesmos fazem justiça!”

1.2 Solicitação da equipe de saúde mental para si

Em uma das falas o agente diz que pede ajuda para si quando a pressão no trabalho está muito grande.

“Eu chamo a saúde mental pra mim... aqui dentro a pressão é muito grande e quando eu tô a ponto de explodir!”

Em outro momento relata que após sentir alterações em seu corpo e ter passado por vários clínicos, que não encontraram nenhum problema dessa ordem, o último lhe diz que talvez o que estaria se passando com ela era um problema de saúde mental.

”Essa semana eu já aluguei a S. (psiquiatra) duas vezes. Já aluguei o W. (psiquiatra), ele acabou me medicando, porque eu tive que viajar e perdi a consulta da minha psiquiatra e eu comecei com problemas... Eu sempre achava que a minha pressão tava baixa, tava isso, tava aquilo, passava com um médico e não era isso, e com outro e não era aquilo, até que a Dra S. falou: acho que você tem um negócio que se chama Síndrome do Pânico. Eu falei: o que quê é isso?”

2. Compreensão da proposta

Nos relatos identificamos que o agente vai transformando sua concepção inicialmente construída sobre a proposta do PSF e sobre a equipe de saúde mental. Nesse processo aparece a dificuldade do agente de entrar em contato com esse novo modelo:

“Quando começamos o trabalho aqui, em 98, tinha alguns casos que eu não conseguia identificar que era para... equipe de saúde mental eu fui conhecer aqui no Qualis. Então era psicólogo, psiquiatra, as pessoas até hoje procuram...”

Depois o questionamento da proposta:

“Hoje tenho uma visão totalmente diferente. A dificuldade que eu tinha é que eu achava que não funcionava, que não era viável, tinha que atender aqui. Esse negócio de atender em casa, eu não achava legal... Acaba expondo demais os pacientes que têm determinados problemas.”

E a necessidade que se explique para que seja incorporada:

“É porque quando a gente não entende o trabalho, quando não tá muito claro na cabeça da gente, fica difícil, é igual assim: você me dá um papel, se você não me explicar a importância daquele papel, ele não vai ter importância nenhuma pra mim, ele vai ter só pra você. Ele só vai ter importância a partir de você me explicar, quando você consegue passar pra mim que aquilo ali é importante, você tem que me dar um motivo, aí sim eu vou começar a pensar, a analisar.”

A compreensão do trabalho em equipe da saúde mental no PSF:

“Então, hoje, quando que eu acho que é um caso pra saúde mental, eu vejo assim: não é um caso pra saúde mental, é um caso pra equipe.”

Conseguir enxergar aspectos positivos nesse trabalho:

“Eu partia de casos que não foram resolvidos e não dos que foram resolvidos. Então, quando eu chegava nos casos que não foram resolvidos aí eu brigava, até que um dia a L. falou: E os que foram resolvidos? E o que a gente fez de bom?

Então eu nunca teria olhado aquilo lá, eu nunca olhei aquilo, o que foi feito, o que não foi feito, é difícil, né?... Não dá pra abraçar o mundo. São poucos, os problemas são grandes, eu acho que eles estão fazendo um bom trabalho, eu aprendi a valorizar, no início acho que eu fui aqui dentro... como uma peste, mas eu gosto muito deles e passei a respeitar.”

Ver os resultados, saber que o trabalho foi feito mas não saber explicar como se deu o processo:

“O caso do E. não dá pra explicar. Bom, eu vejo o E. hoje, não tem explicação, não sei, prova de que o trabalho foi muito bom, só pra quem conheceu. Não dá pra falar do E., um caso que não só pra mim, pra mim e pra comunidade, eu acho que, pra muitos profissionais aqui dentro, ele não tinha jeito, só internando, era um louco. Hoje eu vejo ele como eu, que estou assim conversando com você, um cara totalmente diferente. Deixou as drogas de lado, cuida bem da vida dele, tudo bem, obrigado. E eu tenho certeza que foi um trabalho que foi feito, hoje eu consigo enxergar.”

