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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) v.5 n.1 São Paulo  2007

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Da lógica da cognição à lógica do inconsciente: uma possibilidade de compreensão do sintoma bulímico

 

From the cognitive logic towards unconscious logic: a possibility for comprehending bulimic symptoms

 

 

Rosana S. de S. Borchardt1; Niraldo de O. Santos2; Marlene M. da Silva3; Cláudia F. Laham4; Bruno Zilberstein5; Mara Cristina S. de Lucia6

Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Este estudo apresenta dados epidemiológicos e nosológicos sobre anorexia e bulimia nervosa, ressaltando a relevância do estudo destes distúrbios na atualidade. Examina sob diferentes concepções: psicodinâmica e cognitivo comportamental, possibilidades de entendimento e manejo terapêutico. Enfatiza o componente emocional na instalação do quadro, a fonte do conflito no inconsciente e a manifestação do sintoma como uma linguagem ilógica e contraditória expressada através do corpo. Possibilita reflexões acerca dos modos de relacionamento inconsciente destes sujeitos com o alimento, afinados com a teoria psicanalítica, que compreende estes comportamentos inadequados para a manutenção da saúde, como sintomas que denunciam e escondem sofrimentos psíquicos. Conclui, a partir de estudo comparativo entre duas populações, utilizando uma escala que mede crenças mágicas sobre saúde e alimentação, que há maior incidência destas crenças em sujeitos com sintomas bulímicos. Demonstra que em 77,8% dos itens desta escala, o percentual de respostas que confirmam a crença é maior.

Palavras-chave: Sintoma bulímico, Crença, Inconsciente, Purgação.


ABSTRACT

This study presents information on epidemiological and nosological data concerning anorexia and nervous bulimia, highlighting its current relevance. Psychodynamic and cognitive behaviors, possibilities of understanding and therapeutic management are analyzed from various conceptual angles. The study emphasizes the emotional component when disease takes hold, the source of conflict at the subconscious level, and the manifestation of symptoms as an illogical and contradictory language expressed by the body; as well as facilitating reflection on the subconscious relationships between an individual and food, in accordance with the psychoanalytical theory that includes those behaviors which are inadequate for maintaining health, as symptoms that denounce hidden psycho suffering. The article concludes by making a comparative study between two populations utilizing a scale that measures magic beliefs about health and feeding, and demonstrates that there are more incidences of those beliefs in individuals with bulimic symptoms. This conclusion is supported by demonstrating a score of 77.8 percent for the items on this scale, a response percentage that confirms a preponderance of beliefs.

Keywords: Bulimic symptom, Belief, Unconscious, Purgation.


 

 

INTRODUÇÃO

Os distúrbios alimentares constituem uma série de alterações relacionadas ao comportamento alimentar inadequado e incompatível com a saúde física e psíquica, estabelecendo quadros clínicos com sintomatologia específica, grave e complexa.

Classificam-se como distúrbios alimentares a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e, atualmente, tem sido proposta uma nova categoria: o transtorno da compulsão alimentar periódica.

Estes transtornos têm recebido crescente atenção no meio científico não somente pelo aumento da incidência em todo o mundo em adultos, adolescentes e crianças, mas também, pela gravidade dos quadros, alto índice de cronificação (30%) e mortalidade (10%) (Szmukler, 1985, apud Vilela, 2000).

A anorexia é um distúrbio antigo. Os primeiros relatos remontam ao século V. Já a bulimia é conhecida há menos tempo e, na década de 70, foi descrita como uma evolução atípica da  anorexia nervosa. Hoje é considerada distinta da anorexia, como quadro nosológico.

A anorexia nervosa e a bulimia nervosa são tipicamente psicopatologias, pois a subjetividade é fator preponderante para o aparecimento da sintomatologia. Estas síndromes, por vezes se cruzam, revezam-se e se inter-relacionam. Dados estatísticos revelam que 20 a 30% das pessoas bulímicas apresentam quadro pregresso de  anorexia nervosa e 50% das anoréxicas apresentam episódios bulímicos. (Vilela, 2000). Apesar de apresentarem quadros nosológicos diferentes, apresentam o mesmo núcleo psicopatológico de base.

Este núcleo, segundo Miranda (2003)

instala-se muito precocemente, e está ligado a momentos iniciais do desenvolvimento da vida psíquica, nas quais áreas do desenvolvimento mental ficaram sem representação. Os sintomas, paradoxalmente, escondem e denunciam tentativas de representação simbólica que se confundem com a concretude que predomina no modo de funcionar anoréxico e bulímico, burlando a possibilidade de pensar a dor.

A partir das últimas décadas, a incidência de casos não tem precedentes historicamente, e isto vem mobilizando estudiosos e clínicos.

De acordo com Vilela (2000), a maioria dos estudos preconiza que a taxa de prevalência para a anorexia nervosa fica entre a faixa de 0,5% a 1,0%, havendo autores que preconizam até 2,0%. Para a bulimia nervosa, a prevalência é de 1,0% a 1,5% em mulheres. A incidência do transtorno é bem menor em homens (0,1%). A anorexia nervosa ocorre em uma população predominantemente adolescente, numa faixa etária de 12 a 18 anos, máximo de 25 anos, com índice de óbito de até 5%, enquanto a ocorrência de bulimia predomina numa faixa etária de 18 a 25 anos.

