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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.7 no.2 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A articulação MOEBIANA entre a clínica e a política nos serviços de atenção psicossocial

 

The MOEBIAN articulation between the clinic and the politics in the services of psicossocial attention

 

 

Daniela Santos Bezerra1

Plano Nacional de Saúde - Sistema Único de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde de Mato Grosso

 

 


RESUMO

Este trabalho visa analisar as questões emergidas no cotidiano dos serviços de atenção psicossocial brasileiros evidenciando a articulação entre a clínica e a política e a importância do manejo da relação entre técnicos, usuários e familiares na eficácia do tratamento oferecido. A partir de exemplos clínicos e utilizando os conceitos de Banda de Moebius e de transferência como contribuição da clínica psicanalítica à clínica ampliada, propõe-se a inclusão do sujeito do Inconsciente como fundamental ao processo de Reforma Psiquiátrica, já que este sujeito, que se difere do cidadão de direitos, é radicalmente responsável por sua posição.

Palavras-chave: Psicanálise e saúde mental; Transferência na atenção psicossocial; Clínica ampliada e sujeito do inconsciente; Políticas públicas e clínica do sujeito.


ABSTRACT

This work aims to analyze the questions that emerge on the daily of  brazilian services of psicossocial attention, showing the articulation between the clinic, the politics and the importance of the handling of the relation between technician, familiar users on the effectiveness of the offered clinic. From clinical examples and using the concepts of Banda de Moebius and transference, with the contribution of psichoanalytic  clinic to the extended clinic, including the citizen of the Unconscious as basic to the process of the Psychiatric Reformation, since this subject, different from the citizen of rights, is radically responsible for its position.

Keywords: Psychoanalysis and mental health; Public transference in extended and subject psicossocial; Clinical the attention of the unconscious one; Politics and clinic of the subject.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho é efeito de conclusões extraídas de minha pesquisa para a construção de minha dissertação no mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise na UERJ, defendida em agosto de 2008. Entre os anos de 2006 e 2008 integrei a equipe da pesquisa "Clínica do Sujeito e Atenção Psicossocial: novos dispositivos de cuidado no campo da saúde mental", a convite da coordenadora da pesquisa Professora Dra. Doris Luz Rinaldi, orientadora também da dissertação. O campo no qual estive inserida para a realização da pesquisa foi a Ala de Internação Masculina do CIAPS Adauto Botelho, que é um serviço da saúde mental oferecido pelo Estado de Mato Grosso, no qual sou servidora concursada.

Pesquisando o lugar da clínica na Reforma Psiquiátrica Brasileira, deparamo-nos com uma diversidade de artigos e discussões teóricas nos quais se podia (e pode-se) perceber a divergência entre questões relativas à clínica e questões relativas à política em saúde mental. Mais do que isso, os próprios idealizadores da Reforma Psiquiátrica Brasileira muitas vezes rechaçam a clínica, tomando-a como uma prática excludente que somente trata do organismo e suas reações químicas sob a administração de substâncias químicas, cuja radicalização é atualmente denominada pelos próprios psiquiatras engajados na reforma como "reducionista". Além de reducionista esta seria uma clínica descontextualizada das questões do coletivo, das políticas públicas, enfim, da complexidade implicada nos casos de grave sofrimento psíquico.

O que pudemos verificar na prática cotidiana é que, para além desta clínica reducionista, a Clínica Ampliada, proposta pelas mudanças legais da Reforma Psiquiátrica no Brasil, traz a possibilidade da inserção de novos modelos e novos fundamentos epistemológicos de tratamento ao sofrimento psíquico. Com essa abertura, a Psicanálise tem demonstrado, cada vez mais, a eficácia de sua clínica na saúde mental pública.

Se nos propusermos a dividir didaticamente os modelos de ações na prática cotidiana da rede de atenção em saúde mental, encontramos fundamentalmente três tipos de clínica: a Clínica Tradicional, a Clínica Ampliada e a Clínica Psicanalítica. A primeira é marcada pela orientação da Ciência Moderna, imposta desde a Revolução Científica à Medicina. No campo da saúde mental, tal clínica mostrou-se ineficaz quando somada à demanda social de exclusão do louco, concretizando o manicômio como única resposta social possível. Outro tipo de prática é a Clínica Ampliada, marcada pela Psiquiatria Democrática Italiana, na qual é dada a ênfase à dimensão política, concretizada por meio da luta pela cidadania do louco. Apesar desta nova prática ter avançado quanto ao acolhimento de questões relativas ao sofrimento psíquico para além dos neurotransmissores, o que se verifica é que a Clínica Ampliada deixa, na verdade, a dimensão da clínica em segundo plano. Isto porque há um sujeito singular que sofre e nem sempre está implicado em fazer parte do laço social. Este é o sujeito do Inconsciente, radicalmente responsável por sua própria estruturação e posição social, como detalharemos adiante. Neste caso, o sujeito já excluído na Clínica Tradicional, continua excluído pela Clínica Ampliada, já que o enfoque está no bem-estar social a ser adquirido como um bem comum. 

