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Psicologia Hospitalar

On-line version ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.3 no.1 São Paulo July 2005

 

ARTIGOS

 

Carência fantasmática de vulnerabilidade somática em pacientes onco-hematológicos com indicação para o transplante de medula óssea1

 

Phantasmatic limitation and somatic vulnerability in onco-hematological patients undergoing bone marrow transplantation

 

 

Rodrigo Sanches Peres; Manoel Antonio dos Santos

 

 


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo analisar a personalidade de pacientes com indicação para o transplante de medula óssea (TMO). Frente a esse objetivo, dez candidatos ao procedimento em questão (adultos portadores de doenças onco-hematológicas) foram avaliados mediante o emprego de uma bateria de instrumentos psicológicos composta por quatro técnicas projetivas, uma técnica analítica e uma entrevista psicológica semi-estruturada. Os dados coletados foram avaliados qualitativamente em função dos critérios estabelecidos pela literatura científica especializada. Além disso, foram interpretados sob a ótica da psicossomática psicanalítica a partir da utilização das proposições teóricas de Pierre Marty. As interpretações formuladas indicam que o funcionamento mental operatório se afigura como uma das principais particularidades habituais da personalidade dos participantes do presente estudo. Ademais, apontam que a maioria dos examinados apresenta especificidades estruturais comuns às neuroses de comportamento, pois os mesmos se mostram pouco capazes de executar atividades sublimatórias, tendem a veicular representações mentais limitadas, se caracterizam por um déficit da atividade fantasmática e, como conseqüência, possuem uma vulnerabilidade somática acentuada. Os resultados obtidos subsidiaram a compreensão das principais características dinâmicas e estruturais da personalidade dos pacientes avaliados e, conseqüentemente, forneceram contribuições para o direcionamento do tratamento multidisciplinar dispensado aos mesmos.

Palavras-chave: Psicossomática, Psicanálise, Personalidade, Transplante de medula óssea.


ABSTRACT

The present study has the intention of analyzing the personalities of subjects undergoing bone marrow transplants (BMT). In this regard, ten candidates for the reported procedure (onco-hematological patients) were assessed with a battery of psychological instruments composed of four projective techniques, an analytical technique and a semi-structured psychological interview. The collected data were qualitatively appraised according to the criteria of the specific scientific literature. Additionally, the data were interpreted according to the psychoanalitycal psychosomatic optics by the utilization of Pierre Marty´s theoretical propositions. The formulated interpretations indicate that operational functioning is one of the main habitual particularities of the personality of the participants of the present study. Furthermore, the data indicate that subjects show, in most cases, structural specificities common to behavioral neurosis, because they show a reduced capacity of sublimation, because they tend to transmit limited mental representations, they are characterized by a phantasmatic activity deficit and, as consequence, they possess an accentuated somatic vulnerability. Those results offered support for the understanding of the main dynamic and structural-personality characteristics of the evaluated patients and, as a consequence, supported the improved treatment that was offered to this population.

Keywords: Psychosomatic, Psychoanalysis, Personality, Bone marrow transplantation.


 


1. Introdução

1.1 Aspectos técnicos do transplante de medula óssea

O transplante de medula óssea (TMO) é um procedimento médico complexo utilizado freqüentemente nas duas últimas décadas no tratamento de uma série de enfermidades graves quando as terapêuticas convencionais não oferecem um bom prognóstico (Thomas, 2000). O método em questão envolve a infusão de suspensões de células-tronco e visa basicamente a reverter a aplasia medular decorrente de doenças hematológicas, oncológicas e onco-hematológicas (Pasquini; Ferreira, 1990). Assim sendo, o TMO oferece possibilidade de recuperação a pacientes portadores de tumores sólidos, leucemias, anemias, linfomas, hemoglobinopatias e outras enfermidades potencialmente letais.

