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Psicologia Hospitalar

On-line version ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.6 no.1 São Paulo  2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A percepção de pacientes com câncer de mama em relação ao trauma emocional e o aparecimento do tumor

 

Breast cancer patient’s perception of emotional trauma and the tumor emergence

 

 

Marindia de Aguiar GrzybowskiI,1; Carlo SchmidtI,2; Vivian Roxo BorgesII,III,3

IUniversidade Regional Integrada
IIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
IIIInstituição Educacional São Judas Tadeu

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A percepção das pacientes com câncer de mama em relação ao trauma emocional e o aparecimento de um tumor é algo que tem se apresentado com muita freqüência na prática clínica com pacientes oncológicos. Este artigo tem como objetivo explorar a percepção de pacientes com câncer de mama em relação a um trauma emocional ocorrido em seu ciclo de vida e o aparecimento do tumor maligno. Utilizou-se uma entrevista semi-estruturada, a qual foi transcrita e analisada com base na análise de conteúdo. Os resultados foram distribuídos em três categorias: trauma por perdas, trauma por culpa e forma inadequada de lidar com o trauma. Conclui-se que as pacientes portadoras de câncer de mama associam o surgimento da sua doença a um trauma emocional vivido de diversas maneiras. Os resultados são discutidos com base no referencial psicanalítico.

Palavras-chave: Câncer de mama; Trauma emocional; Psico-oncologia.


ABSTRACT

The breast cancer patient’s perception of emotional trauma and the emergence of tumors is a recurrent issue in clinical practice. The aim of this study was to investigate the breast cancer patient’s perception of his or her emotional trauma coming from the emergence of a malignant tumor. The perception was investigated using a semi-structured interview, which was transcribed and analyzed by content analysis. The results were divided into three categories: loss trauma, guilt trauma, and inappropriate ways of coping with trauma. The results conclude that these patients manifest emotional trauma from breast cancer in various ways. The results are discussed based upon psychoanalytic theory.

Keywords: Breast cancer; Emotional trauma; Psycho-oncology.


 

 

A raiz etimológica da palavra “câncer” vem do grego karkinos, que significa “caranguejo” ou “garras”. O câncer é uma doença causada pela proliferação de células que, ao invés de morrer de morte natural, desenvolvem-se sem cessar.

A incidência de câncer no Brasil vem aumentando a cada ano. As descobertas de tratamento acompanham esse aumento, o que comprova que a Oncologia é uma das áreas médicas que mais evolui e mobiliza a sociedade, em qualquer parte do mundo (Kligerman, 1999).

Um dos tipos de câncer mais comum e que forma o quadro de incidências nacional, é o câncer de mama. Conforme Servantes (2002), o câncer de mama é o mais temido pelas mulheres em razão de sua alta freqüência e, sobretudo pelos efeitos psicológicos que afetam a percepção da sexualidade e imagem pessoal e corporal. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA, 2000) o câncer de mama é o segundo maior causador de óbitos no mundo, sendo que na região sul do país o câncer representa 15,19% dos óbitos por doença.

O INCA ainda refere à região sul do país como recordista em número de casos referentes ao câncer de mama, sendo o Rio Grande do Sul o segundo estado com maior incidência, tendo uma estimativa de 88,81 casos a cada 100.000 mulheres, superando somente o Rio de Janeiro (INCA, 2006).

O aparecimento de uma doença física, freqüentemente, representa para o indivíduo uma perda de controle sobre o próprio corpo e sobre a própria vida de relações com o mundo (Angerami-Camon, 2004). O fato de ter uma doença aguda faz com que os pacientes experimentem uma vivência de vulnerabilidade e comprometimento da auto-estima. No caso de doenças crônicas, além da tendência em desenvolver baixa auto-estima, as pessoas podem sentir-se socialmente estigmatizadas, necessitando refazer o planejamento de seu futuro e dos projetos de vida (Angerami-Camon, 2004).

O impacto psicológico e a resposta emocional das mulheres ao receberem o diagnóstico de câncer de mama variam consideravelmente, dependendo dos parâmetros médicos da doença e das características individuais de personalidade. Esta variabilidade pode ocorrer em termos do conteúdo que a paciente realmente escuta (ou o que deseja escutar) do seu médico, suas habilidades de enfrentamento e sua disponibilidade emocional. Constata-se, enfim, que o câncer de mama afeta as mulheres em muitos aspectos, dentre eles a sexualidade feminina em sua dimensão física e emocional (Payne, Sullivan & Massie, 1996).

