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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) v.5 n.1 São Paulo  2007

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Amor des-medido: a sexualidade feminina, entre o desejo e o gozo

 

Love des-measured: a sexuality but the desire and gozo

 

 

Eliane A. Costa Dias

 

 


RESUMO

Após mais de duas décadas de enfrentamento da epidemia, a AIDS continua sendo um problema grave de saúde pública. O artigo faz uma reflexão acerca da sexualidade, o amor, o desejo e o gozo a partir da afirmação de Lacan: “Não existe relação sexual, para o ser falante”. Reflete ainda, o que quer uma mulher e os destinos do feminino na contemporaneidade. Para finalizar, discute a questão do papel do profissional de saúde frente a vulnerabilidade feminina.

Palavras-chave: AIDS, Sexualidade, Mulher, Contemporaneidade.


ABSTRACT

After more than two decades confronting the epidemic, AIDS continues being a grave public health problem.The article reflects on sexuality, love, desire and climax from the perspective of Lacan’s statement “There is no such thing as a sexual relationship for the oral being.”Furthermore, the article reflects on what women’s needs are as well as contemporary-feminine destinies. Finally, it discusses the role of the health professional vis-a-vis feminine vulnerability.

Keywords: AIDS, Sexuality, Women, Contemporary.


 

 

INTRODUÇÃO

1. AIDS E AS MULHERES

Após mais de duas décadas de enfrentamento da epidemia, a aids continua sendo um grave problema de saúde pública, em expansão, particularmente em alguns subgrupos populacionais, entre os quais  destaca-se a população de mulheres.

No Brasil, a chamada feminização da epidemia é evidenciada pela variação na proporção entre o número de casos masculinos e femininos que em 1985 era de 25/1 e em 2002 chega a  1,8/1. A transmissão sexual segue sendo a principal via de contágio entre as mulheres maiores de 13 anos (54% do total de casos notificados), seguida pelo uso de drogas injetáveis (15%). Vale destacar que aproximadamente 70% dos casos femininos encontram-se na faixa etária de 20 a 40 anos, ápice da vida produtiva e reprodutiva (CN DST/AIDS, 2002).

Na tentativa de contenção dessa trajetória feminina da aids no Brasil, muitos esforços e recursos têm sido investidos em programas de informação, orientação e assistência, visando instrumentar a população de mulheres no reconhecimento das noções de RISCO e PREVENÇÃO. No entanto, vários estudos constatam que um nível básico de conhecimento sobre a doença e seus meios de prevenção não resulta efetivamente, entre as mulheres, em uma capacidade de avaliação realista sobre suas possibilidades de risco, muito menos em adoção de cuidados de prevenção.

Desta forma, como abordar a dificuldade feminina de negociar o chamado "sexo seguro"? Como compreender os inúmeros casos de mulheres que se relacionam sexualmente sem proteção ou engravidam com parceiros sabidamente soropositivos? Como explicar a persistência de uma certa "tolerância", por parte das mulheres, em relação aos comportamentos de risco de seus parceiros?

Para ilustrar, apresento um pequeno recorte de um caso clínico:

Lúcia, 32 anos, casada, secretária, soronegativa, mãe de um menino de 2 anos. O atendimento psicológico para ela  é solicitado pelo marido,  HIV+ sintomático, já com várias internações em decorrência da aids e, naquele momento, fazendo tratamento no hospital dia de um serviço especializado. Esse marido diz que precisa de ajuda para a esposa em função do estado depressivo em que ela se encontra e pelo fato dela insistir em manter relações sexuais com ele sem preservativo. O marido comenta que, "não sabe porque", há alguns meses, ficou impotente.

Nas entrevistas com a psicanalista, Lúcia diz:

O que mais me enlouquece é a apatia dele... Eu sei que a aids não tem cura... mas se ele quiser, pode se recuperar, voltar a ser como antes... Eu o procuro e ele não me quer... Não entende que esta é a maior prova de amor que eu posso dar... mostrar que eu o amo, que tenho tesão do mesmo jeito... Às vezes, fico pensando que seria mesmo bom se eu também tivesse o vírus... Estaríamos no mesmo barco... Não haveria nenhuma distância... Nada separando a gente, nem um preservativo...