3. Prática

As práticas e resultados nas ações em Saúde Mental permeiam todo o discurso no depoimento dos agentes. Portanto, eles aparecem tanto na temática da relação com a equipe quanto na da concepção do modelo, e já puderam ser apreciadas nos trechos das narrativas que aparecem nos itens anteriores. Chama-nos a atenção, no entanto, a diferenciação do trabalho quando ele é feito no local onde se vive e, por vezes, onde se nasceu.

Em uma das entrevistas o agente conta-nos que todos os seus vizinhos o conhecem e o procuram, não pelo seu nome mas, sim, pelo seu apelido. Apesar de inicialmente achar que os conhecia também, o novo lugar que assume como profissional de saúde em um modelo como PSF, faz com que tenha uma nova dimensão de conhecimento sobre a vida dessas pessoas e de seus problemas de saúde. Essa aproximação, que vai se traduzindo em uma amplitude do olhar, acaba gerando também uma ligação entre esses atores – agentes/vizinhos.

Os antigos “apenas” vizinhos agora passam a depositar expectativas e respostas aos seus problemas de saúde:

“Eu nasci ali onde eu trabalho, eu conhecia todos os meus vizinhos, tanto é que lá onde eu moro e mesmo aqui, eles não procuram a S., eles procuram a N. Toda hora é: N., tão lhe chamando! E eu achava que eu conhecia todos eles, mas depois que eu passei a ser agente de saúde eu vi que eu não conhecia ninguém. A partir do momento que você entra dentro da casa das pessoas, que você compartilha a intimidade deles, eles confiam em você... Às vezes eu fico pensando: é muita responsabilidade!”

Se por um lado o reconhecimento que a comunidade tem é visto e sentido como gratificação, por outro uma dificuldade se estabelece: a da dependência. Esta passa a ser atribuída, em um dos relatos, também ao agente de saúde, uma vez que o mesmo se coloca como ouvinte atento das pessoas que estão sob seus cuidados:

“No domingo eu tava em casa... a rua que eu trabalho é a rua que eu moro, você entendeu? E é a rua onde eu nasci. O pessoal fala assim: você não conseguiu colocar limites. Mas não tem como, sabe, não tem como, é eu chegar em casa e falar assim pros meus filhos: eu não saio de casa nem pra comprar cigarros, eu não tô pra ninguém. Tá bom mãe. E aí vem um e fala: sabe aquela velhinha?... Eu falo: ah, meu Deus!...

Quer dizer, minha família acabou virando agente comunitária também e no fim eu acabo indo.”

Em uma das entrevistas, uma situação relatada aparece como emblemática desta prática do agente comunitário. A construção passo a passo, de um caminho para o enfrentamento de uma situação de desespero, é descrita. Submetê-la a recortes implicaria o risco de não acompanharmos as etapas e dimensÕes deste processo que foi se desenrolando, por isso segue o relato na íntegra:

Caso F.

“Em dezembro aconteceu uma coisa que, sabe, me tirou meio do ar... Tem uma família que é uma mãe com quatro filhos: três meninas e um menino. Um filho de cada pai, a menina mais velha tem 17 anos, a P. tem uma deficiência mental e tem a M. de 13 anos que carrega a casa nas costas quando ela vai trabalhar, que tem falciforme. Você olha pra ela e parece que ela vai quebrar, de tão magrinha que ela é.

Então eu fui lá. Eu tinha que ir lá pra levar uma consulta pra M. e tinha que ir de manhã. Aí falei: ah, não fui de manhã. E subi pra almoçar, e quando eu vim descendo do almoço pra cá, eu falei: putz... eu tenho que ir lá porque a consulta da M. é amanhã. Eu falei, eu vou agora na hora do almoço porque não sei se à tarde vai dar pra eu subir.