A mama é o órgão associado à identidade feminina abrangendo características de sexualidade, feminilidade e também amamentação. Quando acometida pelo câncer de mama, a paciente teme pelos efeitos agressivos do tratamento (ex.: queda de cabelo, comprometimento da imagem corporal e perda de sua referência como mulher). Além do estigma social da doença, a paciente tende a sofrer também pelo estigma do próprio tratamento (Mello, 1986).

Para Angerami-Camon (2004) a terapia médica do câncer pode determinar a regressão do tumor sem que, no entanto, o paciente esteja psicologicamente estável. Os conflitos e problemas emocionais decorrentes podem continuar afetando a saúde e, se não superados, poderão vir a determinar a recidiva da doença. LeShan (1992), complementa esta idéia quando afirma que o sucesso de técnicas cirúrgicas certamente não diminui a necessidade de uma compreensão dos fatores psicológicos envolvidos - não apenas para identificar síndromes emocionais que podem tornar certos indivíduos mais vulneráveis ao desenvolvimento do câncer, mas também para ajudar aqueles que necessitam enfrentar essa crise em suas vidas de forma mais construtiva. Desse modo, a intensidade das experiências emocionais envolvidas nesse processo pode assumir diferentes graus quanto à possibilidade de interferência na saúde, variando desde simples experiências de vida negativas até traumas marcantes.

A psicanálise define trauma como "acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o indivíduo de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica" (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 522). Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se pelo afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua incapacidade de dominar e elaborar psiquicamente estas excitações (Laplanche & Pontalis, 1992).

Eizirik, Schestatsky, Knijnik, Terra, & Ceitlin, (2006) acrescentam ao entendimento das conseqüências do trauma na mente do indivíduo a importância da relação com os seus objetos internos. A deterioração da identidade, que pode ocorrer após situações traumáticas, estaria associada a uma falha na crença da proteção dos "bons objetos internalizados". O trauma acarretaria em exacerbação das ansiedades e medos primitivos, somada às fontes externas desses sentimentos, gerando o descontrole na maneira como o indivíduo percebe o mundo, a si próprio e as suas organizações defensivas. Assim, o indivíduo traumatizado tentaria lidar com o evento externo relacionando-o com relações objetais internas já conhecidas, com o objetivo de conferir algum significado a algo extremamente terrível e esmagador. A ligação entre o evento do presente e os significados perturbadores do passado seria uma das causas das dificuldades na recuperação do indivíduo que vivenciou um trauma.

A partir da revisão da literatura apresentada e da percepção do entendimento das questões ligadas por um trauma vinculado ao processo vital, a presente pesquisa tem como objetivo explorar a percepção de pacientes com câncer de mama em relação a um trauma emocional ocorrido em seu ciclo de vida e o aparecimento do tumor maligno.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, de natureza exploratória, em que participaram quatro mulheres, com idades entre 40 e 65 anos, que apresentam o diagnóstico de câncer de mama e foram submetidas à mastectomia e ao tratamento por quimioterapia e radioterapia.

As pacientes foram recrutadas em uma unidade de alta complexidade em tratamento de oncologia da região norte do estado do Rio Grande do Sul, onde integram um grupo de atenção á portadoras de câncer de mama desenvolvido na Instituição há dois anos. Esta pesquisa foi realizada no período de junho a novembro do ano de 2007

Não foram incluídos no estudo casos de pessoas com outros tipos de câncer que não de mama (ex.: útero, ovário, pulmão, gástrico, linfoma), tampouco aquelas pacientes que não estavam em seguimento médico junto ao serviço ou não faziam parte do grupo de atenção.

Instrumentos

Foi utilizado um ficha de dados sociodemográficos que objetivou coletar dados a respeito das pacientes, tais como: idade, escolaridade, profissão, diagnóstico, tipo de tratamento. O preenchimento foi realizado pela pesquisadora, e as informações obtidas dos prontuários médicos foram utilizadas para a caracterização das participantes do estudo.

