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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) v.4 n.1 São Paulo jan. 2006

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Crenças sobre gestação, parto e maternidade em mulheres gestantes com histórico de abortamento habitual

 

Befiefs on maternity, childbirth, and maternity in pregnant women with a background of habitual abortion

 

 

Ariane Thomaz Espindola1; Gláucia Rosana Guerra Benute2; Dr. Mario Henrique B. de Carvalho3; Kátia Osternack Pinto4; Mara Cristina Souza de Lúcia5; Marcelo Zugaib6

Faculdade de Medicina - Universidade de São Paulo - Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo tem como objetivo identificar as crenças existentes no período gestacional acerca da gestação e maternidade, bem como investigar as expectativas em relação ao parto. Foram entrevistadas 32 gestantes, em acompanhamento pré-natal no Ambulatório de Abortamento Habitual. Foram realizadas entrevistas semidirigidas, com um questionário previamente elaborado. A análise dos dados foi desenvolvida através de uma análise quantitativa e, qualitativa, por meio da técnica de Análise de Conteúdo. Os resultados obtidos versam sobre a influência da cultura e dos valores sociais enquanto fatores importantes às questões referentes à gestação e a maternidade. Conclui-se que, para essas mulheres, gerar um filho é uma tentativa de dar novo sentido à vida, sendo uma realização mais do que pessoal, social, instituída culturalmente à mulher. A reprodução é vista como uma norma social, em que se espera das mulheres desejem e gerem filhos, colocando-as em uma posição extremamente vulnerável ante a impossibilidade de gerá-los.

Palavras-chave: Crenças, Gestação, Maternidade, Abortamento habitual.


ABSTRACT

This study has as its purpose the identification of existing beliefs during the period of pregnancy on pregnancy itself and maternity. In addition, the study proposes to investigate expectations in relation to birth in pregnant women. A sample of 32 pregnant women was used. Semi structured interviews were employed, with a previously prepared questionnaire. The data analysis was both quantitative and qualitative, and carried out through the Content Analysis Technique. The results obtained related to the influence of culture and social values as important factors in the issues of pregnancy and maternity. The study concluded that, for these women, giving birth to a child is an attempt to give new meaning to life, this being a social duty that is actually expected of women more than being something personal, in which reproduction and the desire to bring forth children is seen as a social norm. This puts them in an extremely vulnerable position when they find it impossible to do so.

Keywords: Beliefs, Pregnancy, Maternity, Habitual abortion.


 

 

INTRODUÇÃO

Este estudo é parte integrante de um projeto de pesquisa maior, Crenças existentes no período gestacional, que abrange uma amostra de 480 pacientes gestantes em acompanhamento pré-natal no Ambulatório de Clínica Obstétrica - HCFMUSP.

Embora haja uma expectativa alegre permeando o período da gestação, a mulher grávida pode experimentar uma ampla variedade de sentimentos e emoções advindos das mudanças físicas, psicológicas e sociais concernentes ao ciclo gravídico-puerperal, as quais exigem da mulher uma adaptação à nova condição de vida, incluindo: a aceitação da realidade da gravidez; a mudança da imagem corporal; o desenvolvimento do vínculo afetivo com o feto; e enfim, o ajuste dos pensamentos, hábitos e atitudes em função da gestação e da maternidade uma vez que sentimentos como medo, ansiedade e insegurança poderão se intensificar nesse período.

Essa ambivalência, entretanto, não significa a rejeição da gravidez, mas sim a existência de sentimentos contraditórios e conflitos diversificados, visto que, toda gravidez implica no surgimento de sentimentos opostos em relação à maternidade, trazendo consigo potenciais perdas e ganhos, além da perspectiva de mudanças e novas adaptações (Maldonado, 2002).

Em geral, tais conflitos são transitórios, situacionais. Se a gravidez normal é vista como um desafio adaptativo, a gestação de mulheres com histórico de abortamento habitual representa maior problema emocional e social, uma vez que sua repercussão vai para além da grávida e seus familiares, suscitando questões sociais mais amplas.