A Clínica Psicanalítica vem resgatar este sujeito excluído, no campo da atenção psicossocial, operando com ele. Porém não foi "de pronto" que psicanalistas se inseriram nas instituições públicas, foram necessários muitos avanços teórico-clínicos na própria práxis psicanalítica para que isso se efetivasse. A Psicanálise, portanto, avança e faz avançar a saúde mental pública, a partir de sua inserção no cotidiano da rede de atenção psicossocial. Devemos tal avanço à releitura da obra freudiana feita por Jacques Lacan, na França entre as décadas de 50 e 70 do século passado. Um dos avanços elaborados por Lacan é o de tomar a dimensão transindividual do Inconsciente, ou seja, o sujeito não se estrutura como um indivíduo, mas sim como efeito de sua relação com o Outro. Este é prévio ao sujeito e os desdobramentos desta relação é que estabelecem a realidade social em jogo, que é sempre inconsciente. Estes são, portanto, os dois pontos de partida para uma troca de contribuições entre a Psicanálise e a saúde mental pública: o fato de que o Inconsciente não é constituído de modo individual e o fato de que a clínica é estruturada a partir dos efeitos transindividuais do Inconsciente.

O objetivo deste trabalho é poder contribuir com o campo da rede de serviços de atenção psicossocial - incluindo hospitais, hospitais-dia, ambulatórios, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Unidades da Saúde da Família, elaborando conceitos da clínica psicanalítica aplicados a este campo. A partir de exemplos clínicos, vemos o quanto os conceitos psicanalíticos de Banda de Moebius e da transferência podem nos auxiliar quanto aos impasses no cotidiano das relações entre equipes, usuários, familiares, gestão e demais instâncias da sociedade. A propósito do tema do V Congresso de Interamericano de Psicologia da Saúde, procuramos trabalhar conceitos da clínica psicanalítica aplicada, inclusive, no contexto do hospital psiquiátrico, demonstrando possibilidades e resultados.

 

2. MÉTODO

No ano de 2006, a metodologia adotada neste grupo de pesquisa foi a de que o grupo de pesquisadores se inserisse no cotidiano de três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do município do Rio de Janeiro (CAPS Profeta Gentileza, CAPS Clarice Lispector e CAPSI Pequeno Hans), acompanhando ativamente o desenvolvimento da clínica em suas diversas formas, trabalho que foi complementado com a realização de entrevistas abertas com os profissionais dos serviços que se dispuseram a contribuir. As discussões semanais do grupo de pesquisa incluíam as questões clínico-institucionais que emergiram durante as experiências de inserção nas clínicas dos CAPS citados, questões sobre textos indicados pela coordenadora da pesquisa, além da discussão sobre as entrevistas realizadas junto aos profissionais destes CAPS. A partir de julho de 2007 passei a levar para discussão a experiência vivida no cotidiano do CIAPS Adauto Botelho de Cuiabá. Neste trabalho destaco as questões levantadas no cotidiano do CIAPS Adauto Botelho, fomentadas pelas discussões realizadas pelo grupo de pesquisadores.

Para esclarecer o método utilizado, é importante lembrar o postulado freudiano de 1913 (FREUD, 1976c, p. 152): "A psicanálise faz em seu favor a reivindicação de que, em sua execução, tratamento e investigação coincidem". Todas as descobertas de Freud emergiram a partir do próprio imprevisto da clínica ou, seguindo o referencial lacaniano, do real desta experiência. É do Real que emerge o sujeito e é nele que o analista também opera a partir do Simbólico. Deste modo, a própria elaboração teórica em Psicanálise depende de sua prática clínica e o método clínico é o mesmo método utilizado como método de pesquisa. É na clínica que ocorre a produção de saber em Psicanálise. Por estas razões, foi imprescindível que nós estivéssemos inseridos na prática clínica da instituição, da qual fazemos parte, inclusive, do quadro de funcionários. Além disso, utilizamos as elaborações teóricas de Sigmund Freud, a partir do marco de leitura e elaboração de Jacques Lacan.