É assim a minha área: a maioria das casas é tudo assim, eu tenho uma casa que é só uma família no quintal, o resto é assim 11, 12, 16, 18, tudo assim, meia complicadinha, né?

E eu desci o corredor, gritando: F.! Ninguém responde, e a porta tá aberta, eu vou entrando. E que eu entro nessa casa, a F., mãe, está sentada na mesa, os quatro filhos, uma caixa de veneno distribuída nos quatro pratinhos. A menininha mais nova, de quatro anos, a M., chorava que nem uma doida porque ela falava assim: não quero comer!

Sabe quando você entra assim... Eu olhei e não acreditei! Falei pra ela: você está louca! Ela disse: não!

E fui falando: você tá louca! E fui tirando, né, catando a caixa de veneno de rato. Ela falou: eu tô desempregada, eu tô sem luz, eu tô sem água, o dono da casa veio e diz que me dá dois dias pra eu sair, aonde eu vou com quatro filhos? Acho que é melhor pelo menos eu dar um fim, assim pelo menos acaba!

Ai eu falei: como você acha que tem o direito de fazer isso? Não.

Ela diz: fazem três dias que eles só tomam água porque não tem o que dar pra comer. Eu já pedi ajuda pra tudo quanto é lugar, eu já pedi até pro Ratinho e não acho ajuda e eu não vou deixar meus filhos sofrendo, a gente dá um fim.

Aí eu fiquei num dilema, assim, desesperada, sabe como? Eu pensava comigo: eu preciso de ajuda, se eu descer e largar ela aqui, apesar de que eu ia descer com a caixa que eu catei, né, mas eu sei lá, eu tô levando a caixa mas ela pode fazer outra besteira com essas crianças.

Menina, foi um desespero, assim tremendo, ai eu chamei uma vizinha, pedi pra ela pelo amor de Deus, que não saísse de lá e falei pra F.: eu não sei, não sei o que vou fazer mas vou te ajudar, você não vai me fazer besteira pelo amor de Deus, eu volto.

Aí desço, chego aqui na unidade, não encontro ninguém, sabe que é ninguém? Ninguém da saúde mental, as poucas pessoas que eu encontrei falavam assim: mas isso é pro serviço social, chama a polícia!

Como eu vou chamar a polícia? Polícia vai tomar os filhos dessa mulher que tinha vindo embora, fugida de Santo Amaro de um Conselho Tutelar, porque os vizinhos tinham denunciado que as crianças ficavam sozinhas. O Conselho Tutelar ia tirar seus filhos. E como eu, que tinha falado pra ela aguardar que eu ia ajudar, ia chamar a polícia?

Aí fiquei aqui desesperada e pensei: sabe de uma coisa? Eu vou dar um jeito! Subi pra minha área de novo e pensei: meu Deus me dá uma luz, porque eu falei pra ela que eu voltava, se não com a solução completa, pelo menos com a ajuda.

Fiquei muito revoltada com a minha direção porque o Dr M. ligou para o Conselho Tutelar, dizendo que as crianças corriam risco de vida e o Conselho Tutelar acabou dizendo que iam pra lá.

Eu disse que não era questão de risco de vida, era uma mãe desesperada, não era que ela queira matar os filhos pra se livrar deles. É um ato de desespero!

Ele dizia assim: mas as crianças correm risco incontinente...

Eu disse: bom, já que o Conselho Tutelar vai subir, eu vou subir. Na época quem subiu comigo foi uma fono que tava aí. Aí olhei pra ela e falei: ó, quer saber de uma coisa, vamos parar no mercado, tem um mercado lá, uns mercadinhos... Aí falei pra turma: ó preciso de um favor... Falei: tem uma família assim, assim. Ela falou: eu te dou a cesta básica, pode levar o que você quiser, contanto que você não fale que fui eu que doei. Eu falei: tudo bem!

A fono falou: ah! eu compro o gás! Porque não tinha gás. Aí eu falei: ótimo! Aí ela falou com os meninos que trabalham no supermercado e nós subimos com a cesta básica e com o gás.