Não obstante, cumpre assinalar que o TMO não se afigura como um método plenamente resolutivo. Trata-se, na realidade, de um procedimento agressivo, que pode tanto recuperar a vida do paciente quanto conduzi-lo ao óbito. Tal paradoxo ocorre basicamente porque a imunossupressão induzida pelo regime de condicionamento pré-TMO torna o receptor temporariamente vulnerável a uma série de complicações precoces e tardias que oferecem riscos à sua vida. Em função disso, cerca de 40% dos pacientes submetidos a essa terapêutica apresenta evolução clínica fatal (Tabak, 2000). Conseqüentemente, o sujeito com indicação para esse tratamento tende a vivenciar angústias associadas ao temor da morte (Lesko, 1989; Contel et al., 2000).

1.2 Aspectos psicológicos do transplante de medula óssea

Até a primeira metade dos anos 80, diversas pesquisas científicas tiveram como objeto os aspectos biomédicos do TMO. Graças aos resultados oriundos dessas pesquisas, o procedimento em questão deixou de ser visto como uma técnica experimental e passou a ser considerado um método convencional, pois suas variáveis biomédicas foram delineadas pormenorizadamente. Atualmente, porém, nota-se que houve uma significativa mudança no foco dos estudos voltados ao TMO em função da necessidade de se compreender melhor a influência dos fatores psicológicos na sobrevida de pacientes submetidos à referida terapêutica (Andrykowski , 1994).

A maior parte dos estudos com esse enfoque aponta que o apoio de amigos e familiares, os recursos adaptativos do paciente e as estratégias de enfrentamento adotadas para lidar com a doença são alguns dos mais importantes preditores da reabilitação pós-TMO (Jenkins; Linington; Whitakker, 1991; Colon et al., 1994; Andrykowski et al., 1995). Além disso, outros autores sugerem que a personalidade do indivíduo se afigura como o fator mais determinante nesse processo (Wolcott et al.,1986; Neuser, 1988; Andrykowski; Brady; Henslee-Downey, 1994; Fromm; Andrykowski; Hunt, 1995; Molassiotis et al., 1997; Wettergren et al., 1997 e Sullivan; Szkrumelak; Hoffman, 1999).

Tomando-se como base o que precede, pode-se concluir que a personalidade dos candidatos ao TMO se afigura como uma variável indispensável para o adequado planejamento do tratamento a ser dispensado aos mesmos. Seguindo esse raciocínio, evidencia-se que a investigação das características de personalidade de sujeitos com indicação para o referido procedimento mostra-se de grande importância. Não obstante, há na literatura científica especializada um número reduzido de pesquisas dedicadas especificamente a essa temática. Em função disso, considerou-se pertinente executar um estudo com o intuito de fornecer contribuições iniciais para o preenchimento dessa lacuna.

 

2. Objetivos

O presente estudo teve como objetivo principal analisar a personalidade de pacientes adultos portadores de doenças onco-hematológicas com indicação para o TMO.

 

3. Método e casuística

3.1 Desenho metodológico

O enfoque idiográfico foi privilegiado no presente estudo, uma vez que, como aponta a literatura científica especializada (Lazarus; Monat, 1984; Hall; Lindzey; Campbell, 2000), o mesmo se destaca – em contraste com a abordagem nomotética – como o mais proveitoso para subsidiar a compreensão da personalidade de um indivíduo. Assim sendo, os dados coletados foram submetidos a análises qualitativas, descritivas e exploratórias. Vale destacar também que se considerou pertinente adotar o método clínico de pesquisa. Desse modo, optou-se por avaliar exaustivamente um grupo relativamente reduzido de sujeitos mediante o emprego de um conjunto de técnicas específicas. Cumpre assinalar, por fim, que estudos de caso foram organizados com o intuito de sistematizar a avaliação e a apresentação dos resultados.

3.2 Participantes

Participaram do presente estudo dez sujeitos com indicação para o TMO, sendo cinco deles do gênero masculino e cinco do gênero feminino. A faixa etária dos mesmos variou dos 19 aos 42 anos (média de 28,3 anos) e o diagnóstico mais freqüente foi o de leucemia mielóide crônica. A maior parte dos pacientes avaliados era casada e não completou o ensino médio.