Entende-se por abortamento habitual a história reprodutiva de três ou mais abortos sucessivos espontâneos. Essa é uma situação relativamente comum e que representa um desgaste emocional intenso na vida de uma mulher (Barini et al., 2000). O termo também se aplica quando se observam dois abortos em pacientes com idade acima de 35 anos. Segundo Barini, et al. (2000), a etiologia do abortamento habitual ainda é desconhecida, podendo estar associada a diversos fatores, entre os quais estão as causas anatômicas, endócrinas, genéticas, infecciosas e imunológicas.

Os autores referem que há uma estimativa de que a taxa de perdas precoces na gestação esteja entre 12 e 15%, afetando cerca de 2% da população em idade reprodutiva. O risco de perda aumenta de forma gradativa quando o aborto se repete. Em mulheres que já tiveram dois abortos sucessivos, a possibilidade de um terceiro está entre 17 a 35%, e para aquelas com histórico de três ou mais abortos, a probabilidade de ocorrência de um novo aborto varia de 25 a 46%.

Juntamente com os aspectos biológicos, os fatores emocionais advindos da experiência de abortamento demonstram significativa relevância no estudo da dinâmica do fenômeno.

Dessa maneira, quando o ciclo gravídico-puerperal experimenta rupturas e perdas, desencadeia-se um processo de luto pelo filho idealizado e pelo filho real, ambos perdidos, provocando um período de crise emocional de difícil elaboração, no qual as crenças acerca da perda tomam um significado ainda maior do que aquele que a ciência pode explicar.

Segundo Quayle (1997), a sociedade tende a minimizar as repercussões emocionais da vivência do abortamento, seja este recorrente, eventual, espontâneo ou provocado, especialmente porque está mais preocupada com o controle da natalidade, parecendo pouco se importar com as vivências associadas à ausência de maternidade/paternidade, principalmente quando esta não é uma escolha consciente, mas sim imposta por meio do abortamento. Além disso, evidencia-se também a dificuldade das culturas ocidentais em lidar com as questões sobre a morte e o morrer, o que torna ainda mais distante das discussões cotidianas o impacto gerado pela vivência do abortamento.

Tal tendência se justifica, talvez, pelo fato de que o abortamento representa a morte, a perda, na medida em que encerra abruptamente a gravidez, de maneira inesperada e imprevisível, caracterizando-se, como uma crise normativa, na qual ocorre a quebra de expectativas boas e/ou ruins no que se refere à gestação e maternidade, evidencia-se a ausência de um filho real e a confirmação de crenças e fantasias de incapacidade de gerar a vida, de possuir uma interioridade ruim, estragada, de ser merecedora de um castigo, de fraqueza (idem).

Gambini (1986) considera que "o aborto é uma possibilidade fundamental da reprodução", de modo que está diretamente ligado à vida, embora represente a morte.

O abortamento espontâneo refere-se primordialmente a situações de perda e de fracasso, nas quais o sentimento de culpa e vulnerabilidade são muitas vezes expressos por meio das crenças e fantasias acerca da gestação e seu suposto "insucesso".  No caso das mulheres com histórico de abortamento recorrente, uma nova gravidez freqüentemente intensifica os medos, uma vez que existe a ameaça concreta de perda, o temor de não gerar um filho perfeito, forte e saudável. É o medo do desconhecido, pois mesmo que haja a vivência do abortamento anteriormente, cada gestação é única e marca um período de transição e mudanças, onde muitas vezes o cotidiano da mulher é alterado por cuidados, remédios, repousos e eventuais procedimentos cirúrgicos e internações hospitalares.

Além da dor física, que não deve ser menosprezada, uma perda gestacional remete à dor e ao sofrimento psíquicos, dado o caráter disruptivo, acidental, do fenômeno.

Quayle (1997) refere que a mulher passa, então, a temer pela própria vida e por sua saúde, como se à perda gestacional fossem seguir-se naturalmente outras, a fim de explicá-las e conferir-lhe um significado, eliminando, assim, fantasias de culpa.