Na escrita do presente trabalho preferimos manter a lógica de articulação moebiana, que será explicitada ao longo da exposição, dos casos emergidos na prática clínica (casuística), discussão e resultados.

 

3. CASUÍSTICA, RESULTADOS E DISCUSSÃO

Estar em um hospital psiquiátrico e trabalhar na direção da Reforma Psiquiátrica é um desafio mais teórico do que do campo da prática. Isto porque a crítica constante é a de que os hospitais psiquiátricos reproduzem o modelo manicomial, no qual seria impossível fazer emergir e trabalhar com o sujeito. Porém afirmamos que o sujeito do Inconsciente não é nunca constituído previamente, é preciso uma aposta para que seus efeitos tenham eco. Mesmo no consultório particular - considerado por muitos como o locus ideal para operar com o sujeito, mesmo nos novos dispositivos propostos nos chamados serviços substitutivos ao manicômio, pode-se excluir o sujeito.

Nossa experiência de trabalho anterior ao hospital psiquiátrico em questão, em um serviço substitutivo, nossas discussões no grupo de pesquisa, mostraram-nos que, mesmo nos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), prevalece um discurso burocrático na prática das equipes, como exploraremos adiante. Além disso, mesmo sendo questionados quanto à sua eficácia terapêutica, os hospitais psiquiátricos continuam imprescindíveis ao tratamento de crises de grave sofrimento psíquico, nas quais se faz necessário um corte radical na realidade do paciente. Tal fato se deve ou porque as gestões municipais não demonstraram empenho em montar os CAPS III (unidades com preparo para internação de curta duração). Suficientes para substituir os hospitais, ou porque há ainda muitos usuários cronificados que continuam "morando" em hospitais, abandonados pela família.

Desta forma, as elaborações contidas em nossa pesquisa independem de qual tipo de instituição se trata, bem como não atrelamos o modelo de clínica expostos aqui a categorias profissionais. Quando falamos da origem da Clínica Tradicional, remetemo-nos à origem da clínica médica; porém, na prática, vemos que o exercício de tal modelo clínico não é exclusivo aos profissionais médicos. Isto também vale para as demais clínicas. O que nos coube neste trabalho foi tentar situar as relações estabelecidas pelo sujeito do Inconsciente no campo da atenção psicossocial e demonstrar os efeitos desta articulação.

Partindo para o campo institucional, analisemos os exemplos clínicos que se seguem. Um paciente ex-egresso da internação prefere voltar ao Pronto Atendimento do hospital psiquiátrico freqüentemente a se vincular a um serviço substitutivo porque lá, segundo ele, "só há trabalhinhos para mulheres". Uma mulher quase é desligada de seu tratamento em um Hospital-Dia depois de seis meses de tratamento, porque revelou uma estrutura neurótica estabilizada, o que levou o psiquiatra a alterar o seu diagnóstico. De acordo com a portaria n. 189/2001 do Ministério da Saúde (BRASIL, 2002, p. 39), com este novo diagnóstico a usuária deveria ser atendida em ambulatório, pois ao manter-se o atendimento no Hospital-Dia, haveria o risco de que o Ministério da Saúde não efetuasse o repasse da verba destinada aos "procedimentos de alta complexidade" para esta unidade. Uma paciente chama pela psicóloga que a atende no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) durante seu período de observação no Pronto Atendimento do Hospital Psiquiátrico, sem encontrar resposta. Um senhor de 60 e poucos anos, "morador" do hospital psiquiátrico, que não fala, passa a falar e xingar, agarrado a um saco de roupas sujas feito por ele, quando percebe o movimento do Serviço Social em ressocializá-lo, enviando-o a uma Residência Terapêutica.

O que tais situações têm em comum? Onde buscar respostas a tais impasses do cotidiano dos serviços de atenção psicossocial brasileiros? Estas e tantas outras questões surgidas no dia-a-dia é que nos levaram à reflexão quanto ao processo de mudanças implantadas pela Reforma Psiquiátrica no Brasil, no que tange à condução da clínica destes serviços.

O questionamento da lógica manicomial efetuado pela Reforma Psiquiátrica trouxe consigo a crítica ao modelo tradicional da clínica psiquiátrica. Apostando que o paradigma desta clínica seria sinônimo de rotulação, medicalização e segregação, muitas discussões colocadas pelos idealizadores da Reforma Psiquiátrica colocaram a clínica em xeque, ou mesmo, em segundo plano (BEZERRA, 2008, mimeo), o que se verifica no cotidiano dos serviços.