A experiência clínica de escuta analítica de mulheres HIV+ nos mostra que pouco tem sido investido no sentido de compreender as barreiras que as mulheres têm que enfrentar em relação a si mesmas visando a prevenção da infecção. Barreiras que, para além das determinantes culturais e sociais, se apresentam como aspectos constitutivos da própria identidade feminina. Barreiras internas, profundamente arraigadas, referentes a uma determinada forma de organização da subjetividade. Muitas vezes, os procedimentos preventivos acabam sendo negados pelas mulheres, na medida em que tomar consciência desses cuidados e executá-los põe em jogo um risco mais imediato e muito mais assustador que a aids - o risco da perda e/ou desestabilização da relação amorosa. Alerta-nos para o fato de que, do ponto de vista da subjetividade, entre as mulheres, o ideal do AMOR ROMÂNTICO é um dos principais fatores de vulnerabilidade à infecção de HIV/aids. Mas de que AMOR  se trata ?

 

2. A SEXUALIDADE NO CAMPO DO OUTRO: O AMOR, O DESEJO E O GOZO

Proponho-me a pensar a questão do amor a partir de uma instigante afirmação de Jacques Lacan, enunciada no seu seminário 18 - De um discurso que não seria do semblante:

"Não existe relação sexual, para o ser falante"(Emerich, 1998)

Para a biologia, a sexualidade humana se resume à distinção entre dois sexos, definidos a partir dos atributos anatômicos e do código genético. No campo das ciências biológicas, portanto, a sexualidade é um fato e não uma questão.

Ao propor a etiologia sexual dos sintomas histéricos no final do séc. XIX, Freud produz uma ruptura com o determinismo biológico, demonstrando que a principal característica da sexualidade humana é ser  polimorfa, ou seja, não ter um objeto sexual predeterminado geneticamente (o objeto de satisfação da pulsão sexual pode ser qualquer um).

Nos desdobramentos dessa descoberta freudiana, constatamos que, para o humano, ser homem  e  ser mulher  tem muito pouco a ver com ser portador de um par de cromossomos XY  ou  XX, mas com o que se nomeia por  homem  e  mulher  numa determinada cultura. Para a psicanálise, portanto, a sexualidade humana não é da ordem da natureza, mas um efeito de fala, resultado das operações com os significantes impostos pela linguagem e pela cultura.

Essa verdade sobre a sexualidade humana é evidenciada em outras áreas de saber. No campo das ciências sociais, por exemplo, uma série de estudos, que resultaram na clássica diferenciação entre SEXO e GÊNERO, constatam que a polaridade feminino/masculino depende de uma auto-imagem psicológica e de uma autodesignação pela criança como sendo de um sexo ou outro, nomeação esta altamente influenciada pela atribuição sexual recebida do meio (Leite, 2003).

Para a psicanálise, o sexual tem um papel estrutural no processo de constituição da identidade do sujeito humano.

Em Freud (1925/1980), no início da constituição subjetiva existe apenas um único sexo - na medida em que o falo é atribuído pela criança como universal - e uma única pulsão sexual - já que a libido é sempre masculina, posto que sempre ativa, visando sempre a satisfação.

Afirmar essa condição inicial de um único sexo significa apontar que, no início da vida, existe uma única posição da criança diante do desejo do Outro-mãe, ou seja, a posição de objeto do desejo do Outro, de objeto que encarna o falo para a mãe. Desta forma, no campo do imaginário, toda criança (macho ou fêmea) acredita ser o falo que completa o desejo deste Outro-mãe, numa experiência de pleno gozo onde, no entanto, à criança cabe a posição de objeto do gozo do Outro. Como nos diz André (1998),  "O gozo sexual é sempre antecipado, na medida em que ele se apossa da criança na sua relação primeira com o Outro: a criança é inicialmente gozada, mais do que goza, pois ela é quem, em primeiro lugar, obtém do Outro que lhe preste cuidados, um gozo que não é abusivo qualificar de sexual" (p. 88).