A vivência de abortamento espontâneo, principalmente quando recorrente, provoca um intenso sofrimento psíquico, de difícil elaboração.

A não-maternidade assume diversos significados, particulares para as diferentes mulheres e, ainda, mobiliza emocionalmente cada uma delas, na medida em que não ter filhos implica em não realizar um potencial, em desviar-se de uma norma social e cultural, e em instaurar uma significativa (e incômoda) diferença daquelas mulheres-mães.

Para Mansur (2005) é fundamental reconhecer que a vivência do abortamento espontâneo recorrente encontra-se num contexto entre história, cultura, sociedade, família e personalidade, configurando uma experiência única e singular. Sua compreensão deve se dar numa dimensão biopsicossocial, considerando, além dos aspectos físicos e genéticos, as expectativas em relação aos papéis femininos tradicionais, as crenças e fantasias a respeito da maternidade, bem como a diversidade dos desejos das mulheres na contemporaneidade, os quais não incluem necessariamente vivência voluntária da maternidade.

 

OBJETIVOS

1.1 OBJETIVO GERAL

Identificar as crenças existentes no período gestacional e a influência destas na vida das mulheres.

2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Identificar as crenças existentes no período gestacional relacionadas à gestação e à maternidade, em gestantes com histórico de abortamento habitual;

Investigar suas expectativas em relação ao parto.

 

CASUÍSTICA E MÉTODO

3.1 POPULAÇÃO ALVO

Foram convidadas a participar desse estudo 32 gestantes, que se encontravam no terceiro trimestre gestacional e que estavam em acompanhamento pré-natal no setor de Abortamento Habitual no Ambulatório da Divisão de Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Foram excluídas da pesquisa as pacientes com algum distúrbio psiquiátrico de maior expressão e aquelas que apresentaram diagnóstico de malformação fetal.

3.2 INSTRUMENTOS

O instrumento utilizado foi uma entrevista semidirigida utilizada para conhecer um pouco mais sobre as crenças da paciente em relação à vivência gestacional, por meio de um roteiro previamente formulado.

3.3 PROCEDIMENTOS

As pacientes que cumpriram os critérios de inclusão na amostra, foram convidadas a participar da pesquisa. Foram esclarecidos os objetivos da mesma, ressaltando que o sigilo referente à sua identidade seria completamente mantido. Em a paciente concordando em colaborar, foi apresentado o Termo de Esclarecimento e Livre Consentimento, obedecendo, assim, aos princípios éticos que regem as pesquisas com seres humanos e garantindo, à colaboradora, o acesso às informações a respeito da pesquisa em questão. Em seguida, foi realizada entre semi-dirigida.

3.4 ANÁLISE DOS DADOS

A análise dos dados foi realizada através da técnica de Análise de Conteúdo das questões relacionadas à maternidade, e "Natureza Feminina".

Trata-se de uma avaliação qualitativa, a qual também pressupõe uma análise quantitativa dos dados, possibilitando interpretar a comunicação de forma objetiva e sistemática do conteúdo manifesto nas entrevistas.

A unidade de análise foi o discurso, o relato.

 

RESULTADOS

A idade das pacientes variou entre 19 e 43 anos, sendo que a média de idade foi de 30,34.

Tabela 1. Distribuição dos dados de acordo com a idade de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

 

 

A maioria das mulheres entrevistadas (34,38%) na faixa que compreende as idades entre 19 e 25 anos.

 

 

Gráfico 1. Dados referentes ao exercício ou não de atividade remunerada de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP.

Quanto ao trabalho, do total da população da amostra estudada, 56% das mulheres exerciam algum tipo de atividade remunerada (Gráfico 1).

 

 

Gráfico 2. Distribuição dos dados quanto ao estado civil de 32 mulheres com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP.

No que se refere ao estado conjugal, observou-se que a maioria das mulheres entrevistadas (56%) é casada, conforme mostra o Gráfico 2.