A fono que tava junto comprou ovos, legumes, e levamos. Quando a gente chega lá, eu achei o cúmulo! Como quando é pra tirar o filho de alguém eles chegam rápido? Foi assim, base de meia hora, no máximo 1 hora, quando a gente chega lá, o Conselho Tutelar chega juntinho.

Aí eu falei: misericórdia! E a confiança dessa mulher em mim, fala pra mim?

Aí eu falei com a assistente social que veio junto: eu gostaria que você deixasse eu descer primeiro e conversar, porque ela vai achar que eu trouxe. Tipo, vai buscar ajuda... foi é buscar alguém pra tirar meus filhos.

Aí fui, conversei com ela: não fui eu, o diretor da unidade é que chamou. Ela: Ah, mas eles vão levar meus filhos... Eu: Não vão!

Aí a mulher desceu, falou que o Conselho Tutelar não faz doaçÕes, não tem locais pra dar cesta básica para manter a família nessas situaçÕes e que ela levaria as crianças e que a mais velha não ficaria junto porque tem problemas.

Fiquei revoltada, tão revoltada, falei que ela não ia levar, não! Ela falou: não, mas a gente vai ter que levar porque ela não tem onde ficar. Eu falei: não, a senhora não vai levar porque ela vai ter onde ficar. Ela olhava pra mim, assim, e eu falei: a senhora me aguarde!

E fui na casa do dono das casinhas, que é lá na rua mesmo, o seu V. Expliquei pra ele, falei assim: tá acontecendo isso, isso, isso. O senhor deu dois dias pra F. sair de casa e eu chego lá, ela tá tentando se matar com os filhos! Falei: agora o senhor tá vendo aquele carro lá? Ele: tô. Eu: então, se o senhor ficar falando que ela tem que sair de casa, eles vão tirar o filho dela! Aí ele falou: isso eu não queria. Eu falei: se isso o senhor não queria, o senhor vai comigo lá!

Passei a mão no véio dono da casa e levei lá. Aí a assistente social falou pra ele: mas o senhor faz por escrito que ela pode ficar? Ele falou: olha, escrever eu não sei não, mas por o meu dedo eu sei. E ela escreveu lá, com caneta mesmo, dizendo o que ele disse: que a Fátima poderia ficar naquela casa até ela arrumar um emprego; quando ela arrumasse um emprego, ela começaria a pagar ele a partir de lá pra frente, o que ficasse pra trás não importava; que ela não ia ficar sem casa.

Eu achei que tava, como se diz, resolvido. Que agora ela tinha casa, ela tinha comida, mas, e o emprego? Quem garantia que a comida ia durar a vida inteira? Sabe, eu ficava pensando, vai acabar a comida, ela não vai arrumar emprego e ela vai acabar matando essas crianças e eu vou acabar ficando com... Sabe, é muito complicado.

Aí eu saí procurando emprego pra F. e, graças a Deus, acabei encontrando quem desse, porque tem uma pessoa que é da minha área, que o marido é dono de uma metalúrgica de porte razoável... Já era a segunda vez que eu estava pedindo e ela disse: S., eu vou ver, vou ver. Depois arrumou, a F. está trabalhando, as crianças estão estudando.”

A partir deste relato impactante, cabe ressaltar alguns aspectos significativos da prática desta agente. Ao se deparar com uma situação inesperada, em que a vida de toda uma família - mãe e seus quatro filhos -  estava em risco, ela interrompe o que estava acontecendo e se dispÕe a ajudar. Vai buscar na unidade de saúde seu lugar de proteção institucional, possibilidades para o enfrentamento do drama com o qual tinha se deparado. As respostas que encontra, como chamar a polícia, o serviço social, o Conselho Tutelar, não a satisfazem. Afirma sua concepção de que o que tinha visto não era uma mãe querendo matar seus filhos mas, sim, uma mulher desesperada.