O momento de confronto com a diferença anatômica dos sexos é um marco no processo de desenvolvimento da subjetividade. A passagem pelo que a psicanálise convencionou como  o  complexo de Édipo é muito mais que a simples constatação da presença/ausência de um órgão sexual - o pênis. A descoberta visual da castração materna exige à criança reconhecer que o segredo do desejo da mãe reside em algo que um terceiro (o pai) detém e pode dar-lhe ou não; que é o pai o complemento da mãe e não ela. Significa  reconhecer-se como um ser incompleto e faltante e vislumbrar que, para o resto da vida, a plena satisfação está perdida e interdita. A intervenção do Nome-do-Pai, do  "não" simbólico do pai, implica aceitar uma submissão à lei simbólica, à lei do significante. A partir deste momento, o falo torna-se o significante que representa e, ao mesmo tempo, vela/esconde  o real da castração, dessa falta constituinte do sujeito.

A questão já não é ser, e sim,  ter ou não o falo.

Para Lacan, ao reconhecimento da castração e da falta do Outro, o neurótico responde com uma pergunta: Che Vuoi? (O que quer o Outro de mim?).  E a essa pergunta, responde com uma construção imaginária: o fantasma e os ideais do eu. Para o resto da vida, pela via do desejo, esse sujeito dividido passa a perseguir um objeto e um ideal do que ele deve ser, do que deve ter,  para realizar o desejo do Outro e seu próprio gozo.

No assujeitamento ao significante,  do gozo o ser falante só tem acesso ao gozo fálico, balizado e demarcado pelo significante do falo.  Entendamos gozo, aqui, como essa tentativa de refazer a fantasia de completude, de uma intensa satisfação pulsional (fora das balizas significantes), que só pode ser imaginada e idealizada.

Desde então, para o ser falante, o desejo está sempre em defasagem com o gozo. E o que é pior, descobrimos que o prazer e a satisfação são sempre contingenciais. Mas como bons neuróticos, queremos que o prazer seja eterno e garantido:- "que seja eterno enquanto dure",  "e foram felizes para sempre".

E é justamente essa relação entre gozo e desejo que torna impossível a relação entre os sexos. Ou seja, não há uma relação de complementaridade ligando homens e mulheres. Não existe uma atração automática pelo sexo oposto. Ainda que pela via do sexual, um sujeito só pode ter acesso ao seu próprio gozo, não há como gozar, se apropriar do corpo do Outro. Este princípio de heterogeneidade irredutível caracteriza o  ato sexual como um encontro sempre faltoso e o prazer, como uma experiência sempre contingencial, efêmera, fugaz....  que nada tem a ver com duração, mas apenas com instantes...

No entanto, a resistência em aceitar essa perda conduz os seres falantes, de ambos os sexos, a se instalarem no parecer, no semblante, na demanda de amor. Um movimento que o mito das almas gêmeas ilustra muito bem: -no livro O Banquete, de Platão, o dramaturgo grego Aristófanes dá uma versão para a teoria das almas gêmeas.  Para ele, no início dos tempos, havia três sexos: o masculino, o feminino e o andrógino. Este último era um ser duplo (como siameses), formado por dois corpos, ligados pela barriga. Cabeça, tronco, membros e sexo eram duplicados, mas juntos, eram absolutamente felizes e imortais. O erro dos andróginos foi tentar desafiar o Olimpo. Numa reação de ira dos deuses, o par foi separado, deixando no corpo de cada um deles a recordação do tempo em que viviam juntos: o umbigo. A partir daí, foram condenados a vagar por toda a eternidade em busca de suas metades. Na formulação de Aristófanes, o amor surge como um desejo dos andróginos de voltar a ser o que eram antes e evitar mais divisões.

Como afirma André (1998), "enquanto fenômeno, o amor é ao mesmo tempo alguma coisa de evidente e alguma coisa de inapreensível. Ele comporta uma certeza indiscutível, tanto quanto uma dúvida infinita"(p. 259). De acordo com este mesmo autor, em Freud, a vertente do amor é a narcísica: ao amar, o que se busca é ser amado. Para Lacan, o amor está ligado diretamente ao semblante e tem por função preencher um vazio. "O amor procura realizar o encontro que, pelo lado do gozo, se verifica impossível" (p. 250).

Para ambos os sexos, o amor é a via primordial pela qual se busca a realização do desejo. No diálogo dos amantes, a eterna pergunta versa sobre o valor que o desejo de um tem para o outro. A grande ilusão do amor reside na identificação ao outro e em supor-se que um sabe do desejo do outro.  "E, ao pensarem que, porque se sentem intimamente ligados, sabem o que o outro sente, se enganam"  (Angillillo, 2000, citado por Caiaffa et al, 2002, p. 199).