3.3 Instrumentos

A literatura científica especializada aponta que certas limitações e restrições são inerentes às técnicas psicológicas (Lorenção Van Kolck, 1981; Cunha, 2000). Portanto, a combinação de diferentes instrumentos é apontada como o procedimento mais adequado para que seja possível executar uma avaliação psicológica de qualidade. Dessa forma, no presente estudo optou-se por utilizar como recurso para a coleta de dados seis instrumentos de exame psicológico distintos, a saber: quatro técnicas projetivas (Teste de Apercepção Temática, House-Tree-Person, Desenho da Figura Humana e Desenho da Família), uma técnica analítica (Inventário Fatorial de Personalidade) e uma entrevista psicológica semi-estruturada.

Faz-se necessário salientar que a combinação de instrumentos de diferentes tipos se destaca como uma tendência relativamente recente em avaliação psicológica, uma vez que há algumas décadas as técnicas utilizadas com o intuito de subsidiar o acesso ao conhecimento visado se encontravam intimamente associadas ao enfoque teórico adotado pelo profissional. Atualmente, contudo, esse procedimento tem caído em desuso e a tendência à integração passou a ser – sobretudo em estudos com enfoque clínico – inquestionavelmente mais valorizada (Cunha, 2000).

3.4 Técnica de coleta dos dados

Os participantes do presente estudo foram avaliados individualmente em uma sala reservada e com condições apropriadas nas instalações de um hospital-escola do interior do Estado de São Paulo. A coleta de dados foi dividida em três sessões – de cerca de uma hora e trinta minutos cada – concluídas ao longo do mesmo dia no início da internação pré-TMO. Na primeira sessão os indivíduos foram entrevistados e submetidos à aplicação do House-Tree-Person, do Desenho da Figura Humana e do Desenho da Família. Já na segunda sessão, utilizou-se o Teste de Apercepção Temática. Por fim, na terceira sessão os mesmos responderam às questões do Inventário Fatorial de Personalidade. Ressalte-se também que o presente estudo foi desenvolvido com a aprovação de um comitê de ética autônomo e que a participação dos examinados ocorreu de maneira voluntária e foi formalizada mediante a assinatura de um termo de consentimento.

A entrevista psicológica foi realizada em situação face-a-face, direcionada segundo um roteiro semi-estruturado e gravada em áudio. O House-Tree-Person, o Desenho da Figura Humana e o Desenho da Família foram aplicados em conjunto, de acordo com as instruções de Hammer (1981). Devido à extensão do material do Teste de Apercepção Temática, optou-se por selecionar apenas as pranchas que apresentam conteúdos simbólicos mais relacionados ao objetivo proposto, a saber: 1, 2, 3RH, 8RH, 11, 12RN, 13HF e 16. As pranchas em questão foram utilizadas em conformidade com as recomendações técnicas propostas por França e Silva (1984). Ademais, vale destacar que as estórias elaboradas mediante a aplicação do instrumento em pauta também foram gravadas em áudio. Por fim, é preciso salientar que o Inventário Fatorial de Personalidade foi empregado segundo os procedimentos preconizados por Pasquali, Azevedo e Ghesti (1997).

3.5 Estratégia de avaliação, análise e interpretação dos dados

Os dados coligidos mediante a execução das entrevistas psicológicas foram transcritos literalmente e na íntegra. O material obtido foi então submetido a uma análise temática de conteúdo, realizada pelo pesquisador segundo a proposta de Bardin (1979). Os dados oriundos da aplicação do Inventário Fatorial de Personalidade foram avaliados pelo pesquisador de acordo com as recomendações preconizadas por Pasquali, Azevedo e Ghesti (1997). Em contrapartida, tanto as estórias oriundas da aplicação do Teste de Apercepção Temática quanto as produções gráficas coligidas mediante o emprego do House-Tree-Person, do Desenho da Figura Humana e do Desenho da Família foram avaliadas independentemente e às cegas por juízes especializados (psicólogos pós-graduados com experiência prévia na avaliação de técnicas projetivas) com o intuito de minimizar a contaminação dos resultados.