A crítica à clínica tradicional também passou pela crítica à exclusão ao sujeito, operada pela lógica manicomial, porém percebemos que as próprias mudanças na assistência que propõem colocar o usuário como protagonista de seu tratamento (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p.18), muitas vezes vêm desconsiderando a implicação do sujeito em seu sofrimento, bem como ignorando a relação - fundamental à clínica - entre técnicos e usuários. Percebemos em nossa pesquisa que, muitas ações das equipes - à primeira vista inovadoras - mantêm o usuário de saúde mental, de modo subjacente, na condição de "especial". No novo campo de atenção psicossocial, o que restou de clínico é dimensionado a partir de diretrizes de ressocialização e de aquisição de uma cidadania legalizada, porém não efetivada pela sociedade. Muitos dos impasses ocorridos no cotidiano dos serviços tornam-se pontos cegos na assistência, por não se levar em conta a dimensão, considerada pela Psicanálise como fundamental, que é a dimensão inconsciente, na qual o sujeito é considerado como radicalmente responsável pela sua posição (LACAN, 1998a, p.873). Rinaldi (2005, p. 93), comentando esta questão, aponta que muitas vezes este sujeito se apresenta como excesso para a equipe que trabalha com seus direitos de cidadão. Contudo, a autora (RINALDI, 2005, p. 95) afirma que é preciso considerar que sujeito e cidadão se articulam, o que nos faz concluir que clínica e política em saúde mental não são nem poderiam ser excludentes entre si. A singularidade e o sujeito, tal como elaborou Sigmund Freud a respeito do conceito de transferência (FREUD, 1976b), permanecem excluídos na maioria das ações. É importante ressaltar que a dimensão do sujeito à qual se refere a Psicanálise não coincide necessariamente à dimensão da cidadania. E o fato da dimensão do sujeito não encontrar espaço discursivo para ser tratado, traz conseqüências não só clínicas, mas também administrativo-gerenciais, o que revela que clínica e política em saúde mental se articulam como duas faces da mesma Banda de Moebius.

 

 

Através desta figura extraída por Lacan da Topologia (LACAN, 2005, p.110) entendemos como uma face está diretamente articulada a outra. Percorrendo um dos lados da superfície da fita, ao final pode-se perceber que, por causa de uma torção, passa-se, sem sair do percurso, do lado de fora para o lado de dentro e assim sucessivamente. É neste sentido que verificamos a articulação ou continuidade entre a clínica e a política, entendendo que a Psicanálise não é uma prática isenta das questões do social ou do coletivo.

De que ampliação se trata?

A Reforma Psiquiátrica, ao implantar políticas públicas para realizar a chamada substituição ao manicômio, operou uma ampliação em duas vias. A primeira voltou-se para a ampliação da atenção ao usuário de saúde mental, ou seja, ampliação da clínica com a implantação de recursos e dispositivos alternativos que envolvem não somente o tratamento médico, mas também aspectos da vida social do usuário como esporte, lazer e cultura. Assim, a nova clínica, denominada de "ampliada", difere da clínica psiquiátrica tradicional por estar aberta a novos saberes, incluindo, no foco do tratamento, toda gama de aspectos da vida do usuário implicada em sua posição de sofrimento. Isto implica, para além do alívio dos sintomas, orientação à família, suporte social, criação de alternativas de trabalho, moradia e lazer, garantia de direitos, dentre outras ações. Por isso mesmo a mudança de nomenclatura de "saúde mental" para "rede de atenção psicossocial" (DELGADO,1997, p. 47).

A segunda via de ampliação constitui-se na redistribuição das funções dos serviços, ou seja, a responsabilidade pela atenção psicossocial passa a ser atribuída a diversos tipos de serviços, em diversas localidades dentro dos municípios. Esta ampliação contrapõe-se à lógica manicomial, que definiu que, na maior parte do Brasil, os hospitais psiquiátricos ou "colônias para loucos" fossem construídos fora da cidade, fora do espaço público. A partir desta redistribuição, o hospital psiquiátrico ou a internação psiquiátrica deixa de exercer o papel principal dentro da rede de atenção psicossocial. Mais ainda, toda a rede do Sistema Único de Saúde é convocada a acolher os usuários de saúde mental em suas diferentes demandas e situações, sendo elas relativas especificamente ao seu sofrimento psíquico ou não. O mesmo usuário de saúde mental pode ser atendido, por causa de seu sofrimento psíquico, em várias modalidades de serviço: desde os CAPS, até os hospitais gerais. Há, deste modo, uma gama de diferentes ofertas de tratamento possíveis e demandadas, dependendo do que se apresenta como manifestação de um sofrimento e dos cuidados que essa manifestação exige naquele determinado momento. Tais ofertas se configuram, além da internação, como o atendimento multidisciplinar de alta complexidade (realizado nos CAPS), o atendimento em ambulatórios, bem como o acompanhamento pelos técnicos dos Programas Saúde da Família (PSFs) e Programas de Agentes Comunitários (PACs) e as campanhas e eventos sociais que levam a nova política de atenção psicossocial à sociedade em geral.