Assim, segundo Lacan (1972), o amor é dar o que não se tem.

 

3. O QUE QUER UMA MULHER? - O ENIGMA QUE NEM FREUD EXPLICA...

O direcionamento para uma posição masculina ou feminina é resultado do impacto diferente que a descoberta da castração imprime no menino e na menina.

Segundo Freud, o menino, na saída do complexo de Édipo, pelo medo da castração, renuncia a ser o falo materno, aceita a interdição da Lei, reconhece o sexo feminino como faltante e submete-se ao significante do falo, que lhe dá as insígnias para sua identidade masculina: - ou seja,  ter o falo, nas suas inúmeras versões imaginárias (exibir conquistas femininas, ter dinheiro, ter prestígio etc.).

Já, com a menina, nos alerta Freud, a coisa é mais complicada!!! Ela entra no  complexo de Édipo sabendo-se castrada. Na ausência de um significante que represente o furo do seu sexo, ela aborda o sexo oposto por uma imaginarização: atribuir ao pênis a função de signo de uma identidade sexual da qual está privada e que ela inveja e quer ter.

A complexidade do Édipo feminino leva Freud a reconhecer a sexualidade feminina como um enigma. Mas as tentativas de abordagem do feminino em Freud esbarram sempre no impasse da inveja do pênis. Freud (1931, 1932,1980) concebe três destinos possíveis para o feminino:

1) a repulsa pela sexualidade - inibição da vida afetiva e sexual.

2) o complexo de masculinidade.

3) a verdadeira feminilidade.

À famosa pergunta  O que quer uma mulher? Freud responde:  ela quer ter um substituto do falo que, em última instância, corresponde à equação  falo = pênis = filho. Assim, em Freud, o tornar-se  mulher corresponde, de certa forma, a um tornar-se mãe. Conclusão que o leva a afirmar que  "o próprio casamento não é verdadeiramente garantido, enquanto a mulher não consegue fazer de seu homem seu filho e agir para com ele como sua mãe" (Freud, 1931,1980).

É necessário levarmos em conta que a elaboração freudiana sobre o feminino é marcada pelo contexto histórico-cultural que o determina e, principalmente, pelo próprio impacto que o enigma do feminino lhe produz e frente ao qual, ele claudica.

Para Lacan (1972)

a relação masculino/feminino tem a ver com duas posições diferentes diante da castração e do gozo. Entretanto, como existe apenas um significante para representar o sexual (o falo), a mulher atravessa e sai do complexo de Édipo sem um significante que defina o "ser mulher" (um significante capaz de representar o vazio estrutural que é a expressão do feminino).

De acordo com Schermann (2003) “o sujeito masculino encontra o significante de sua virilidade no mesmo lugar onde encontra o significante de seu gozo sexual e, por isso, pode ter a ilusão de  ser "todo fálico". Já a mulher, terá que buscar esse significante fora de si. "Como suprir a privação senão buscando-a no corpo do parceiro?” (p. 167).

No seminário Mais, Ainda Lacan (1985) também aponta três destinos para o feminino:

1) a recusa da feminilidade e a posição de eterno protesto (característica da histeria).

2) a busca do feminino nos semblantes de ser-o-falo, encarnando os significantes e as imagens do feminino disponibilizadas pela cultura (a mascarada).

3) o acesso ao outro Gozo (a verdadeira feminilidade).

Para André (1998), o que uma mulher demanda é subjetivar essa parte insubjetivável de si própria que representa o seu corpo. O que quer uma mulher é  ser reconhecida pelo Outro, na sua subjetividade, na sua singularidade. Na busca desesperada de significação para o seu ser e submetida à ordem fálica, a mulher quer  ser o falo,  ser o objeto que realiza o desejo do Outro, que preenche a falta do Outro, numa eterna demanda de amor.

Não é de admirar que as mulheres questionem sistematicamente o amor, nem que elas o demandem de seu interlocutor. É preciso amá-las e lhes dizer isto, menos por uma exigência narcísica do que por causa dessa defecção subjetiva pela qual elas são marcadas enquanto mulheres. Se querem ser amadas, não é porque esse anseio tenha a ver com uma passividade natural, como acreditava Freud, mas porque querem ser feitas sujeitos lá onde o significante as abandona. (p. 256)

A experiência sempre intensa e dramática do amor nas mulheres reflete a ânsia de uma mulher em ser amada pelo seu ser singular, geralmente na exigência de ser única. É no ser e no reconhecimento daquele a quem dirige sua demanda de amor que uma mulher busca encontrar o significante do seu próprio desejo.