Para tanto, os juízes utilizaram protocolos de avaliação sistematizados pelo pesquisador de acordo com os critérios estabelecidos pela literatura científica especializada. As unidades de cotação avaliadas consensualmente foram automaticamente consideradas. Já as unidades de cotação avaliadas de maneira conflitante foram discutidas caso a caso pelo pesquisador com os juízes. Após a conclusão desse processo, foram calculados os índices de concordância da avaliação dos desenhos e das estórias coligidas. Tais índices variaram de 0,88 a 0,93 (média de 0,90) para o Teste de Apercepção Temática e de 0,86 a 0,92 (média de 0,89) para as técnicas projetivas gráficas, de modo que, de acordo com os critérios estabelecidos pela literatura científica especializada (Anastasi; Urbina, 2000; Fachel; Camey, 2000), podem ser considerados adequados.

Depois de concluída a avaliação dos juízes, o pesquisador, priorizando uma abordagem qualitativa, interpretou os resultados obtidos a partir do emprego das técnicas projetivas gráficas e do Teste de Apercepção Temática, utilizando, para tanto, os critérios de atribuição de significados fornecidos pela literatura científica especializada. Por fim, o conjunto dos resultados foi interpretado sob a ótica da psicossomática psicanalítica. Com o intuito de viabilizar tal interpretação, optou-se por executar uma articulação entre as proposições de Pierre Marty, por um lado, e as contribuições de Joyce McDougall, por outro, uma vez que ambos podem ser considerados os principais expoentes da abordagem teórica em questão.

3.6 Estratégia de apresentação dos resultados

Em função das limitações de espaço deste estudo, optou-se por apresentar uma leitura do conjunto do material obtido pautada pelo referencial teórico da psicossomática psicanalítica e preterir, como conseqüência, a análise dos indicadores verificados como resultado do processo de avaliação dos achados oriundos da aplicação dos instrumentos empregados. Além disso, cumpre assinalar que, para os fins do presente estudo, serão abordadas apenas as hipóteses formuladas mediante a utilização das proposições de Pierre Marty. Considerou-se pertinente executar tal recorte com o intuito de oferecer ao leitor subsídios para uma compreensão detalhada dos fundamentos teóricos das interpretações elaboradas. Por fim, ressalte-se que, devido a essa opção metodológica, serão levadas em consideração tanto a estrutura psíquica quanto as particularidades habituais e as características atuais da personalidade dos examinados, assim como preconizam Marty, M’Uzan e David (1967).

 

4. Resultados

Interpretados sob a ótica da psicossomática psicanalítica de Marty, os resultados do presente estudo apontam que os examinados possuem diferentes tipos de estrutura de personalidade. Um número significativo de pacientes (n=5) apresenta uma capacidade de simbolização restrita que gera como subproduto representações mentais limitadas e conduz a uma emotividade primária. Como conseqüência, os mesmos usualmente utilizam a ação – e não o trabalho psíquico – como a principal via de expressão dos movimentos inconscientes. Tomando-se como referência as entidades nosográficas descritas por Marty (1993), é possível propor, portanto, que os indivíduos em questão apresentam uma organização psíquica semelhante àquela que caracteriza a neurose de comportamento.

Em contrapartida, uma parcela dos sujeitos pesquisados (n=3) se mostra capaz de elaborar mentalmente – ainda que de forma rudimentar – as tensões às quais é submetida. Em função disso, os mesmos se mostram mais habilitados a executar atividades sublimatórias com certa regularidade. Pode-se cogitar, assim, que apresentam particularidades psíquicas comuns não à neurose de comportamento, mas sim à neurose mal mentalizada. Vale destacar ainda que os demais examinados (n=2) veiculam representações bem organizadas e enriquecidas por conteúdos afetivos com certa freqüência. Não obstante, usualmente apresentam um funcionamento psíquico arcaico e se mostram inaptos a encontrar na linguagem um equivalente do ato. Nesse sentido, podem, de acordo com a concepção de Marty (1993), ser considerados neuróticos de mentalização incerta.