Segundo Pedro Gabriel Delgado, no final da década de 90 , as mudanças implantadas na saúde mental pública tinham como principal intuito mudar a lógica de descontinuidade do tratamento ambulatorial que ocorria no pós-alta hospitalar (DELGADO, 1997, p.47). Assim, a proposta da Reforma Psiquiátrica Brasileira vem sendo a de tornar a atenção psicossocial uma ação a ser realizada fora do hospital, enquanto instituição fechada: no espaço público, nos bairros, junto à família e à comunidade. Deste modo, iniciou-se uma rede de serviços de base territorial.

A noção de território está referenciada na Psiquiatria Democrática Italiana, bem como na Psiquiatria de Setor francesa e na Psiquiatria de Preventiva norte-americana. Nas palavras de Delgado, a literatura norte-americana distingue os serviços como sendo de "base hospitalar" e os de "base comunitária". No Brasil, o termo comunitária "faz lembrar, inevitavelmente, as idéias preventivistas: intervir na comunidade, identificar situações de maior risco, prevenir o aparecimento de transtornos" (DELGADO, 1997, p. 42). Por este motivo é que o autor considera que o conceito de território, originado na Psiquiatria Democrática italiana, é mais próximo das diretrizes da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Deste modo, teoricamente, a noção de território é tomada, no Brasil, para além do campo da Geografia, incluindo nela tudo o que está fora da noção de instituição. De acordo com Delgado, a partir desta lógica, o território é aquilo que se circunscreve, por meio de contornos subjetivos, a referência cultural, familiar, mitológica, socioeconômica de cada usuário de saúde mental. Para este autor tal processo de mudanças é um desafio teórico com grandes implicações clínicas (DELGADO, 1997, p. 42). Percebemos a veracidade desta afirmação em nossa prática, principalmente quando a noção de território não é utilizada como espaço de referência subjetiva. Em sua aplicação, a noção de território se perde em uma dimensão geo ou demográfica, causando efeitos enviesados no que tange à referência e ao vínculo dos usuários junto aos serviços, somente trocando o problema da cronificação dos usuários de lugar: do hospital para um ciclo vicioso dentro da rede.

Os próprios técnicos implicados, uns mais e outros menos, no possível desarranjo do processo de mudança, encontram dificuldades para lidar com a nova lógica e parecem buscar na literalidade da lei um norte para seguir. A rede de atenção psicossocial acaba, assim, por priorizar a distribuição de usuários de acordo com seus endereços domiciliares, não considerando o vínculo estabelecido entre os usuários e os serviços e técnicos aos quais estavam até então referenciados.

Tal problemática não se refere simplesmente à saída do usuário do manicômio para que ele seja tratado próximo à sua casa, junto aos seus. Trata-se da complexidade da clínica praticada em toda nova rede de atenção. Como exemplo, citamos a destituição do ambulatório de saúde mental de Cuiabá, que fez com que os técnicos (psiquiatras e psicólogos concentrados num só prédio) fossem redistribuídos pelas chamadas Policlínicas da capital, sendo que, nem sempre o bairro no qual determinado técnico passou a exercer suas funções corresponde ao bairro no qual vive determinado usuário que possui vínculo estabelecido com o referido técnico. Muitos usuários voltaram a um ciclo de internações psiquiátricas, após um longo período de estabilização, relatando estarem perdidos na nova rede de atenção.

Quando questionamos a clínica praticada na rede de atenção psicossocial não estamos com isso negligenciando as questões políticas e necessidade de aquisição de direitos dos usuários implicadas no tratamento oferecido. Discutir a clínica é justamente colocar em prática as diretrizes políticas da Reforma Psiquiátricas, pelo viés do sujeito.