 

 

Gráfico 3. Dados referentes ao número de gestações de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, atendidas no Ambulatório da Divisão de Clínica Obstétrica, ICHCFMUSP.

Quanto ao número de gestações, a maior parte da amostra (72%) estava na quarta ou mais gestação. A média de gestações vividas foi de 4,5 (Gráfico 3).

 

 

Gráfico 4. Dados relativos ao número de filhos vivos de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP.

Já com relação ao número de filhos vivos, salienta-se que 53% das pacientes entrevistadas não possuíam filhos vivos. A média encontrada para o número de filhos vivos foi inferior a um, o que se justifica pelo próprio histórico de abortamentos recorrentes.

Tabela 2. Distribuição dos dados referentes à renda familiar de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

 

 

A renda familiar estabelecida entre a faixa de 1 a 3 salários mínimos foi de 50% do total da amostra (Tabela 5) com média de R$ 1009,38.

 

 

Gráfico 5. Distribuição dos dados referentes ao planejamento da gravidez de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

Conforme se observa no Gráfico 5, 53% das mulheres entrevistadas declararam não ter planejado a gestação atual, embora 100% da amostra tenha afirmado ter o desejo pela gestação, aceitando-a independente do planejamento.

 

 

Gráficos 6. Distribuição dos dados referentes à opinião sobre se toda mulher nasceu para ser mãe, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

 

 

Gráficos 7. Distribuição dos dados referentes à justificativa da opinião sobre se toda mulher nasceu para ser mãe, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

Quando questionadas se toda mulher nasceu para ser mãe, 78% da população total da amostra declararam que não, conforme se observa no Gráfico 6. Já quanto aos motivos da opinião, 56,25% declararam que algumas mulheres não têm capacidade e/ou competência para a maternidade, desqualificando-as, conforme o Gráfico 7.

 

 

Gráficos 8. Distribuição dos dados referentes à opinião sobre as mulheres que dizem não querer ter filhos, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

Constatou-se que 46,88% da amostra estudada acreditavam que não querer ter filhos é uma opção de vida; 21,87% desqualificaram as mulheres que dizem não querer ter filhos:"Com certeza uma mulher que não quer ter filhos é um monstro. Tem gente que não gosta de criança e não tem jeito com elas. Mas a mulher foi feita pra isso".(Gráfico 8)

Observou-se ainda que 15,62% não acreditavam que esse fosse realmente o desejo dessas mulheres que afirmam não querer ter filhos e 15,63% afirmaram não saber responder à questão.

 

 

Gráficos 9. Distribuição dos dados referentes à opinião sobre a possibilidade de uma mulher ser feliz sem ter filhos, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

 

 

Gráficos 10. Distribuição dos dados referentes à justificativa quanto à opinião sobre a possibilidade de uma mulher ser feliz sem ter filhos, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

Verificou-se que, segundo a opinião das mulheres entrevistadas, 50% acreditavam que é possível ter uma vida feliz sem filhos, conforme mostra o Gráfico 09. Ao se investigar sobre os motivos de tais opiniões, observou-se que 34,38% consideravam a condição da maternidade como uma opção de vida:

"Se ela escolheu isso pra vida dela, claro que sim! É uma opção... às vezes tem outras prioridades na vida".

Para 34,38% das mulheres entrevistadas, ter um filho significava completude:

"Pode até achar que é feliz, mas um filho complementa a vida de uma casa. É a felicidade completa!".

Observou-se ainda que 21,87% declararam que é possível substituir a falta de um filho, seja por meio de bons relacionamentos, aquisição de animais domésticos ou mesmo dedicar-se ao trabalho. Apenas 3,12% desqualificaram as mulheres que não têm ou não podem ter filhos, afirmando que estas não têm capacidade para ser mãe:

"Tem umas que gostariam de ter, mas não podem, ou o parceiro não quer. Ou é porque não gosta mesmo de criança. Então vai ser mais feliz sem filhos mesmo".