A despeito de apresentarem estruturas psíquicas distintas, os pacientes avaliados possuem diversas particularidades habituais em comum, uma vez que veiculam, em maior ou menor grau, pensamentos superficiais, excessivamente orientados para a realidade externa e estreitamente vinculados à materialidade dos fatos. Conseqüentemente, se caracterizam por um evidente apagamento da expressividade mental e por uma veemente carência fantasmática, de modo que tendem à automatização dos comportamentos habituais. Por fim, vale destacar também que é possível cogitar que os participantes do presente estudo usualmente mantêm, em conformidade com a terminologia proposta por Marty (1993), “relações brancas”, ou seja, são propensos a criar e sustentar relacionamentos que não possibilitam ao outro um acesso verdadeiro à sua realidade psíquica.

Ressalte-se que, ao contrário do que se poderia pensar a princípio, o referido processo não parece ser, como se nota nos quadros obsessivos, o reflexo da utilização de mecanismos de defesa que promovem a perda das conexões entre as representações psíquicas, mas sim o resultado das identificações esquemáticas que os examinados estabelecem em decorrência dos investimentos libidinais escassos que geralmente executam. Tendo em vista o que precede, é possível cogitar que o funcionamento mental operatório descrito por Marty e M’Uzan (1994) se afigura como uma das particularidades habituais mais importantes da personalidade dos indivíduos avaliados.

A maioria dos participantes do presente estudo (n=6) tem empregado operações psíquicas arcaicas que remetem à revivescência de sentimentos penosos associados a eventos traumáticos ocorridos em etapas anteriores do desenvolvimento para se proteger do sofrimento mental desencadeado pelo diagnóstico e pelo tratamento da doença orgânica que os acomete. Em contrapartida, cumpre assinalar que, com esse mesmo objetivo, outros sujeitos (n=4) têm lançado mão de mecanismos de defesa mais elaborados. Porém, tendem a fazê-lo inadvertidamente, de modo que não raro esses mecanismos se mostram inapropriados às exigências inerentes ao contexto situacional no qual se inscrevem. Evidencia-se, assim, que o funcionamento defensivo pouco eficiente pode ser considerado a característica psíquica atual mais relevante do grupo pesquisado.

Vale destacar também que uma das pacientes avaliadas possui uma característica atual peculiar, pois, ao contrário dos demais examinados, apresenta acentuados indícios de depressão. Inicialmente se tem a impressão de que tais indícios se encontram associados à sua condição de saúde e, em última instância, à iminência da morte. Todavia, uma análise mais aprofundada aponta que, na realidade, a depressão da paciente em questão não se relaciona a nenhum objeto em particular. Ademais, cumpre assinalar que o rebaixamento de seu tônus vital parece inviabilizar a execução de qualquer investimento libidinal e que a mesma não apresenta indícios de auto-acusação e nem tampouco culpabilidade. Pode-se presumir, portanto, que o quadro clínico da referida paciente difere de outras formas de depressão mais usuais em seus aspectos principais.

Seguindo esse raciocínio, é possível propor que a participante em pauta apresenta uma condição psicopatológica severa originalmente descrita por Marty (1993) denominada depressão essencial. Essa hipótese parece se corroborar levando-se em consideração que a mesma referiu que encontrou sérias dificuldades para elaborar psiquicamente dois acontecimentos potencialmente desestruturantes – a separação do primeiro marido e a morte da mãe – ocorridos em um espaço relativamente curto de tempo em sua vida, uma vez que, de acordo com o autor citado, a depressão essencial tende a ser desencadeada quando a organização libidinal prévia de um sujeito é radicalmente afetada pela interveniência de eventos traumáticos que não foram devidamente simbolizados e, como conseqüência, reproduziram um estado arcaico de desamparo.

Cumpre assinalar ainda que a depressão essencial favorece a eclosão de doenças orgânicas, pois os ferimentos narcísicos que promove usualmente se orientam, como apontam Debray (1995) e Marty (1998), para a esfera somática, e não para a esfera psíquica. Dessa forma, parece plausível cogitar que a enfermidade onco-hematológica da qual a referida paciente é portadora se afigura como um reflexo de sua depressão essencial – e não o contrário, como apontaria uma análise mais superficial dos dados. Ademais, é preciso destacar que os dados coligidos apontam que, antes do diagnóstico, outros examinados (n=5) passaram por experiências potencialmente desestruturantes que aparentemente não foram elaboradas psiquicamente de maneira adequada, tais como a morte trágica de entes queridos, a infidelidade do cônjuge e a eclosão de outras doenças graves.