Entrevista semi-estruturada sobre a percepção do câncer de mama foi elaborada para fins deste estudo, no qual constam de quatro perguntas que abordam o histórico da paciente, histórico da doença e investiga possíveis relações entre o surgimento da doença e existência de traumas em seu ciclo vital.  As perguntas foram desenvolvidas a partir da experiência decorrente da prática clínica diária da autora com as pacientes portadoras de câncer de mama e dados da literatura. A aplicação deste instrumento ocorreu após a concordância das participantes, mediante a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Procedimentos

A pesquisadora entrou em contato com o grupo de atenção á portadoras de câncer de mama e apresentou o projeto, disponibilizando telefone de contato dos responsáveis no caso de consentirem em participar. Tal procedimento visou minimizar a exposição da participante no grupo, oferecendo a possibilidade de adesão à pesquisa de forma sigilosa. Conforme as integrantes entraram em contato, foram sendo marcados horários para as entrevistas, as quais foram realizadas nas dependências do próprio hospital, de forma individual, e gravadas para posterior transcrição e análise.

Aspectos Éticos

Os princípios éticos concernentes a pesquisas buscam garantir a proteção dos direitos, bem-estar e dignidade dos participantes. Nesse sentido, o Conselho Federal de Psicologia por meio da resolução 016/2000 normatiza o estudo com seres humanos no âmbito da pesquisa psicológica. Considerando-se a importância de tal resolução e dos aspectos éticos envolvidos na produção de conhecimento científico, o presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - Campus de Erechim, conforme protocolo número 029/PGH/07.

Além disso, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi empregado a fim de informar aos participantes os objetivos e procedimentos da pesquisa, bem como garantir sigilo e confidencialidade das identidades, respeitando a resolução número 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia.

Análise dos dados

Os dados das entrevistas transcritas foram analisados através de análise de conteúdo (Bardin, 1991), descrevendo em categorias exaustivas e sistemáticas as informações investigadas. A análise foi realizada de acordo com um modelo que contempla categorias geradas a partir dos conteúdos das respostas dos pacientes aos tópicos investigados. Estas categorias buscaram identificar possíveis associações entre um trauma e o surgimento ou agravamento do câncer de mama.

Resultados

Os resultados são apresentados em duas partes. A primeira refere-se às características sociodemográficas e clínicas dos participantes e a segunda trata da análise das entrevistas.

 

Características sociodemográficas

Em relação à idade das participantes verificou-se que a média foi de 57, 8 anos (DP=7,6). Quanto ao estado civil, observou-se que a maioria é casada (75%), e todas as integrantes declararam não estar trabalhando por diferentes razões. Uma já estava aposentada quando teve a doença, duas estavam afastadas do trabalho devido ao tratamento e uma foi aposentada devido à mastectomia. Quanto ao curso do tratamento todas já passaram por cirurgia, quimioterapia, radioterapia e hormonioterapia. O tempo de tratamento refere o início do tratamento até a data da entrevista. Os demais dados podem ser observados na Tabela 1.

 

 

Análise das entrevistas

A análise permitiu a construção de três categorias baseadas nas atribuições das pacientes sobre fatores psicológicos associados ao surgimento da doença (câncer), as quais são descritas a seguir, com trechos dos depoimentos das participantes.

No que se referiu aos traumas por perdas, incluiu-se relatos sobre falecimento de familiares muito próximos, que quatro pacientes referiram, em algum momento, como um fator contribuinte para o desenvolvimento da doença.

“Eu tive minha mãe também com Câncer de Mama né ... depois faleceu o meu pai, depois faleceu o meu irmão, depois perdi meu namorado daí tudo vai somando e aquilo vai te criando uma ferida né...mas eu acredito que a gente vai guardando, guardando, guardando sentimentos que realmente, que realmente provoca uma doença, no meu caso foi o câncer de mama né.”.(S3)

No que se referiu ao trauma por culpa, os relatos foram marcados por intensos sentimentos de culpa derivados das dificuldades de quatro pacientes em resolver seus conflitos familiares, em especial vinculados aos filhos.

Eu tinha uma filha adolescente... e daí ela engravidou, daí como ela era meu cristalzinho, ela tinha que ser sempre como eu queria e eu me desesperei... eu me culpava muito porque eu não orientei... aquilo me martirizava”. (S1)

“Daí eu adotei dois filhos e não contamos para eles... então aquilo foi ficando dentro de mim... eles já são adultos e não sabem, mas eu tenho parece que uma ferida dentro de mim que eu deveria ter contado”. (S2)

“Eu passei a analisar e depois falei com o médico que eu acredito que o problema que eu tive não é só devido assim a genético ... eu acho que também que é por causa do problema que eu tenho com o meu filho, que é problema psicológico e faz vinte e quatro anos, eu acho que eu sofri muito com esse problema que o meu filho teve né, tem né, que é problema mental .... isso é para uma mãe de família , para um pai eu acho que para os irmãos também né, só que principalmente  para a mãe é muito difícil né”. (S4)

Em relação ao convívio com trauma, pode-se incluir relatos sobre dificuldade de duas pacientes em expressar seus sentimentos, utilizando-se de repressão dessas emoções, as quais apareceriam futuramente representadas no surgimento da doença.