Segundo Halmi (1981, apud Vilela, 2000), os casos de bulimia nervosa são mais comuns,  menos facilmente identificados e com prognóstico melhor  do que os da anorexia nervosa, contudo, as bulímicas em 80% dos casos apresentam recaídas. (Mehler,1996, apud  Vilela, 2000).

A busca por tratamento tem prevalência baixa, assim como sua aderência. As maiores complicações clínicas devem-se aos métodos utilizados para compensar a quantidade de alimento ingerido. O vômito auto-induzido é encontrado em 95% das bulímicas, sendo que boa parte adquirem um controle voluntário do reflexo de vômito por meio de contração abdominal (Cordás, 1995 apud  Vilela, 2000).

De acordo com a CID-10 (1993) e o DSM IV (1995), a bulimia nervosa se caracteriza por uma sintomatologia que inclui episódios de hiperfagia (binge &– orgia alimentar) que compreende a ingestão compulsiva, rápida e em grandes quantidades de alimento, com pouco ou nenhum prazer, em curto espaço de tempo, acompanhados por sentimento de falta de controle sobre o consumo alimentar durante o episódio. Estes episódios se alternam com comportamento dirigido para evitar ganho de peso, fazendo uso de mecanismos compensatórios. De acordo com o mecanismo compensatório utilizado, apresenta dois tipos: o purgativo, que inclui a auto-indução de vômitos, uso de laxantes, enemas e diuréticos e  não purgativo, que inclui outros mecanismos compensatórios como exercício físico, restrição alimentar e uso de anorexígenos.

Os mecanismos compensatórios utilizados visam neutralizar os efeitos de engordar dos alimentos, pois está presente um medo mórbido de engordar, que faz com que o sujeito estabeleça para si um limiar de peso bem abaixo daquele considerado ótimo ou saudável.

Além do aumento da prevalência na atualidade, a complexidade que permeia o universo do mundo anoréxico e bulímico, justifica as dificuldades encontradas na prática clínica e na pesquisa e a necessidade de se dedicar maior atenção ao seu estudo. Obstáculos surgem da etiologia ao tratamento; perpassam por dificuldades referentes ao diagnóstico, sintomatologia e quadro clínico e sua compreensão exige que todos estes aspectos sejam relevantemente considerados.

Para Nunes et al (1998), a etiologia é multifatorial.  Estão envolvidos fatores psicológicos, biológicos, familiares e sócio-culturais, não sendo possível determinar se há predomínio de um fator sobre o outro. Os mesmos fatores citados são entendidos também como mantenedores destas desordens.

No que se refere ao fator sócio-cultural, é inegável que vivemos em uma sociedade voyeur.  “O mundo que já não se pode tocar diretamente serve-se da visão como o sentidoprivilegiado da pessoa humana”. (Debord, 1997, p.18). Meios de comunicação em massa estimulam o “ver” em detrimento do “ser”.  Os estímulos visuais tornaram-se um potencial poluente &– intenso, nocivo, constante, intoxicante.  Borchardt, Alves e Silva (2005) referem-se à poluição sonora no cenário urbano atual, com estes adjetivos além de outros. Por certo, se houvesse padrão de medida da poluição visual, como ocorre com a sonora, quantitativamente estariam constatados os níveis intoleráveis de exposição à qual estamos submetidos.

Padrões de beleza da atualidade são veiculados pela mídia de maneira tóxica, incompatíveis com as necessidades fisiológicas e, portanto, inalcançáveis.  Há exigências de investimentos narcísicos como se outorgasse plenitude. Espera-se corresponder às exigências de sucesso instituídas em uma sociedade exibicionista, que favorece o esvaziamento das palavras, dos sentidos, da subjetividade. A relação com o alimento transforma-se em uma possibilidade de comunicação através do corpo. Neste universo de concretude, o corpo em evidência sofre penalidades, tornando-se a sede das punições pelas infrações cometidas. Para Herrmann e Minerbo (1998), a moralidade alimentar migra dos valores morais da sexualidade e aplica-se à comida, estabelecendo-se uma moral alimentar, onde o discurso dietético suplanta e substitui o discurso sexual.

Lindeman, Keskivaara e Raschier (2000) afirmam que

A mídia de massa veicula instruções sobre saúde e alimentação de maneira atraente, porém em sua grande maioria, inconsistentes e sem fundamentação científica, portanto obedecendo às leis do pensamento mágico, experimental. Muitas crenças mágicas modernas relativas à alimentação e saúde são compartilhadas, copiadas e se incluem, entre outras condutas que sofrem a influência do controle social.

Nunes et al (1998) consideram que, por sua etiologia multifatorial, os quadros de distúrbios alimentares envolvem aspectos multidimensionais e exigem equipe multidisciplinar para o tratamento.

Pesquisas recentes apontam a psicoterapia e a farmacologia como possibilidades de tratamento, sugerindo fortemente que a principal ajuda está no tratamento psicológico e entre os modelos de abordagens, estão a psicodinâmica e a cognitivo-comportamental. (Claudino & Zanella, 2005).