 

 

Gráfico 11. Dados referentes à opinião sobre o imaginário de como seriam as suas vidas se não tivessem filhos, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

Indagadas sobre como seria a vida das mulheres entrevistadas caso não tivessem filhos, 84,38% declararam a possível existência de sentimentos negativos - falaram sobre tristeza, depressão e monotonia; 9,37% não imaginaram a possibilidade de viver sem filhos, afirmando não saber como seria a vida sem eles; 3,13% relataram haver cobrança por parte do marido e de familiares para que o casal tenha filhos e, ainda, 3,12% acreditavam que nada mudaria.

 

 

Gráfico 12. Distribuição dos dados referentes à opinião sobre a veracidade da frase: "Ser mãe é padecer no paraíso", de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

Tabela 3. Distribuição dos dados referentes à justificativa da opinião sobre a frase "Ser mãe é padecer no paraíso ", de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

 

 

Tabela 4. Distribuição dos dados referentes à opinião sobre o que há de positivo em ser mãe, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

 

 

Em relação à opinião das pacientes entrevistadas sobre o que há de positivo em ser mãe, observou-se que 31,25% consideraram a maternidade como doação e que este era o aspecto positivo. A categoria denominada ‘doação’ tem o intuito de designar que as mulheres entendem a maternidade como algo que exige maior canalização de energia para o filho, desde a atenção até os cuidados com a criança:

"É muito bom ser mãe. A participação desde a gestação, educação dos filhos, a cumplicidade com o filho".

Notou-se, ainda, que 28,13% declararam que a afetividade, ou seja, a reciprocidade do amor e carinho entre mãe e filho é o que há de positivo em ser mãe; 25% das mulheres deram respostas evasivas; 6,25% relataram que a maternidade é uma condição imposta culturalmente à mulher; e 6,25% não souberam responder à questão.

Tabela 5. Distribuição dos dados referentes à opinião sobre o que há de negativo em ser mãe, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

 

 

Já quanto ao que há de negativo na maternidade, da população total da amostra, 34,38% afirmaram não haver nada de ruim em ser mãe; 21,87% consideraram como negativo ter que se doar em função do filho, priorizando os desejos e as vontades deste sobre os próprios desejos da mulher:

"Abrir mão da sua vida pra viver em função da criança, deixar de sair, de viajar".

Doença e morte do filho foram consideradas o que pode haver de pior na maternidade para 18,75% das mulheres entrevistadas; 12,5% acreditavam ser a fase da adolescência dos filhos; 9,38% atribuíram aos fatores externos, tais como más companhias, violência e drogas, o caráter negativo da maternidade e 3,12% deram respostas evasivas.

Tabela 6. Distribuição dos dados referentes ao imaginário sobre como a maioria das mulheres se sente quando está grávida, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

 

 

Ao serem indagadas sobre como imaginam que a maioria das mulheres se sente quando está grávida, 43,75% acreditam que se sentem felizes; 18,75% não responderam à questão de modo adequado, dando respostas evasivas. Para 15,63% das mulheres entrevistadas, a mulher quando está grávida fica sensível e 9,37% considera que há um aumento da afetividade:

"É muito bom ver o bebê crescer, sentir ele mexendo na barriga, ver a carinha dele no ultra-som. Com tudo isso a mulher fica muito mais amorosa, vê as coisas de um outro jeito".

Notou-se, ainda, que 6,25% das pacientes consideraram que a gravidez implica em sentimentos negativos, tais como tristeza, nervosismo, medos e preocupações:

"A mulher fica muito cansada, se sente mais carente. Tem umas que ficam tristes, nervosas, muito preocupadas com o bebê, se vai dar tudo certo, essas coisas".

Tabela 7. Distribuição dos dados referentes aos sentimentos em relação à própria gestação, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

 

 

No que diz respeito aos sentimentos quanto à própria gestação, a grande maioria das mulheres entrevistadas (59,38%) declararam se sentir felizes com a gravidez; 15,62% relataram a existência de sentimentos ambíguos durante esse período pelo qual estão passando:

"Eu estou muito alegre, mas ao mesmo tempo é ruim porque judia muito, fico preocupada".