Quando ouvimos um a um dos profissionais, encontramos uma fragilidade de sustentação das discussões sobre a clínica. Verificamos que a noção que se destaca para as equipes é a do chamado "Projeto Terapêutico". Relembrando a definição do instrutivo(BRASIL, 2002, p.16) divulgado pela Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, pela ocasião da publicação da Portaria GM 336/02, encontramos dois modos de entender o Projeto Terapêutico. O primeiro modo diz respeito à missão institucional do serviço "dentro do âmbito de seu território". O outro modo se refere ao acompanhamento individual de cada usuário que se insere no serviço, caracterizando-se, então, como um "projeto personalizado".

Inúmeras questões surgem aí, pois, o que nossa pesquisa encontrou foi a "prevalência de um discurso burocrático frente à construção de tal Projeto Terapêutico" (RINALDI, 2007, mimeo). Há uma tendência das equipes, independente do tipo de instituição, em constituir o Projeto Terapêutico como um roteiro a ser apresentado aos usuários, voltado para as questões de cidadania e valorização das habilidades. A proposição ministerial que fundamenta a implantação de um Projeto Terapêutico não o coloca como um documento institucional estático, mas sugere que ele deve servir como orientação para uma direção compartilhada de tratamento a ser redefinida caso a caso. O modo como ele vem sendo aplicado, entretanto, lembra mais uma proteção contra os imprevistos, no qual é o usuário quem deve adaptar-se ao Projeto Terapêutico e não o tratamento ser constituído a partir da relação que o sujeito em causa estabelece com o serviço. Isso burocratiza o Projeto Terapêutico, direcionando-o muito mais às questões legais do que propriamente clínicas.

Desta forma, perde-se, inclusive, a oportunidade de tomar a importância da função do Técnico de Referência, outra noção introduzida pela Clínica Ampliada, no tratamento oferecido nos serviços. A função do Técnico de Referência é a de ter em vista, a partir de cada intervenção feita, a totalidade do andamento do caso, sendo o articulador da relação entre usuário, família e serviço. Mas nem sempre vemos que os Técnicos de Referência são aqueles eleitos pelos usuários dentre os técnicos do serviço como referência de tratamento. A designação deste técnico também acaba ocorrendo de forma burocrática e não baseada na relação entre usuários e técnicos

A transferência na Clínica Ampliada

Para tentar avançar a discussão que se situa na intersecção da clínica e da política de atenção psicossocial no Brasil, valemo-nos do conceito psicanalítico de transferência.

As mudanças trazidas pela Reforma Psiquiátrica, com a ampliação e reconfiguração da clínica, abriram novas possibilidades de estabelecimento de laços para os usuários de saúde mental e seus familiares. De fato, em contraste com o contexto manicomial anterior, excludente e homogeinizante, é possível perceber que, depois de quinze anos de Reforma, os usuários encontram nos novos dispositivos de tratamento dos serviços de saúde mental uma diversidade de caminhos para a sua reinserção na comunidade. Mas, se levamos em conta o Inconsciente, sabemos que as diversificações cotidianas não garantem que haja uma mudança estrutural nas relações possíveis de um sujeito. É neste sentido que vemos a importância do campo transferencial, pois é nele que as relações se estruturam e podem ser trabalhadas clinicamente.

A transferência surgiu para Freud (1976e) como um impasse, exigindo que ele elaborasse um modo específico de manejá-lo para que o tratamento psicanalítico se efetivasse. Ele se apercebeu de que tal impasse, paradoxalmente, tem as mesmas origens que os afetos que impulsionam o tratamento. Assim, a transferência é, ao mesmo tempo, impasse e mola propulsora do tratamento. Foi justamente por causa da emergência do sujeito e dos impasses que isso causou à clínica médica que a Psicanálise nasceu. Dito de outro modo, a Psicanálise começou a ser elaborada a partir de algo do paciente que insistia em atrapalhar ou surpreender a Freud, que seguia os passos ditados pela Medicina de sua época.

Freud demonstrou que a transferência também ocorre nas instituições e fora do tratamento psicanalítico. Pode, inclusive, assumir, como diz ele, formas as mais indignas de servidão mental (FREUD, 1976e, p.136). A novidade trazida por ele foi justamente a de descobrir as suas raízes inconscientes e fazer deste fenômeno o operador central da clínica. A transferência se desenvolve a partir da inclusão na realidade psíquica do sujeito do novo campo de relações estabelecidas com o psicanalista, o que pressupõe um reinvestimento pulsional. Sua importância é tão fundamental à clínica que Freud instituiu que o tratamento só é possível a partir de instalada a transferência (FREUD, 1976c).