Tratar representa um desafio, sendo necessário considerar todas as variáveis envolvidas, além de suas interações, inter-relações e interdependências, sem que se estabeleça qualquer relação hierárquica ou temporal. A importância está em considerar a relevância destes fatores e suas implicações no curso, expressão e tratamento. Por serem psicopatologias graves e complexas, a compreensão de seu funcionamento psíquico torna-se eixo do tratamento, utilizando-se dos diversos recursos que diferentes abordagens psicológicas disponibilizam. É fundamental avaliar as condições de cada paciente, considerando que, em casos agudos onde a cognição e o pensamento abstrato estão comprometidos, será preciso eleger uma conduta terapêutica emergente. Em vista da complexidade e dos riscos dos sintomas apresentados, por vezes, uma contenção externa e uma atitude ativa do terapeuta se faz necessária, instrumentalizando-se com os recursos disponíveis para manter a paciente viva.  Neste contexto, a terapia familiar tem seu lugar de destaque, representando fator predisponente e possibilidade de tratamento.

Estando atento às necessidades da paciente e não apenas às concepções teóricas, “o terapeuta não repete com a paciente a experiência de cuidados parentais inadequados vividos precocemente, os quais predispuseram a paciente a tal patologia”. (Nunes et al, 1998, p.153).

É inegável que, para explicar o comportamento humano, atuam elementos constitucionais e ambientais.

Entende-se por constituição aquilo que a criança “traz do berço”, isto é, o que herda pelas células germinativas de seus pais e o que adquire através dos acontecimentos da vida intra uterina. No ambiente incluiríamos todos aqueles objetos afetivos com os quais se relaciona ao longo de sua evolução, desde a mãe, passando pelo pai, irmãos, amiguinhos, até a professora, colegas, etc. E não só os objetos afetivos em si, como as situações vivenciadas pela criança através deles  (Osório,1997,p.11).

Osório (1997) explica também que, para a teoria psicanalítica pós-freudiana, a constituição existe e a ação do ambiente irá intensificar ou mitigar aspectos constitucionais.  No que se refere ao ambiente, estão incluídas as vivências infantis, mas não somente estas. Ambiente e constituição estão inter-relacionados. Um não existe sem o outro.

Diferentes teorias buscam explicar os comportamentos disfuncionais para a saúde, que se manifestam nestes quadros.

Segundo Nunes et al (1998) atualmente terapeutas psicodinâmicos têm reconhecido a importância de focalizar os aspectos da alimentação, peso e reeducação alimentar, enquanto a abordagem cognitivo-comportamental tem levado mais em conta a relação terapêutica; considerando que as diferenças entre as duas abordagens, podem ser complementares, permitindo integrações, como é o caso da teoria cognitivo-analítica.

Duchesne (1998) discorre sobre a teoria cognitivo-comportamental, no caso da anorexia e da bulimia, explicando que, distorções de raciocínio fundamentam um sistema de crenças distorcidas e disfuncionais acerca do peso, da forma do corpo, da alimentação e do valor pessoal que  mediam e reforçam  comportamentos alimentares inadequados. Desta forma, estas crenças são determinantes para o desenvolvimento e a manutenção destas psicopatologias.

Para esta teoria, a ação do ambiente é decisiva:

“A teoria cognitivo-comportamental parte da premissa de que o modo como o indivíduo percebe e avalia suas experiências e o mundo que o cerca determina em grande parte seus sentimentos e comportamentos.”(Duchesne, 1998, p.139).

Para Salkovskis et al (2004, p.24), o modelo cognitivo propõe que os transtornos psicológicos decorrem dos modos distorcidos ou disfuncionais de perceber os acontecimentos. “O sistema cognitivo é responsável pelas funções envolvidas no processamento de informação e atribuição de significado: seleção de dados, atenção, interpretação (atribuição de significados), memória e lembrança”. Desta forma, a cognição representa uma função da consciência, capaz de elaborar deduções sobre experiências vividas. Constrói, a partir de experiências, interpretações, concepções e pressupostos. Estas percepções afetam emoção, humor e comportamento. É necessário explorar o funcionamento cognitivo para entender como são construídas e quais são as crenças centrais (estruturais), que geram crenças intermediárias que, por sua vez, geram pensamentos automáticos.

Crença gera comportamento, portanto, fundamenta e prepara para a ação(Engel, 1995, apud Diniz, 2004).

Herrmann (1998) explica que as crenças mantêm as representações psíquicas. Alimentam-se da falha de representação simbólica &– desrepresentação &– que necessitam do corpo como meio de expressão.

Um dos complexos processos da produção psíquica de uma crença é a associação por similitude.

Crenças infundadas sobre o alimento se fundamentam nas leis do pensamento mágico, que corresponde ao pensamento experimental ou não fundamentado cientificamente. Crenças definidas como mágicas seguem as leis do pensamento mágico, do contágio e da similaridade. “A lei mágica do contágio diz que as coisas que tiveram contato entre si alguma vez continuam a agir à distância mesmo depois do contato físico ser quebrado, e diz também que  coisas que foram unidas na imaginação têm um impacto físico entre si.”  A lei mágica da similaridade “diz que a semelhança superficial indica ou causa uma profunda semelhança.”(Frazer,1992/1963; Rozin & Nemeroff, 1990, apud Aarnio &  Lindeman, 2004, p.65).

Waller et al (apud Waller et al, 2002) demonstraram que binge (orgia alimentar) e comportamento de vômitos encontram associação com diferentes padrões de crenças, como: imperfeição, baixa auto-estima, vergonha, inibição emocional sem pretender determinar como estas crenças estruturais negativas causam impacto no comportamento bulímico, apenas hipotetizando que constituem-se como  características  psicológicas predisponentes.