Observou-se, ainda, que a existência de sentimentos negativos (medo, insegurança, tristeza e carência) foi considerada como predominante durante esse período gestacional para 6,25% da amostra.

 

 

Gráfico 13. Dados referentes à opinião sobre a gestação ser o melhor ou pior momento na vida de uma mulher, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

Tabela 8. Distribuição dos dados referentes à justificativa da opinião sobre a gestação ser o melhor ou pior momento na vida de uma mulher, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

 

 

Ao ser questionadas sobre a opinião em relação à gestação ser o melhor ou pior momento na vida de uma mulher, a maioria da população total da amostra respondeu que este é o melhor momento, conforme indica o Gráfico 13.

Já quanto às justificativas referentes à opinião das mulheres entrevistadas, observou-se que 21,88% consideraram a gravidez como uma opção e, portanto, sendo esta uma escolha consciente e planejada, significaria a realização de um sonho, um momento de felicidade; 21,88% deram respostas não condizentes à pergunta; 15,62% declararam que depende muito do momento de vida em que a mulher está passando, ou seja, se ela deseja e está preparada para a maternidade e as responsabilidades a que se seguem, bem como a situação financeira em que se encontra:

"Depende da vida que ela esteja levando, se está em boas condições financeiras, dos planos que ela tem".

Para 12,5% das mulheres entrevistadas a gestação é vista como um período de recompensa, ou seja, quando as atenções do marido e dos familiares se voltam para a gestante e ela tem mais privilégios em função disso. Já outros 12,5% consideram a gestação como um período de completude, no qual a mulher realiza um sonho de vida e sente como se tivesse gerando uma extensão sua:

"É um momento de prazer, alegria, que o casal compartilha. É muito bom você sentir que tem um pedacinho seu ali dentro. É uma realização!"

 

 

Gráfico 14. Dados referentes a sentir ou não os movimentos do bebê, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

Tabela 09. Distribuição dos dados referentes à opinião sobre a sensação dos movimentos do bebê, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

 

 

Verificou-se que da população total da amostra, 87% já sente o bebê mexer, como mostra o Gráfico 14.

 

 

Gráfico 15. Dados referentes à existência ou não de preocupação quando o bebê não mexe, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

 

 

Tabela 10. Distribuição dos dados referentes à justificativa da existência ou não de preocupação quando o bebê não mexe, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

 

 

Ainda com relação aos movimentos do bebê, observou-se que 78% das pacientes se preocupam quando não o sentem mexer (Gráfico 15).

A justificativa de maior prevalência para preocupar-se ou não foi a existência de pensamentos negativos, tais como morte ou malformação fetal; 21,87% consideraram que, dependo do período da gestação, faz parte do desenvolvimento fetal mexer mais ou menos, ou mesmo não mexer (Tabela 10).

 

 

Gráfico 16. Distribuição dos dados quanto a pensar no parto com freqüência, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005.

Tabela 11. Distribuição dos dados referentes aos pensamentos/sentimentos em relação ao parto, de 32 gestantes com diagnóstico de Abortamento Habitual, ICHCFMUSP, 2005

 

 

Já com relação ao parto, 66% das mulheres entrevistadas afirmaram não pensar no parto com freqüência (Gráfico 16).

No que se refere aos pensamentos/sentimentos em relação ao parto, 18,75% afirmaram pensar nos procedimentos envolvidos nessa situação, desde o sentir as dores, passando pela preparação para o parto, o tipo de parto até chegar no nascimento do bebê; 6,25% das pacientes demonstraram a existência de sentimentos ambíguos:

"Penso que vai acontecer algo, que vou morrer no parto. Também penso que ela vai nascer rapidinho, que vai dar tudo certo."

 

DISCUSSÃO

Inúmeros são os aspectos emocionais e as crenças envolvidas na situação de abortamento, sendo algumas delas também bastante particulares, embora tenham sempre um fim em comum: o final de um ciclo, de uma gestação, do sonho da maternidade.