Trazendo este conceito ao cotidiano dos serviços de atenção psicossocial, a relação entre usuário e os técnicos passa a fazer parte dos problemas e soluções encontrados por cada usuário. Contudo, a transferência não se estabelece a partir da mesma lógica instituída pela realidade dos serviços, mas sim como efeito do Inconsciente, que não necessariamente está em conformidade com a realidade delineada pelo cotidiano dos serviços. Este impasse clínico na maioria das vezes não é tratado pela equipe dos serviços e trabalhado em sua importância, fato que traz inúmeros problemas para a realização da clínica na saúde mental pública. Sua importância exigiria que esta clínica estivesse mais voltada à singularidade dos casos e menos ao seguimento generalizante e burocrático de portarias ministeriais. Aí se coloca novamente a necessidade de se levar em conta quem o usuário inconscientemente elegeu como sua própria referência de tratamento, pois é somente a partir desta eleição, como pivô do tratamento, que as intervenções do serviço poderão surtir efeito.

Trata-se aqui de reforçar a própria diretriz do Projeto Terapêutico Singular , pela qual os técnicos devem estar em constante questionamento de suas ações, levando em conta a singularidade dos casos e não ensurdecidos pela literalidade legal. A idéia de território, por exemplo, deve ser tomada de modo subjetivado, avaliada a partir de cada caso, pois ao seguir uma rigidez geográfica ou demográfica, ela somente estará trocando o problema da cronificação dos usuários de lugar: do hospital para um ciclo vicioso dentro da rede.

No caso paradigmático da usuária quase desligada de seu tratamento no Hospital-Dia, graças a várias discussões em equipe, a mesma continuou no serviço. Concluiu-se que foi justamente por causa da transferência estabelecida com aqueles técnicos que ela tinha podido restituir-se, sair de seu momento de sofrimento agudo, reconhecer-se como sujeito de seu próprio tratamento e queria seguir tratando-se ali.

Neste sentido é importante reconhecer o que a Psicanálise introduz de novidade diante de uma clínica puramente terapêutica. A etimologia do termo terapia designa cuidado ou tratamento que visa o restabelecimento do bem-estar. Desde o início de sua obra, Freud (1976a) colocou em questão o tratamento pela via da terapia, que, segundo ele, utiliza técnicas conhecidas pela Medicina desde a Antiguidade: a sugestão e a persuasão. Desde seus primórdios a Medicina fez uso de técnicas de sugestão e persuasão que consistiam em influenciar o paciente, por meio de um saber atribuído ao médico. Segundo Jacques Lacan (1992, p. 262) esta atribuição ou amor dirigido ao saber do médico ou do analista, ou, no nosso caso, a qualquer um dos técnicos da equipe, é o cerne do processo de transferência, que na clínica deve ser manejada para, ao invés de influenciar o paciente, promover o tratamento, partindo principalmente da não correspondência destes afetos. Encontramos uma importante recomendação freudiana quanto à vontade de ajudar e fazer o bem ao paciente: a de que, enquanto profissional, é preciso guiar-se pelas capacidades do paciente em vez de por seus próprios desejos (FREUD, 1976c).

Ao discutirmos as estratégias imbuídas no Projeto Terapêutico, é importante estarmos atentos se, na tentativa de promover a cidadania dos usuários de saúde mental, não estamos caminhando pela via da sugestão, visando a promoção do bem-estar e a correspondência mútua de expectativas. Neste caso, o Projeto Terapêutico estaria visando a cura (alvo buscado pela terapia) através da cidadania como um bem a ser alcançado por todos.

Já em 1919 Freud previu a interlocução necessária entre a Psicanálise e a Saúde Mental Pública, mesmo assim insistiu em manter as mesmas recomendações, já que via que as instituições para "pacientes nervosos" buscavam criar um mundo tão agradável quanto possível aos pacientes para que ele se refugiasse das "provações da vida" (FREUD, 1976d). Segundo ele,isso não dá suporte para que os pacientes possam "enfrentar a vida e tenham capacidade para levar a cabo as verdadeiras incumbências nela".

Trazendo esta recomendação para o serviço público, é no campo da relação transferencial que verificamos a recomendação de abstinência feita por Freud, pois se procuramos abrir espaço para o trabalho do sujeito e seu modo de estar no mundo, é importante não corresponder a uma expectativa de promoção imediata de bem-estar. Com Freud vemos que isso pode reforçar uma acomodação, calar o sujeito ao invés de colocá-lo a trabalho. Assim como não nos cabe devolver a agressividade e a insatisfação lançada por usuários e familiares ou mesmo julgar o possível desinteresse destes em relação ao serviço oferecido. Levando em conta todas as questões socioeconômicas e culturais que tornam muitos usuários carentes, inclusive de formular qualquer demanda, é preciso encontrar a dosagem certa para o manejo da transferência. É neste ponto que o trabalho em equipe e a supervisão clínica (pauta também para uma outra extensa  discussão) podem ajudar a cada técnico na construção e na condução do caso.