Waller, Dickson e Ohanian (2002) realizaram um estudo com mulheres bulímicas, buscando identificar a relação entre crenças estruturais negativas (representações negativas incondicionais sobre o indivíduo e o mundo) e características ego-distônicas (neste contexto, características psicológicas que são mais  passíveis de predispor o indivíduo a comportamentos restritivos e a atitudes  bulímicas); além de identificar também a relação entre  crenças estruturais negativas e  atitudes alimentares ( de busca por magreza,  bulimia e insatisfação corporal). Este estudo identificou associações significativas entre atitudes alimentares bulímicas e crenças estruturais negativas de privação emocional, auto-controle insuficiente e isolamento social;  enquanto as características ego-distônicas encontraram associações relevantes com crenças estruturais negativas de  abandono, inibição emocional, desconfiança/abuso e isolamento social.

Para Vitousek (1996, apud Waller et al, 2002), crenças disfuncionais sobre a comida, peso e forma do corporal caracterizam o funcionamento cognitivo nos distúrbios bulímicos, no entanto, não é suficiente para explicar a psicopatologia bulímica.

A teoria psicodinâmica concorda com esta afirmação e utiliza outros fenômenos psicológicos para a compreensão e tratamento destes transtornos.

Para Nunes et al (1998), na abordagem psicodinâmica, a relação terapeuta-paciente é a ferramenta principal. Atendendo as reações transferenciais, está dirigida ao insight, e portanto,fundamentada nos princípios da teoria psicanalítica. É no estabelecimento da relação transferencial que é possível vivenciar conflitos infantis, modificando padrões de integração, organização e comportamento. Implica na tentativa de expor, elaborar e resolver os conflitos inconscientes, ampliando a consciência e, portanto, a autonomia dos sujeitos.

A psicanálise “ao tomar a anorexia e a bulimia como sintomas orais que, ao mesmo tempo em que escondem, mostram angústias primitivas ligadas a momentos iniciais do desenvolvimento da vida psíquica, especialmente no que concerne a rupturas precoces na relação com a figura materna internalizada.” (Miranda, 2003, p.90).

Os sintomas são entendidos como “uma janela para a mente do indivíduo”.(Nunes et al, 1998, p.149-150).

Na abordagem psicodinâmica, busca-se a resolução do conflito que está subjacente, pois havendo alteração da dinâmica e forças psíquicas, é possível que  o  sujeito encontre outra forma de satisfação, já que o objeto da pulsão  é parcial, podendo assim ser substituído.

Os sintomas - substitutos de uma satisfação pulsional recalcada - podem ter vários significados e podem ser vivenciados de diferentes maneiras.  Segundo uma perspectiva amplamente discutida e aceita dentro da teoria psicodinâmica, na anorexia e na bulimia a gênese do conflito (e conseqüentemente do sintoma) está na complexidade da relação mãe-filha. Miranda (2003) explica esta relação fusionada e ambivalente:

Confusão, fusão com desafeto. A ambivalência de sentimentos com relação à mãe se expressa na flutuação entre o comer demais e o nada comer; os sentimentos de culpa e conseqüente inabilidade de aproveitar o amor materno  revelam-se nos distúrbios de metabolização do alimento. A hostilidade e o oposicionismo se denunciam na recusa em ser alimentada e nos vômitos do veneno que alucina conter em si o deteriorado da experiência inominável, aquilo que ela, paciente, não pode metabolizar ou nomear. Emagrece, tentando fazer a mãe sumir de dentro dela. (p.95)

Osório (1997) explica as fases do desenvolvimento psicossexual, segundo Freud: o período de 0 a 18 meses corresponde à fase oral, na qual a criança vivencia excitações na cavidade bucal e labial.  Neste período, o modo de relação  que  a criança tem com  o objeto é a incorporação. Ao mamar, enquanto incorpora aspectos físicos - nutrientes - introjeta aspectos simbólicos.  Amor e satisfação, frustração e agressividade são vivenciados intensamente através da alimentação.

Nasio (1997) sobre a teoria lacaniana, entende que no processo de desenvolvimento, necessidades vitais precisam associar-se a significados. Estes significados são representantes do amor que o outro tem para dar à criança, pois esta faz demandas que vão além da “mera” necessidade. Promover continência às urgências vitais da criança deve ser um ato associado à continência das urgências emocionais. A criança pede presença e afeto junto com a necessidade de alimentação e conforto.  Ambas precisam ser atendidas de maneira satisfatória, sem excessos de frustrações ou de satisfações. Estes aspectos psicológicos são estruturantes para os sujeitos. Demandas psicológicas frustradas ou demasiadamente satisfeitas podem gerar pontos de fixação e regressão a fases  anteriores do desenvolvimento psicossexual. 

No caso dos distúrbios alimentares, o objeto de necessidade &– alimento &– é também objeto de desejo. A fome é uma fome de presença e não apenas de alimento. O sintoma é representante de uma demanda frustrada que regride à fase oral. A falta estruturante é sentida como um vazio ao qual os sujeitos acometidos por estes transtornos, tentam inutilmente preencher com estratégias externas &– a comida (Infante, 2005).