É possível cogitar que tais indivíduos não conseguiram executar movimentos psíquicos de organização evolutiva após a ocorrência dos referidos acontecimentos traumáticos. De qualquer modo, executaram investimentos libidinais capazes de atenuar o impacto das tensões às quais foram submetidos e, assim, não desenvolveram uma depressão essencial. Em contrapartida, movimentos contra-evolutivos que promoveram a dispersão dos elementos psíquicos anteriormente estruturados foram desencadeados em função de tal processo como subproduto da carência fantasmática que caracteriza os sujeitos em questão. Essa dispersão, por sua vez, cria, segundo Marty (1998), condições propícias para o desenvolvimento de doenças orgânicas, pois leva as reações somáticas a substituírem momentaneamente a elaboração psíquica. Seguindo esse raciocínio, o adoecimento dos pacientes em pauta também pode ser associado a fatores de ordem emocional.

Ressalte-se, contudo, que, como apontam Horn e Almeida (2003), os desdobramentos do desenvolvimento inadequado da organização evolutiva tanto podem ser desestruturantes quanto reorganizadores. Assim sendo, não se deve estabelecer uma relação de causa e efeito entre o movimento contra-evolutivo desencadeado pelos eventos traumatizantes que acometeram os participantes do presente estudo e a eclosão de suas respectivas enfermidades. Na realidade, os indivíduos em pauta aparentemente apresentaram uma desorganização progressiva porque a interrupção da organização evolutiva que se produziu a partir dos referidos acontecimentos engendrou o surgimento de feridas narcísicas profundas e fomentou o empreendimento de um movimento regressivo demasiadamente prolongado, potencializando, assim, a vulnerabilidade somática dos mesmos.

 

5. Discussão

A literatura científica especializada indica que pacientes portadores de doenças somáticas geralmente apresentam estruturais psíquicas compatíveis com aquelas que caracterizam as neuroses de comportamento ou as neuroses mal mentalizadas. Possivelmente isso ocorre porque, como apontam Marty (1993), Debray (1995) e Vieira (1997), tais modalidades de organização psíquica não viabilizam a integração das tensões pulsionais e dificultam a adequada descarga das excitações às quais o indivíduo é submetido ao longo da vida. Assim sendo, fazem com que o aparelho sensório-motor desempenhe um papel central no escoamento das tensões que não são elaboradas psiquicamente, o que favorece, em última análise, o surgimento de enfermidades orgânicas.

Diversos estudos – tais como os conduzidos por Santos Filho (1993), Silva e Caldeira (1993), Smadja (1995) e Torrano-Masetti (2000) – apontam que pacientes portadores de doenças somáticas usualmente apresentam, assim como os indivíduos avaliados, características comuns ao funcionamento mental operatório. Além disso, uma série de autores – Marty (1998), Marty e Loriod (2001), Horn e Almeida (2003), dentre outros – afirmam que, em muitos casos, o desenvolvimento de uma doença orgânica se encontra intimamente associado à ocorrência de movimentos contra-evolutivos desencadeados por eventos traumáticos, uma vez que os mesmos promovem um retorno da libido a posições anteriores, tornando o aparelho psíquico incapaz de executar simbolizações e levando o aparelho sensório-motor a assumir a frente dos processos de exteriorização das demandas pulsionais.

Evidencia-se, portanto, que, em linhas gerais, os resultados do presente estudo são compatíveis com os achados da literatura científica especializada. É preciso reconhecer, porém, que há um número reduzido de pesquisas dedicadas especificamente à personalidade de pacientes portadores de doenças onco-hematológicas e executados sob a ótica da psicossomática psicanalítica, o que dificulta o processo de comparação das hipóteses ora formuladas. Conseqüentemente, as interpretações propostas não devem ser generalizadas indiscriminadamente, mas sim consideradas contribuições iniciais à compreensão do objeto de estudo em pauta.