O homem busca satisfazer sua demanda de amor, fazendo da mulher o objeto que o completa. Para ele, amor e desejo podem andar separados. Um homem é capaz de amar uma mulher (elevando-a à condição de objeto ideal), mas justamente porque ela não tem o falo, seu desejo continua a ser chamado sempre alhures: na série de corpos, peitos e curvas que deslizam à sua frente. A típica lógica masculina do  "uma coisa, é uma coisa... outra coisa, é outra coisa..."  Pela via do desejo, como nos diz Melmam (citado por Emerich, 1998, p. 56), o homem é sempre polígamo.

Para uma mulher, o equívoco em sobrepor no parceiro o objeto de amor e o objeto de desejo (o falo) faz com que, na posição feminina, o amor oculte o desejo. Segundo Emrich (1998), portanto, seria a cegueira do amor que tornaria uma mulher fiel, uma vez que ela se torna mais surda ao seu próprio desejo do que seu companheiro.

Evidentemente, não se trata de justificar a infidelidade masculina (!!!), mas de tentar compreender os posicionamentos masculinos e femininos, de ambos os sexos, por uma via estrutural e não moral, já que tanto a fidelidade feminina como a infidelidade masculina repousam sobre um equívoco.

Assim, é possível dizer que um homem faz amor com sua fantasia e uma mulher, por amor, consente em se alojar na fantasia de um homem.

Mas, se  "amar é dar o que não se tem", o amor experimentado por uma mulher pode conduzi-la a uma angústia devastadora. O que leva Lacan a afirmar que, para uma mulher, o amor por um homem pode ser muito pior que um sintoma, ou seu pior sintoma!!!

No plano imaginário, o amor se confunde com a identificação ao semelhante.

No plano simbólico, pela via do desejo, o amor significa, pela experiência da des-identificação, da castração como limite à onipotência narcísica, a possibilidade de diferenciação e de reconhecimento do outro (e do Outro barrado - A).

Já no nível do real, pela via do gozo, o amor visa uma satisfação sem fim, à qual, na maioria das vezes, a morte ou a loucura vêm colocar um ponto de basta. O filme de Nagisa Oshima - O Império dos Sentidos (1976) - ilustra muito bem esse movimento.

O amor patológico, tão ligado às formas extremas da paixão, faz desta dependência do objeto uma expressão simbiótica e alienante pela idealização desmedida do mesmo. Contrariamente, a ternura, que só é possível pela existência da castração e a conservação da diferenciação do outro (o objeto) opõe-se à paixão, sempre paranóica ou melancólica, que renega toda perda e resiste à diferença  (Caiaffa et al, 2002, 196p.).

 

4. OS DESTINOS DO FEMININO NA CONTEMPORANEIDADE

Se a psicanálise afirma que o sujeito (e o próprio inconsciente) se constitui na relação com o Outro da cultura, é fácil deduzir que, se o Outro da cultura muda, mudam as formas de produção de subjetividade, as vias de expressão do inconsciente e, principalmente, os sintomas.

Vivemos um momento de virada histórica inquietante. Numa sociedade globalizada, regida pelas leis do consumo e do mercado, onde a máxima da liberdade e da autonomia leva ao extremo do individualismo e da objetivação ("coisificação") do outro, quais os destinos para o feminino?  quais os sentidos produzidos para o ser mulher?

Os comentários a respeito da novela da Rede Globo de televisão chamada “MULHERES APAIXONADAS”, com texto de Manoel Carlos, levada ao ar em horário nobre da maior emissora de TV do país, é uma impressionante amostra das imagens de mulher que a contemporaneidade faz circular. Destaco algumas das personagens femininas:

1. uma mulher casada, jovem e bonita, tomada por uma dependência e um ciúme "doentio" em relação ao marido, a ponto de agredi-lo com uma faca ou de quase morrer em um acidente de carro onde alucinava cenas de traição do marido e que acaba sendo levada a um grupo de auto-ajuda e diagnosticada como uma "mulher que ama demais".