Além disso, quando a função materna é adequada, permite que opere a função paterna - no terceiro tempo do Édipo - havendo introdução da lei simbólica e interdição da criança e da mãe.  Se a função paterna é inoperante, há uma falha na inscrição pulsional.  A mãe continua fundida no corpo da criança, como ocorre ao nascer (narcisismo primário). A relação continua fálica para a mãe e para o bebê, não havendo para este último, espaço para significar o que sente. Alienado ao desejo da mãe que não cumpriu a função significante da função materna, o bebê não se constitui subjetivamente sujeito desejante. Assim, singularmente nos humanos, o desenvolvimento não é puro e simplesmente fisiológico, pois exige que o imaginário esteja inscrito neste processo, envolvendo aspectos psicológicos.

Outros fatores: ambientais, sócio-culturais, biológicos, genético-familiares, associam-se aos psicológicos e em algum momento da vida, geralmente na adolescência, pode instalar-se um quadro de anorexia ou de bulimia, onde passa a ocorrer uma renúncia, uma recusa  ao  alimento não simbolizado, que sufoca a existência, pois  o alimento  representa  aniquilamento psíquico, inexistência.  Nos transtornos alimentares, como ocorre com a criança, “porosa” às identificações projetivas da mãe, há vivência de uma invasão de conteúdos emocionais, na qual as angústias não encontram continência desde os primeiros momentos da relação (Miranda, 2003).

Uma sintomatologia característica na anorexia nervosa éa busca pela imagem pré-puberal, tendo como significado “uma tentativa de controlar o introjeto materno, vivenciado como intrusivo. O objetivo da paciente é alcançado tanto simbólica quanto concretamente, ao não se permitir atingir um corpo feminino adulto, semelhante ao de sua mãe.” (Nunes et al, 1998, p.150).

A teoria psicanalítica de Melanie Klein fundamenta este entendimento sobre o comportamento alimentar inadequado. Para Klein, há um mundo rico de fantasias inconscientes que organizam a vida psíquica desde muito precocemente ( instauradas no primeiro ano de vida).

Esta teoria explica o sintoma bulímico a partir de uma necessidade inconsciente de purificação, de penitência de um corpo cheio de culpa, que contribui para a atuação da compulsão e da purgação.

Miranda (2003) cita a teoria kleiniana como possibilidade de compreensão deste fenômeno, aludindo ao:

Ataque derivado dos impulsos anais e uretrais que implica expelir substâncias perigosas (excrementos) para fora do self e para dentro da mãe.  Juntamente com estes excrementos danosos, expelidos com ódio, as partes cindidas do ego são também, projetadas para dentro da mãe. Estas excrementos e partes más do self  destinam-se não só a ferir, mas também a controlar e tomar posse do objeto.  (Klein, 1946, apud Miranda, 2003, p.97)

A mesma autora refere-se ao pensamento mágico onipotente característico destes quadros, fundamentados em investimentos narcísicos, que impedem trocas afetivas e o reconhecimento do outro.  Exemplifica e explica a tradicional frase “não tenho fome” como uma fantasia onipotente de poder renegar a necessidade básica de sobrevivência à qual todos estamos submetidos, como se pudesse se situar além da carne - transcendendo do plano biológico, da necessidade relacionada a fome,  para o plano do apetite que se relaciona ao desejo, que  implica subjetividade, pulsão, repressão e portanto, modos de funcionamento psíquico inconsciente.

Considerando o aumento da incidência, a complexidade, a relevância e as dificuldades encontradas para tratar estas síndromes, este estudo visa contribuir para o entendimento do sintoma bulímico - binge e purgação (utilização de mecanismos compensatórios para evitar ganho de peso, através da indução de vômitos, prática de exercício físico extenuante, realização de enemas, uso de laxantes, de diuréticos e de anorexígenos), explorando o funcionamento cognitivo relativo às crenças  mágicas sobre alimentação e saúde, em estudo comparativo entre duas populações.

Este estudo é parte de uma pesquisa maior, quantitativa, multisetorial temática, realizada pelo CEPSIC &– Centro de Estudos em Psicologia da Saúde, da Divisão de Psicologia, do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A amostragem foi constituída por meio de técnica não probabilística, intencional e por conveniência. A participação foi voluntária e os sujeitos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (declaração de Helsinki). A permissão para o estudo foi proveniente da comissão de ética da Divisão de Psicologia, do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

 

OBJETIVO

O objetivo é verificar a hipótese de que em uma amostra de sujeitos que   apresentam sintomas bulímicos de compulsão e purgação, os pensamentos mágicos relacionados a alimentação e saúde,  em especial os que  se referem a tais sintomas, estão presentes na consciência em maior incidência  do que em uma população de sujeitos  que não apresentam estes sintomas. 

É parte de uma pesquisa maior, cujo objetivo geral consiste em identificar as crenças de alimentação e saúde em adolescentes e adultos portadores ou não de distúrbios alimentares.

 

CASUÍSTICA E MÉTODO

A pesquisa está instrumentalizada com a Escala MFH - Magical Beliefs about Food and Health, que  mede  crenças mágicas sobre alimentação e saúde.

Os itens da escala relativos a pensamentos mágicos que sugerem limpeza e desintoxicação (itens “e”, “f” e “g”) e aqueles que medem crenças mágicas relativas a produtos animais contaminando personalidades (itens “p”, “q” e “r”) estão focalizados.

Estes itens específicos  têm relação com  sintoma bulímico de purgação, pois sugerem e denunciam crenças relativas a uma necessidade de limpeza e desintoxicação, além de uma fusão sujeito/objeto, ambos característicos do modo de funcionamento psíquico de sujeitos com sintomas bulímicos,  hipotetizando uma relação destas crenças com possíveis modos de relação inconsciente com o alimento, compreendendo a manifestação do  sintoma à luz da teoria psicológica de  Melanie Klein.