Vale salientar também que o conjunto das análises executadas sugere que é possível diferenciar a doença apresentada pelos examinados das enfermidades que acometem a maioria das pessoas vez ou outra ao longo da vida. Nesse sentido, faz-se necessário admitir que, em maior ou menor grau, qualquer sujeito tende a somatizar nas ocasiões em que seus recursos psíquicos se mostram incapazes de subsidiar a elaboração das tensões inerentes a sua existência. Cumpre assinalar, porém, que, na maioria dos casos, tal recurso é adotado como uma medida extrema e esporádica. Assim sendo, engendra patologias reversíveis ou crises de doenças crônicas que não colocam em risco a sobrevivência do indivíduo.

A maioria dos participantes do presente estudo, em contrapartida, aparentemente utiliza o artifício em questão de modo recorrente, uma vez que apresenta um significativo histórico de enfermidades orgânicas graves – motivadas, em sua maior parte, por situações de sofrimento mental que não foram devidamente simbolizadas. Assim sendo, pode-se cogitar que, em virtude de apresentarem uma notável carência fantasmática, os mesmos tendem a criar condições favoráveis para o surgimento de doenças que oferecem perigos à suas próprias vidas quando encontram dificuldades para elaborar as excitações às quais são submetidos. Com efeito, se destacam como portadores de uma vulnerabilidade somática acentuada, de modo que não podem ser comparados com indivíduos que apresentam somatizações ocasionais.

Ressalte-se, entretanto, que tal hipótese não sugere – ao contrário do que poderia cogitar a partir de uma leitura superficial – que a enfermidade da qual os pacientes pesquisados são portadores deve ser entendida como uma doença psicossomática, ou seja, decorrente majoritariamente de fatores psíquicos. Em última análise, tal proposição seria incoerente com os postulados da psicossomática psicanalítica, pois, de acordo com a abordagem teórica em questão, a unicidade mente-corpo faz do homem um ser psicossomático por definição. Conseqüentemente, torna-se patente que, como aponta Marty (1993), afirmar que uma dada afecção é psicossomática encerra uma falácia, pois quando utilizado como adjetivo, o termo “psicossomático” remete ao antigo dualismo mente-corpo.

A concepção psicossomática reconhece a multifatorialidade do adoecimento orgânico e não atribui exclusivamente a determinantes psíquicos a eclosão de enfermidades físicas. No entanto, em virtude da complexidade de tal processo, a abordagem em questão inegavelmente privilegia a análise de seus aspectos psicológicos. Nesse sentido, essa opção metodológica não se afigura como um reducionismo, mas sim como um recorte necessário diante das múltiplas facetas do adoecer, uma vez que é compatível com a postura monista preconizada pela concepção em pauta. Assim sendo, as hipóteses psicossomáticas acerca da gênese de afecções orgânicas não excluem outras tentativas de explicação desses fenômenos – sejam elas médicas, culturais, sociais ou de outro caráter – apoiadas em elementos conceituais de raciocínio distintos.

6. Conclusões

Tendo em vista o que precede, conclui-se que a análise do material coligido subsidia a compreensão dos principais aspectos dinâmicos e estruturais da personalidade dos examinados. Conseqüentemente, é possível cogitar que o presente estudo gerou contribuições para o tratamento dispensado aos examinados, visto que diversos autores defendem que a personalidade dos pacientes é uma variável de grande relevância para o adequado planejamento das intervenções multidisciplinares a serem conduzidas junto a candidatos ao TMO. Faz-se necessário salientar, todavia, que o desenvolvimento de novas pesquisas é imprescindível para o avanço do conhecimento científico acerca do objeto em questão. Ademais, o presente estudo aponta a necessidade de analisar o processo saúde-doença a partir de uma perspectiva de continuidade evolutiva e funcional entre o psíquico e o orgânico.

 

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1 Pesquisa subvencionada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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