2. uma professora de religião de um conceituado colégio particular, alcoolista.

3. uma jovem e bela professora, do mesmo colégio, espancada calada pelo marido sádico.

4. uma adolescente, que atende pelo nome de Edwirges, que não consegue decidir se perde ou não a virgindade.

5. um par de adolescentes, lindas, que mantêm um relacionamento homossexual.

6.uma madame quarentona, rica e sofisticada,  que cobiça o namorado da sua empregada doméstica, casado com uma outra mulher e de quem ela quer, a todo custo, ser a terceira mulher.

Parecem-me todas versões quase caricaturais da "mulher mascarada", que goza se fazendo objeto, se fazendo de resto ao desejo do Outro, de instrumento ao gozo do Outro. Em particular, chama a atenção a força com que, na esteira do ibope da novela, o significante M.A.D.A. (Mulheres que Amam Demais Anônimas) tem circulado e produzido identificações. Na elaboração desta comunicação, tive a curiosidade de pesquisar esta "palavra-chave" na internet e espantei-me ao encontrar 1593 endereços de sites fazendo alguma referência ao tema.

Parece-me muito preocupante que na cultura do descartável, que através das práticas do consumo, do individualismo, da permanente estimulação, consolida uma modalidade existencial que privilegia muito mais as vias de gozo do que as de significação, os destinos possíveis para o feminino recaiam:

• nesse entregar-se ao Outro como objeto que, no limite, beira a degradação e uma absurda anulação da condição de sujeito.

• ou na relação com o próprio corpo - onde, segundo Miller (2000), o corpo se torna Outro. Por essa via, penso nas novas manifestações sintomáticas no corpo (obesidade mórbida, anorexia e bulimia, dependências químicas, dor crônica) e nas absurdas e cada vez mais ilimitadas intervenções que a tecnologia dispõe sobre o corpo feminino: implantes de silicone, lipoaspiração, técnicas para esticar a pele, grampeamento do estômago, técnicas de reprodução assistida etc.

Mais preocupante ainda, constatar que ambos os caminhos levam à morte: morte do desejo, morte da condição de sujeito, morte social, morte simbólica e, em última instância, morte física.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo isso, resta ainda a questão: qual o nosso papel como profissionais de saúde frente à vulnerabilidade feminina?

Parece-me claro que compreender e abordar a vulnerabilidade das mulheres, não apenas à infecção pelo HIV, mas na área da saúde em geral, é uma tarefa complexa e multifacetada, mas certamente estéril se não pudermos levar em conta essa dimensão da subjetividade feminina, sem que possamos ajudar nossas pacientes a "se fazerem questão" sobre o  "ser mulher", sobre a forma como se colocam nas relações afetivas e sexuais, como se posicionam em relação ao Outro, ao desejo e ao gozo.

O manejo das possíveis respostas talvez seja uma tarefa específica ao analista, mas o manejo do fazer questão, certamente não é, podendo fazer parte da consulta médica, da consulta de enfermagem, de nutrição, de planejamento familiar etc.

Assim, talvez possamos contribuir para que nossas pacientes, seres falantes do sexo feminino, possam passar do AMOR DESMEDIDO (ideal e sempre além) para o AMOR VIVIDO (o amor possível, o amor realizável).

No verdadeiro amor, o respeito ao outro gera uma "dolorosa" des-possessão. Este outro, o amado, torna evidente a radical  "gratuidade" de toda relação e com ela, a radical  "ingratidão" da mesma. Não me deves nada e eu nada te devo, porque  "nada" damos. NOS damos. (Cragnolini, 2002, p. 124)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

André, S.(1998). O que quer uma mulher?  Rio de Janeiro: Zahar,        [ Links ]

Caiaffa, R. et al. (2002). A sexuação feminina da mulher na contemporaneidade. In: Alonso, S., Gurfinkel, A. e Breyton, D. (orgs.). Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo. São Paulo: Escuta.        [ Links ]

CN DST/AIDS.(2002, dezembro).  Boletim Epidemiológico, Brasília.        [ Links ]

Cragnolini, M. (2002). Amar demasiado: hacia uma "pérdida" de si. Psicoanálisis y el hospital, ano 11, n. 22.        [ Links ]

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Miller, J. A. (2000). A teoria do parceiro. In: EBP (org.) - Circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra-capa.        [ Links ]

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