A seguir é apresentada uma análise qualitativa dos dados obtidos na pesquisa, buscando compreender o abortamento por meio das crenças das mulheres em relação à maternidade.

Neste estudo, não houve diferença significativa quanto à faixa etária das pacientes. Observou-se maior concentração de mulheres com idades entre 19 e 25 anos, o que está de acordo com os dados oferecidos pela World Health Oganization (1997), os quais referem que mais da metade dos abortamentos ocorrem em mulheres com idade inferior a 25 anos.

No que diz respeito à escolaridade, também não houve diferença significativa estatisticamente entre as pacientes, sendo que a maior parte das mulheres entrevistadas completou o Ensino Médio ou tem o Ensino Fundamental incompleto.

Quanto à religião, em consonância com as estatísticas da população brasileira, a maioria das mulheres era católica, contudo, não praticante. A religião católica sempre exerceu grande influência sobre as atitudes e comportamentos da sociedade como um todo, principalmente no que tange à sexualidade feminina, considerando proibidas as questões relativas ao corpo feminino, não permitindo o prazer e/ou mesmo o exercício da sexualidade (Benute, 2002), a menos que seja com o intuito de reprodução ou perpetuação da espécie.

Apesar de significativa, a questão da religiosidade não apareceu como sendo um fator predominante no que se refere às crenças quanto à gestação e maternidade. Muito mais que a religião, embora ambas estejam intrinsecamente ligadas, a cultura exerce grande influência nas crenças acerca da maternidade, a qual atualmente é vista e discutida como um tema sagrado e, portanto, reforçado culturalmente como algo bom e necessário à mulher.

Dessa maneira, notou-se que boa parte da amostra considerou que a mulher só é capaz de desempenhar o seu papel como tal por meio da concepção de filhos e, conseqüentemente, o julgamento social e moral infere que toda gravidez deve ser aceita e desejada, sendo responsável por alegrias e prazeres, independentemente de qualquer desconforto ou mesmo sofrimento que, certamente, em algum momento desse ciclo, é vivenciado pela gestante.

Com relação à maternidade, a maioria das mulheres declarou ser esta uma opção de vida, uma questão de escolha, acreditando que uma vida sem filhos pode ser feliz e produtiva. É interessante notar que, junto a este dado, muitas delas também consideraram a maternidade como completude, ou seja, vêem o filho como algo que complementa a mulher, o casal e, portanto, a não concepção de filhos levaria a uma vida triste e infeliz.

Nesse sentido, não ter filhos remete à crença de que ocorre então uma diferenciação entre mulheres mães e mulheres não-mães, o que implica em sentimentos de impotência e culpa, uma vez que a dificuldade (ou mesmo incapacidade) em gerar um filho é considerada como um desvio de uma norma social e cultural.

Como uma maneira de amenizar esse sofrimento, algumas mulheres acabam substituindo a falta do filho por animais domésticos, dedicação intensa e, em alguns casos, patológica, ao trabalho ou mesmo procurando uma vida social bastante preenchida, de modo que há uma transferência do amor materno para tais objetos de investimento afetivo. Tal evidência é condizente ao que afirma Quayle (1997), sobre a dificuldade das culturas ocidentais em lidar com as questões sobre a morte e o morrer, bem como àquelas referentes ao fracasso, uma vez que a sociedade moderna tende a não permitir falhas e, conseqüentemente, afastar de maneira preconceituosa as pessoas consideradas "fracassadas" ou "anormais" porque não corresponderam às expectativas de um padrão de normalidade.

Barbosa (apud Goobi, 2002), menciona que a mulher deseja ter filhos como uma maneira de dar um novo sentido à vida, para amar e ser amada, por medo da solidão, e, ainda, pela realização pessoal e social. O que se observa é que, em se tratando de abortamento habitual, esse desejo muitas vezes é transformado em pressão social, seja pela expectativa dos parceiros, o que as deixa receosas por não conseguirem dar-lhes o tão esperado filho e, conseqüentemente, temem em perder seus companheiros, seja pela própria cobrança familiar e social, na qual a reprodução é encarada como algo natural, e até mesmo como uma norma social, colocando as mulheres numa situação de extrema fragilidade, ansiedade e insegurança ante a impossibilidade de gerar filhos.