“Uma Dra pediatra que era minha amiga, foi ela que me disse que eu tinha que tirar isso de mim [culpa pela gravidez da filha adolescente] porque ainda um dia eu ia sofrer as conseqüências”. (S1)

“... mas eu acredito que toda essa mágoa, essa coisa de a gente fica guardando, guardando, guardando sentimentos que realmente, que realmente provoca uma doença, no meu caso de repente foi o Câncer de Mama né mas em outras pessoas eu via, em algum lugar vai aparecer uma doença, uma ferida uma coisa assim que vai sair pra te acordar, pra mexer contigo”. (S3)

 

Discussão

análise dos dados das entrevistas mostra a existência de associação entre as percepções dos traumas emocionais e o surgimento ou agravamento do câncer de mama. Todas as pacientes entrevistadas vincularam de diferentes formas, o surgimento da doença a um trauma emocional em seu ciclo vital, seja ele por perdas, culpas ou forma inadequada de lidar com o trauma vivido.

De fato, LeShan (1992) assinala que alguns acontecimentos parecem sinalizar a chegada do câncer, quais sejam: a perda de uma relação significativa antes do início da doença, a incapacidade de expressar sentimentos hostis, importante tensão em relação a uma figura parental, e, sentimentos de desamparo e desesperança.

Uma possível explicação para esse fato seria de que a vivência de traumas emocionais poderia aumentar a suscetibilidade dessas mulheres a doenças. O caráter crônico desse processo provocaria  supressão do sistema imunológico, contribuindo para maior vulnerabilidade ao surgimento ou agravamento do câncer, em especial, de mama (Simonton, Simonton, Matthews, & James, 1987).

O aparecimento do tumor também pode ser entendido a partir dos relatos das pacientes como a expressão de uma dor. Macedo e Werlang (2007) utilizam o termo “ato-dor” de forma similar quando abordam a questão do suicídio, definindo este ato como uma dor irrepresentável que tem como conseqüência uma ação que ocorre sem medição e com caráter violento. Essa quantidade de energia que irrompe no psiquismo busca uma forma de descarga.  Podemos pensar em um mecanismo análogo para as pacientes acometidas por câncer de mama, em que o câncer pode aparecer como a expressão de traumas emocionais não elaborados no passado.

Um aspecto especialmente importante para todas as pacientes entrevistadas foi o momento da descoberta e a forma como foi explicado o diagnóstico do câncer. A maneira como esse evento lhes foi comunicado aparece nos relatos de forma extremamente marcante e decisivo. Em alguns casos as próprias pacientes buscaram informações, descobrindo sozinhas o diagnóstico, em outros  a linguagem que foi utilizada pelo médico para explicar o diagnóstico serviu como proteção ou  conforto para dar continuidade ao tratamento. Destaca-se nesse contexto o fato da equipe médica e dos serviços de saúde serem percebidos como fonte de apoio social, exercendo função protetiva para a adesão ao tratamento. Inclusive, uma das entrevistadas trabalha na área da saúde, o que permitiu o estabelecimento de relação positiva anterior com o corpo médico e favoreceu maior segurança e confiabilidade em relação ao diagnóstico e tratamento.

Em contrapartida, um fator que se apresentou claramente relacionado ao desencadeamento de fantasias, medos e inseguranças para as pacientes foi a representação mental da doença. De forma unânime, as pacientes entrevistadas relataram como fator desencadeante de desespero na descoberta da doença o imaginar-se cancerígeno, muito debilitado e com baixa qualidade de vida. Uma das entrevistadas relata que a sua reação principal no período da descoberta do câncer foi imaginar-se sem cabelo, perdendo a independência para as tarefas de vida diária e estar muito enfraquecida. Segundo Simonton et al. (1987), a descoberta da doença pode comprometer a identidade do paciente. Qualidades, papéis e funções antes vivenciados podem se perdem com a nova identidade de paciente canceroso, e esta passa a ser a principal característica de vida da pessoa.