Com base no que nos disse o pai da psicanálise &– Freud (1974) - na esfera do inconsciente não há lógica racional, temporal ou moral.  Desta forma, a perturbação, oposição e incoerência que bem ilustram o dinamismo psíquico manifestados nestas desordens, têm a possibilidade de uma compreensão, para além da lógica racional.  Da lógica  da cognição à lógica do inconsciente: uma possibilidade de compreensão do sintoma bulímico; um comportamento em dissonância  com necessidades vitais (relativas a organicidade) e com pulsões primordiais de auto preservação (relativas a vida psíquica), de tal modo que,  para a lógica racional, é  ilógico.

Foram convidados a participar do estudo multisetorial temático 1043 sujeitos, entre adolescentes e adultos, do gênero masculino e feminino. Neste estudo, esta casuística  está definida por amostragem estratificada, por tratar-se de uma população onde estão incluídas  diferentes amostras ou estratos, com diversos parâmetros que foram  estabelecidos  segundo o critério de cada pesquisador participante. Do total de sujeitos desta amostragem, 21% têm sintomas e/ou quadros de distúrbios alimentares, estando entre estes, os sujeitos com sintomas bulímicos &– amostra utilizada no estudo comparativo apresentado a seguir por este estudo.

Da amostra específica, participaram 26 (vinte e seis) sujeitos com sintomas bulímicos. Para constituí-la, os sujeitos foram selecionados segundo o critério de inclusão de apresentar sintoma bulímico de compulsão alimentar e utilização de mecanismo compensatório para evitar ganho de peso. Destes, 10 (dez), tinham diagnóstico de bulimia e de anorexia nervosa tipo purgativo segundo os critérios diagnósticos da CID-10 (1993) e do DSM-IV (1995).   A seleção dos sujeitos para a pesquisa setorial, foi realizada no CAPS - Centro de Atenção Psicossocial de Florianópolis &– Santa Catarina &– ambulatório de distúrbio alimentares; no SAPSI &– Serviço de Atendimento Psicológico da Universidade Federal de Santa Catarina e no consultório de  psicologia da responsável por este setor da pesquisa.

Os sujeitos foram  selecionados de acordo com os  critérios estabelecidos já citados, através de investigação nos prontuários dos dados da  anamnese. Estes candidatos foram agendados para  entrevista individual e formalmente convidados a participar da pesquisa. Neste atendimento individual, após ter sido lido e assinado o termo de consentimento livre e esclarecido, foram coletados os dados necessários, por meio de questionário, previamente elaborado com resposta de múltipla escolha, totalizando 28 (vinte e oito) questões. O questionário está constituído de duas partes, a primeira refere-se a caracterização sócio-demográfica constituída de onze (11)  perguntas e a segunda,  refere-se  a dietas e regimes já realizados, perda de peso, imagem corporal e métodos de emagrecimento, constituída de dezessete  (17) perguntas.

Além deste questionário, foi também aplicada a Escala de Crenças Mágicas sobre Alimentação e Saúde &– MFH &– Magical Beliefs about Food and Health, constituída de  dezoito itens   de  “a”  a  “r”. Em cada resposta há cinco alternativas de múltilpa escolha.

A escala MFH mede crenças mágicas e  tem o propósito  de possibilitar a verificação da hipótese a que   este estudo se propõe.  Especificamente os  itens de “a,” a “j,” referem-se  a crenças  mágicas gerais; os itens “k,” a “o,” referem-se a crenças de que  produtos animais contaminam alimentos; e os itens “p,” “q,”  “r,” referem-se a crenças de que produtos animais contaminam personalidades.

Segundo Lindeman, Keskivaara e Raschier (2000), autores da escala, com relação a medição dos resultados, cada item recebe pontuação que varia de um a cinco pontos, sendo que as respostas afirmativas, ou seja, àquelas que confirmam categoricamente a presença da crença, recebem pontuação quatro e cinco.  Não há uma mensuração  específica e sim a referência de que, quanto maior a pontuação atingida, mais se confirma que  pensamentos mágicos fundamentam  crenças mágicas sobre alimentação e saúde. A pontuação máxima possível é de noventa pontos (90).

Nas duas populações: amostragem estratificada e amostra com sintomas bulímicos, foram utilizados os mesmos instrumentos: questionário e escala MFH.

No estudo comparativo entre as duas populações, os resultados da escala MFH estão apresentados de três maneiras: a  primeira apresenta  a média das respostas de cada item da escala; a segunda, o percentual de respostas afirmativas (com pontuação quatro e cinco); e a terceira, o percentual de pontuação total alcançado.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A quase totalidade de  mulheres na amostra específica (99,6%),  é um dado esperado e referendado na literatura. Nesta mesma amostra, se considerarmos apenas os sujeitos com diagnóstico, 100% são mulheres. Tanto na anorexia como na bulimia nervosa,  a incidência  em homens é de 0,1% (Vilela, 2000).

A idade média  de  29,8 anos apresentada entre os sujeitos da amostra e de 27,6 anos entre os sujeitos com diagnóstico, confirmam a prevalência tardia por busca de tratamento. Isto geralmente ocorre   depois de vários anos  padecendo da doença, acometidas por muita vergonha e culpa (Claudino e& Zanella, 2005). Isto também favorece o alto índice de cronificação  e mortalidade (Szmukler, 1985, apud Vilela, 2000).