Apesar de tais sentimentos negativos, a maioria das mulheres afirmou sentir-se feliz com a gestação, mesmo que esta não tenha sido planejada. Nesse sentido, percebeu-se pouco investimento afetivo das mulheres entrevistadas no vínculo com a gestação, com o bebê, em função das perdas anteriores, o que parece prejudicar a relação conjugal, uma vez que a gestação tem uma função diferenciada, no sentido de que é como um "presente" para o marido vem como uma maneira de provar para a sociedade de que são capazes de gerar.

O fato da mulher já ser mãe não ameniza esses pensamentos/sentimentos, tampouco a dor desencadeada pela perda de um novo filho. Veiga et al. (2001) referem que, independente do número de filhos vivos, o abortamento é sempre vivido com dor e sofrimento.

Pode-se verificar ainda que o medo de uma nova perda e a existência de pensamentos negativos, tais como morte do feto ou malformação, faz com que aumente a ansiedade e, conseqüentemente, as expectativas em relação a essa nova gestação, o que se evidencia quando, questionadas quanto ao vínculo com o bebê, as mulheres apresentaram dificuldade em responder às questões, dando respostas evasivas.  Estes dados podem se justificar pela tendência dessas mulheres ao abortamento recorrente, reforçando as afirmações de Boué et al. (1975, in: Benute, 2002) quanto ao aumento da ocorrência de abortamento espontâneo em função do número de perdas anteriores.

Já com relação ao parto, verificou-se que a maioria das mulheres evita pensar no parto e, quando pensa, a maior preocupação refere-se aos procedimentos - tipo de parto, anestesia e se obterá sucesso.

Seria interessante, contudo, que houvesse um acompanhamento psicoterapêutico das pacientes com histórico de abortamento habitual, a fim de possibilitar uma maior compreensão acerca dos aspectos mais inconscientes, averiguando a possível existência de algum fator psíquico que possa contribuir para desencadear o abortamento.

De uma maneira geral, observou-se que as crenças envolvidas na gestação de alto risco, em abortamento habitual, permeiam o campo cultural e social mais amplo, o qual delega à mulher a função da maternidade como sendo algo necessário para se alcançar a felicidade plena, pouco considerando os desejos, as vontades e os planos de vida da mesma. Portanto, para que se possa compreender melhor a vivência do abortamento recorrente, deve-se considerar as expectativas quanto aos papéis femininos atualmente, bem como as crenças e fantasias acerca da maternidade.

 

CONCLUSÃO

Conclui-se que as questões sociais e culturais têm grande influência nas crenças e fantasias das mulheres com histórico de abortamento habitual, principalmente em função do medo de uma nova perda e das expectativas para uma nova gestação.

Há indícios de que as crenças sobre gestação e maternidade digam respeito ao fato de que nem toda mulher nasceu para ser mãe que é possível levar uma vida feliz sem filhos e, ainda, que a maternidade é uma opção de vida.

Também foi possível levantar as expectativas das gestantes quanto ao parto, demonstrando que este não é a preocupação maior das mulheres com histórico de abortamento habitual, tendo em vista a dificuldade destas em conseguir levar uma gestação a termo.

 

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1 Especializanda em Psicologia do curso Psicologia em Especialidades Médicas, Divisão de Psicologia - HCFMUSP - Brasil.
2 Doutora pela FMUSP, psicóloga da Divisão de Psicologia e Divisão de Clínica Obstétrica - HCFMUSP - Brasil.
3 Médico Assistente do Setor de Abortamento Habitual da Divisão de Clínica Obstétrica - HCFMUSP - Brasil.
4 Diretora de Pesquisa da Divisão de Psicologia - HCFMUSP - Brasil.
5 Diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central - HCFMUSP. Presidente do CEPSIC - Brasil.
6 Professor Titular de Obstetrícia da FMUSP - Brasil.

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