“Vinha assim o sofrer, não era o morrer, mas era o sofrimento. Por que eu como eu trabalhava na área da enfermagem, eu não pegava assim eu acredito estas pessoas como eu, eu só pegava pessoas com câncer bem debilitados né ... só passavam por mim as pessoas em estágio final então eu me via numa cadeira, caquética,com falta de ar né, então eu me desesperava muito” (S1).

Traumas ocasionados por perdas de pessoas queridas foram conteúdos trazidos com freqüência. Nesta categoria, a dor e mágoa do luto no momento da perda puderam ser expressos em alguns momentos, porém, pode-se depreender sentimento de impotência frente à perda destes entes queridos. A morte nos relatos surge como um marco de vida (ou de morte inconsciente) ou também como  fator determinante no ciclo vital.

Convém destacar que todas as integrantes, quando questionadas sobre sua doença, trouxeram naturalmente relatos de perdas em seu ciclo vital, sem serem questionadas diretamente sobre isso. Pode-se entender este fato em duas perspectivas. A primeira considera a questão de a entrevista abordar os traumas vivenciados, e as perdas trazidas por estas pacientes de fato terem adquirido um significado expressivo. Nesse caso poder-se-ia compreender esta perda como uma associação que as mesmas fazem com o trauma. A segunda perspectiva envolve aspectos simbólicos na análise da doença, ou seja, a associação estabelecida ao relatar sua doença desde o princípio e surgir a associação com a morte.

Outro ponto importante diz respeito aos relatos de traumas ocasionados por intensos sentimentos de culpa, em especial relacionados à maternagem. Alguns relatos mostraram-se marcados por sentimentos destas mães não serem mães suficientemente boas ou mães “perfeitas”. Trata-se de questões vinculadas ao longo do processo de desenvolvimento dos seus filhos em que ocorreu um fator estressor, ou uma “falha” determinada pelas mães, e isso se tornou  fator de culpa.

Em um dos casos, o fato de ser profissional da saúde e não orientar sexualmente sua filha foi muito cobrado pela paciente, já que sua filha engravida na adolescência e sua mãe não a havia orientado sobre o uso de métodos contraceptivos. Talvez este fato possa não ter sido entendido como trauma para a filha, porém a gravidez foi contra os planos que a mãe tinha para esta filha. Outra paciente faz referência ao fato de não conseguir ter filhos, adotar e não contar para os mesmos sobre a adoção. Ter um filho com problemas psiquiátricos (o filho imperfeito ou o não idealizado) também foi identificado no discurso materno como falha. O filho não atendeu as expectativas de sua mãe por possuir inesperadamente claras limitações intelectuais, sendo visto como um “patinho feio” perante a sociedade e a família, desde a adolescência.

O processo da maternidade implica de forma direta em questões que envolvem feminilidade, não dar conta de algumas questões ou sentir-se culpada por aspectos do desenvolvimento dos filhos, o que pode ser entendido como falha pessoal, podendo vir a tornar-se um trauma por culpa.

A mama pode ser interpretada como o símbolo de feminilidade, sexualidade e também amamentação (Mello, 1986), principalmente na cultura brasileira em que freqüentemente belas formas são apresentadas explicitamente na mídia. O culto a forma estética torna-se algo rotineiro através dos meios de comunicação. Portanto, nos casos de mastectomia pode-se entender que existiu mágoa ou sentimento muito forte de culpa introjetado. Por se tratar de mulheres, torna-se ainda mais importante simbolicamente o fato desta doença ser gerada por uma dor e estar relacionada a aspectos vinculados a feminilidade, bem como o tumor na mama constituir-se como  mecanismo utilizado para estas mulheres expressarem esta dor.

O surgimento do tumor atribuído à forma inadequada de lidar com um trauma também gerou  categoria dentre os relatos. Nesse sentido pode-se perceber que a doença parece surgir como forma simbólica para vivenciar tristeza ou dor muito grande do passado, ao que sua expressão está impossibilitada ou dificultada por alguma defesa específica. De fato, a maioria das entrevistadas relatou a necessidade de se mostrar forte face à situação ou não conseguir expressar seus reais sentimentos, caracterizando um modo defensivo de lidar com o trauma. O entendimento das pacientes assume a forma em que muitas mágoas foram “guardadas”, e com o tempo exteriorizadas em forma de tumor de mama.