A amostra com sintomas bulímicos está distribuída sem categorias  de níveis de  escolaridade e de profissão que represente maioria. Há nesta amostra, maior incidência de estudantes do nível médio e superior, enquanto que na amostragem estratificada, há prevalência de  nível médio incompleto (37%), o que está de acordo com o resultado da idade média apresentada.

 

 

Sobre as questões sócio-econômicas, não há estudos específicos, mas o que vem se demonstrando é que os transtornos alimentares atingem diferentes níveis sócio-econômicos, o que o dado acima confirma (Vilela, 2000).

Na amostra com sintomas bulímicos, 93% estabelecem como ideal um peso menor do que têm, o que denuncia uma insatisfação com a imagem corporal.

 

 

Nesta população, a justificativa  prevalente sobre o fato de estarem se sentindo gordos é o excesso de ingestão alimentar (57,70% responderam que comem sem controle), especificamente a resposta de que sentem-se gordos porque beliscam o tempo todo, concordando que  consideram-se uma sanfona, ganhando e perdendo peso. Estes dados representam parâmetros para avaliação de compulsão alimentar, além de apontar para uma  preocupação excessiva  com a comida, forma e peso corporal, que  tomam o espaço mental, reforçando  o sintoma. Estratégias externas são utilizadas para aliviar a ansiedade e a frustração de não serem eficazes naquilo que estabelecem como ideal, posto que este ideal é inalcançável (CID-10,1993; DSM-IV, 1995; Nunes et al, 1998).

A massificação e industrialização do alimento em ritmo acelerado a partir  das últimas décadas contribuem significativamente para um excesso de oferta e sua  desritualização. O super size me ou a macdonaltização da alimentação, são fenômenos  pós-modernos que representam este contexto social do comportamento alimentar (Fischler,  1998).

Ao justificarem o motivo pelo qual engordam, o percentual  da resposta “não engordo” na amostra com sintomas bulímicos foi bem maior. Isto pode ser entendido como um representante da ilusão de onipotência, controle e independência, presentes  especialmente nos quadros de anorexia, onde parecem situar-se além da carne, renegando uma necessidade básica de sobrevivência. (Miranda, 2003).

O IMC médio desta  amostra  é de 24,86 Kg/m2, havendo  prevalência de IMC de 20 a 30 kg/m2. Apresentam IMC dentro dos parâmetros da normalidade 46,15% e 34,61% estão com sobre peso. Uma característica dos sujeitos com sintomas bulímicos é a manutenção de um sobre peso mínimo ou seu limiar normal que não denuncia a doença, ao contrário da anorexia (Claudino & Zanella, 2005).

De acordo com a tabela apresentada por Domene (et al Onari, Volpe, Onari, Terada, Puzzo e Gorgonio), (s/d), o IMC médio está dentro dos parâmetros normais,  porém, 40,55% se consideram gordos ou muitos gordos. O que significa dizer que muitos se consideram gordos, porém não são. Isto confirma o que refere a literatura a respeito de um ideal de magreza idealizado, preconizado pela mídia de massa, compartilhando a influência sócio-cultural atual, que supervaloriza a esbelteza.

Belasco, Brandt e Leichter (1997, apud Lindeman, Keskivaara e Raschier, 2000), afirmam que, na cultura ocidental moderna, há um forte movimento que se caracteriza pela busca por saúde e nutrição. Paradoxalmente, o mundo ocidental é acometido pela epidemia da obesidade.

A última pesquisa realizada pelo IBGE &– Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  sobre a nutrição dos brasileiros baseada no IMC,  apresenta que no Brasil, 11,1% dos brasileiros estão obesos, ou seja, apresentam IMC acima de 30Kg/m2. (IBGE, 2004).

Neste estudo comparativo é demonstrado que a média da pontuação é maior em  72,3% das respostas, na amostra com sintomas bulímicos.

Os itens “e,” ‘f,” “g, “p,” “q” e “r” relativos aos sintomas bulímicos, apresentam resultado maior na amostra com estes sintomas.

Nesta tabela é demonstrado que há maior percentual de respostas positivas em 77,80%  dos itens da escala na amostra com sintomas bulímicos.

Os itens “e,” “f,” “g,” “p,” “q  e “r” apresentam resultado maior na amostra com sintomas bulímicos.

Nesta tabela é demonstrado que em 72,2% dos itens da escala, o percentual de pontuação total alcançado é maior na amostra com sintomas bulímicos.

Também nesta tabela, os itens “e,” “f,” “g,” “p,” “q” e “r” apresentam resultado maior na amostra com sintomas bulímicos.

Nas tabelas 3, 4 e 5, os itens em que os resultados encontrados na  amostragem estratificada obtêm  valor discretamente maior do que na amostra com sintomas bulímicos, referem-se a crenças de que produtos animais contaminam alimentos, portanto não relacionados aos sintomas bulímicos.

 

 

 

 

Qualquer dos três estudos comparativos confirma uma incidência maior de crenças mágicas sobre saúde e alimentação na amostra com sintomas bulímicos de compulsão e purgação.

As crenças que sugerem necessidade de limpeza e desintoxicação, estão relacionadas a estes sintomas  e  mantêm,  nos três estudos, percentual e média maior  na amostra com sintomas bulímicos.