Sem o respaldo institucional que esperava, a força e a coragem das suas açÕes têm como norte o direito à vida e à cidadania. Rompe com o saber institucional estabelecido, quebra limites...

Ao mesmo tempo vai elencando prioridades necessárias ao viver: alimentação, habitação, emprego, agenciando-as e utilizando-se para isso da sua circulação no território. Essas medidas podem ser lidas como de inclusão e de promoção da cidadania. Valendo-se de seu lugar institucional, dos seus valores e singularidade, autoriza-se e introduz uma nova forma de enfrentar os problemas confrontados.

As respostas tradicionais poderiam levar à fragmentação dessa família. A solução que o Conselho Tutelar apresentava era o abrigamento de parte dos irmãos e a institucionalização da filha mais velha, deficiente mental. A mãe muito provavelmente também iria parar em alguma instituição.

Este caso muito nos ensina e nos faz refletir sobre as formas de superação que conhecemos e oferecemos e mostra também uma outra forma de intervir e fazer saúde mental.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, pudemos nos aproximar deste agente e da riqueza de sua atuação no território, com suas vicissitudes e êxitos.

Surpreendeu-nos a potencialidade de suas açÕes, transcendendo o lugar esperado de marcador de consultas, de facilitador das relaçÕes entre a comunidade e a unidade de saúde, dentre outras atribuiçÕes mais formais, apresentando, efetivamente, açÕes de intervenção e de agenciamentos importantes.

Ele agencia e promove a formação de um campo de continência em seu território e responde deste lugar institucional que lhe autoriza as ações, a partir de sua singularidade. Evidencia-se a sabedoria que não está nos livros, mas que tem a ver com o aprendizado da vida.

Decidimos nos aproximar do agente pelo prisma da saúde mental, para compreender o que pensa esse novo trabalhador da saúde numa instituição que se propõe flexível, próxima, promotora de saúde e para saber de que forma esta nova categoria se relaciona com a equipe de saúde mental.

Confirmou se que o trabalho do agente pode envolver desgaste pessoal, por estar em constante contato com situações de sofrimento que geram fortes reações afetivas e até adoecimento. Confirmou-se, também, sua dificuldade para entrar em contato com questões de saúde mental, parecendo que preferiria não ter que fazê-lo.

A análise das narrativas suscitou-nos algumas reflexões:

- que a produção de medidas protetivas poderia ajudar no desenvolvimento do  trabalho do agente comunitário;

- que há necessidade de se discutir o número de famílias sob sua responsabilidade (nos relatos fala-se, por exemplo, de um número excessivo de famílias atendidas, em torno de 312);

- que há necessidade de se garantir que o saber do agente seja validado dentro das equipes de saúde da família, na construção de um novo fazer em saúde;

- que a equipe de saúde mental, mais do que a possibilidade de “capacitar” ou “sensibilizar” o agente para as questões relacionadas a esse campo, pode disponibilizar-se para escuta desse agente, em sua singularidade, aprendendo a lidar com essa realidade através dele.

Esse estudo se propõe a ser uma das múltiplas reflexões possíveis acerca das relações que se estabelecem entre agente comunitário e equipe de saúde, sem a pretensão de esgotá-las.

“Desde muito pequenos aprendemos a entender o mundo que nos rodeia. Por isso, antes mesmo de aprender a ler e a escrever palavras e frases, já estamos “lendo”, bem ou mal, o mundo que nos cerca. Mas este conhecimento que ganhamos de nossa prática não basta. Precisamos de ir além dele. Precisamos de conhecer melhor as coisas que já conhecemos e conhecer outras que ainda não conhecemos.”

Paulo Freire

 

REFERÊNCIAS

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1 Médica psiquiatra da Prefeitura Municipal de São Paulo.
2 Médico psiquiatra do PSF Qualis Zerbini.
3 Psicóloga do PSF Qualis Zerbini.

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