Esta relação se faz de extrema importância para ser investigada pela Psicologia. Poder-se-ia entender esta questão através das teorias sobre a castração ou punição. Existiu um trauma e, apesar das pacientes não referenciem o tumor como forma de punição, a compreensão dos dados nos mostra, em muitos momentos, que além deste entendimento é construído pelas pacientes quando relacionam seu trauma ao tumor, existem questões inconscientes importantes a serem consideradas relacionadas a esta doença.

Percebe-se nos relatos a referência de nunca terem dividido as questões íntimas sobre seus traumas com ninguém. Tal fato pôde ser observado com a presença do Consentimento Livre e Esclarecido, o qual foi instrumento importante no sentido de garantir o sigilo e a confidencialidade das identidades do estudo para que pudessem dividir seus segredos.

Para tanto se pode perceber através deste estudo que traumas emocionais tendem a compor fatores que podem ser compreendidos pelas pacientes como causadores ou agravantes do tumor de mama. Trabalhar características emocionais que interferem no tratamento oncológico é buscar, junto à psicossomática, respostas emocionais para problemas físicos, curar além da dor física, a dor emocional que esteve reprimida por longo período e que pode eclodir pelo tumor. Desse modo, como mecanismo primário a dor pode vir a ser simbolizada e elaborada por estas pacientes.

Carvalho (2003) refere que, frequentemente, os pacientes oncológicos possuem sentimentos reprimidos, especialmente a raiva, não possuem muita vontade e suas ações são inibidas. A autora realiza ainda análise metafórica quando entende que a energia que estava fazendo as células se reproduzirem desordenadamente e em grande quantidade foi voltada para fora e não mais para dentro. Estas reestruturações de personalidade e de vida ocorrem na busca de motivação, de significado para a vida e de maior assertividade.

Ramos (1993) explica que a não expressividade de uma emoção negativa forte oriunda de luto, perda amorosa ou situação traumática pode predispor a alteração do funcionamento do sistema imunológico, tornando o organismo mais vulnerável ao acometimento por doenças, em especial a formação de tumores malignos. 

A Psicooncologia trabalha no suporte a pacientes confusos, desesperados, com dor, com medo do sofrimento e da morte, oferecendo possibilidade de ajuda. Mostrando, através desta ajuda, esperança no tratamento médico e no trabalho psicológico, buscando nas crenças, nas motivações e nos comportamentos modificados a possibilidade de reestruturação profunda de seu ser, incluindo o físico e o psíquico (Carvalho, 2003).

Enquanto autores, vivenciar experiências como esta torna-se algo encantador no mundo da pesquisa. Supor, indagar, questionar e imaginar nem sempre nos mostra o quão importante é para os pacientes esta investigação e, o mais surpreendente, ouvir a construção de um marco de suas vidas de forma simbólica embasada nos seus contextos reais de forma clara, muito expressiva e dinâmica.

Por fim, pode-se entender como limitação deste estudo o número de participantes, pois caso fosse maior, poderiam ter ser sido trazidas diferentes situações, gerando discussão possivelmente mais complexa no que diz respeito ás idéias aqui apresentadas. Outra limitação é o fato de todas as integrantes pertencerem ao mesmo grupo de atenção ao câncer de mama, entendendo-se que alguns aspectos de sua doença já podem ter sido discutidos, ou melhor, elaborados. Incluir pessoas externas a esse grupo, pertencentes a diferentes realidades, também poderia apresentar uma realidade diferenciada. Sugere-se que os próximos estudos sejam constituídos por número maior de participantes, não integrem o mesmo grupo ou pertençam a diferentes etapas do tratamento.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Marindia Teresinha de Aguiar Grzybowski
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - Campus de Erechim
Rua João Pessoa, 533 - Centro - Erechim - RS - CEP: 99700 000
E-mail: marindiag@hotmail.com

 

 

1 Psicóloga, pós-graduanda no Curso de Especialização em Psicologia Clínica (URI), psicóloga do Centro de Oncologia Clínica
2 Psicólogo, especialista em Psicologia Hospitalar, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS), Professor da URI - Campos de Erechim
3 Psicóloga (PUCRS), Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS), Doutoranda em Psicologia (PUCRS), Coordenadora do Curso de Pedagogia da Instituição Educacional São Judas Tadeu e Professora do Curso de Psicologia da PUCRS.

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