Considerando a teoria de Melanie Klein, os sujeitos com sintomas bulímicos têm a representação psíquica de um corpo invadido, cheio de desrepresentação e portanto, cheio de “nada.” Esta representação fortalece as crenças que confirmam necessidade de limpeza , de desintoxicação (itens “e,” “f,” e “g”) e as que  são relativas a produtos animais como contaminantes de personalidades (itens “p,” “q,” e “r” ), pois  denunciam, respectivamente, desejos  inconscientes de purificação e fusão narcísica, reveladores da ilusão de onipotência, independência e controle,  utilizadas como estratégias primitivas contra dores psíquicas (Herrmann,1998; Miranda, 2003; Nunes et al,1998).

É importante pontuar que, na amostragem estratificada, 31% dos estrados ou 21% dos sujeitos apresentam sintomas de distúrbios alimentares, o que permite deduzir, que  os  resultados seriam mais expressivos se esta população não estivesse incluída, assim como, se corrigida a significativa desproporção quantitativa entre as populações comparadas.

Estas questões estatísticas apontadas como dificuldades, vêm paradoxalmente corroborar  para o alcance do objetivo proposto por este estudo, posto que apesar delas, em 72,2% dos itens da escala MFH,  a amostra com sintomas bulímicos  apresenta média da pontuação das  respostas e pontuação total alcançada maior do que na amostragem estratificada (tabelas 3 e 4) e em 77,8% dos itens, percentual maior de respostas afirmativas (tabela 5)  confirmando a hipótese de que há uma incidência maior de crenças mágicas relativas à saúde e alimentação em sujeitos com sintomas bulímicos.

Como já visto, em uma amostragem estratificada estão incluídos diversos parâmetros, o  que a torna pouco   específica em relação ao fator de comparação em análise. Este deve ser  único para as populações comparadas e no caso deste estudo, seria apenas o atributo de ter ou não sintoma bulímico.

A partir disto, proponho que outros estudos comparativos sejam  realizados, com os dados já coletados, visto que temos uma amostra com parâmetro específico de sintoma bulímico, sendo possível  selecionar desta amostragem estratificada de 1043 sujeitos, uma amostra proporcionalmente comparável.

Outro estudo complementar poderá ser feito, a partir dos dados já coletados, fazendo um estudo comparativo com a amostragem estratificada de parâmetro específico de compulsão alimentar sem sintoma de purgação, com a mostra de sintoma bulímico de purgação. Isto possibilitaria demonstrar uma maior especificidade da escala  MFH para quadros de anorexia  e bulimia nervosa, não se aplicando à compulsão alimentar sem  que esteja associada  a  comportamentos compensatórios para evitar ganho de peso.

Com estes estudos concluídos constatar-se-ia  com resultados mais expressivos e específicos, uma maior incidência de crenças mágicas relativas a saúde e alimentação em sujeitos com quadros e/ou sintomas bulímicos.

A partir disto,  a escala MFH poderá ser utilizada  como um instrumento indicador de diagnóstico e/ou de prognóstico, inferindo que uma pontuação alta na escala MFH, sugere presença ou predisposição de sintoma e/ou quadro de bulimia, indicando um fator que influencia na instalação do quadro, no processo diagnóstico, no  curso e no  tratamento deste distúrbio, podendo assim ser utilizada para  fins de prevenção, de diagnóstico precoce e de tratamento de quadros e/ou sintomas bulímicos. 

 

CONCLUSÃO

Este estudo comparativo realizado entre uma amostra com sintomas bulímicos e uma amostragem estratificada, demonstra que há uma maior incidência de crenças mágicas sobre saúde e alimentação em sujeitos com sintomas bulímicos mesmo  utilizando parâmetro de comparação desfavorável à confirmação de tal dado.

Todos os itens relativos aos sintomas bulímicos: “e,” “f,” “g,” “p,” “q” e “r”, obtiveram resultados maiores  nos três estudos comparativos.

 

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1 Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em  Distúrbios Alimentares e Obesidade pelo Centro de Estudos em Psicologia da Saúde (CEPSIC) da Divisão de Psicologia do Instituto Central (DIP/ICHC) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Formada  no Curso de Especialização em Grupoterapias pela  GRUPPOS, Florianópolis, Santa Catarina. Formada  no Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica pelo Centro de Estudos em Psicoterapia (CEP), Florianópolis, Santa Catarina. Enfermeira Graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Endereço: Avenida Itamarati, 333, Parque São Jorge, Itacorubi, Florianópolis, Santa Catarina. CEP 88034-400 Telefones: (48) 84241707 (48) 40093248. Endereço eletrônico: rosanasborchardt@yahoo.com.br
2 Psicólogo da Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP. Coordenador do Curso de Especialização em Distúrbios Alimentares e Obesidade do CEPSIC.
3 Psicóloga da Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP. Coordenadora do Curso de Especialização em Distúrbios Alimentares e Obesidade do CEPSIC.
4 Psicóloga da Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP. Co-orientadora da Pesquisa Multissetorial “Crenças relacionadas à alimentação”.
5 Diretor do Serviço de Cirurgia do Esôfago e Duodeno do HC-FMUSP.
6 Diretora da Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP. Presidente do CEPSIC. Coordenadora do Curso de Especialização em Distúrbios Alimentares e Obesidade. Orientadora da Pesquisa Multissetorial “Crenças relacionadas à alimentação”.

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