Um exemplo clínico importante que aponta para resultados da intervenção psicanalítica em um hospital psiquiátrico é o caso de Lúcio, como vou chamá-lo, 38 anos, divorciado, recebia sua irmã e seu irmão mais velhos, quando nos aproximamos para ouvi-los ao mesmo tempo em que o ouvíamos pela primeira vez.

Usando aqui um termo comum na Enfermagem, Lúcio estava lúcido, tinha uma demanda dirigida e não era delirante. Porém não conseguia falar perante os irmãos, parecia inibido pela fala dos mesmos. Eles diziam que Lúcio há muitos anos fazia "tratamento para depressão" e que tinha um relacionamento difícil com a mãe de sua filha. Quando Lúcio tentava dizer alguma coisa, seus irmãos disfarçavam gestos, desautorizando sua fala.

Lúcio foi condenado à prisão preventiva a partir da nova lei conhecida como "Maria da Penha" (n.11340/2006 do Ministério da Justiça). Esta lei corresponde a uma demanda social de maior rigor frente à violência contra a mulher no Brasil, modificando totalmente os atos jurídicos pelo país e aumentando o número de mandados de prisão em nosso Estado. Ele brigou com sua ex-mulher em público porque ela e sua filha adolescente estavam em uma festa tomando cerveja, segurando-a firmemente pelo braço. Foi denunciado por violência física. O único modo que seu advogado encontrou para que ele não fosse para o presídio, foi alegar que ele era portador de "transtorno mental" e que estava sob efeito de medicação, no ato criminoso. A juíza, então, determinou que ele permanecesse três meses dentro do hospital psiquiátrico.

É comum recebermos pessoas com Mandado de Internação, já com tempo determinado, sendo este um dos maiores problemas enfrentados pela equipe de técnicos. A internação como punição. O que representava para Lúcio esses três meses de reclusão? E qual a função de uma equipe de técnicos de saúde mental frente a alguém "preso" obrigatoriamente dentro da instituição?

Felizmente Lúcio tinha inúmeras queixas. Ouvindo-o apostamos que dificilmente se tratava de uma estruturação psicótica e que a internação se devia a uma manobra da família, já que ele tinha agredido fisicamente a ex-mulher. Mas sabemos que os neuróticos podem se submeter a muitas atitudes desagregadas do laço social ou sofrer de sintomas gravíssimos, chegando a pontos agudos. E as articulações sociais podem levá-lo, sim, a uma internação psiquiátrica, já que a finalidade da instituição seria a de acolher o usuário, assisti-lo em seu momento de possível passagem ao ato e degradação física que podem levá-lo à morte.

Este extremo não era o caso de Lúcio, que apesar de muito fragilizado, sabia bem de seu ato passional em direção a essa mulher. Lúcio era infantilizado e se vitimizava quanto a tudo e todos, estava identificado ao lugar designado pela família de "doente mental". Mas sustentando a hipótese diagnóstica de neurose, buscamos atendê-lo com os limites da clínica aplicada a esta estrutura clínica, tal como recomendou Freud em seus escritos técnicos (FREUD, 1976b, 1976c, 1976d, 1976e) e, diante desse rigor, algo aconteceu.

No primeiro atendimento Lúcio fala de seu sofrimento psíquico desde a adolescência até a fase adulta descrevendo traços obsessivos, como por exemplo, o de cumprir com rituais criados por ele mesmo, aos quais ele atribuiu uma "obrigação religiosa". Tais rituais só cessaram quando ele conheceu A mulher, pela qual passou a sentir paixão arrebatadora e ciúme intenso. A mulher passou a ser seu sintoma. Parou de praticar seu esporte preferido (era maratonista), não concluiu o curso de graduação que fazia. Casou-se, mas a convivência entre eles era cada vez pior, até chegar ao insuportável e à separação. Nesta mesma época, seu pai, com quem tinha relação de muita cumplicidade e admiração, faleceu. Para Lúcio este foi o início de uma saga de psiquiatra em psiquiatra, usando muitas medicações antidepressivas e ansiolíticas. Nas poucas crises de angústia que teve, foi sobre-medicado e recebeu o diagnóstico psiquiátrico de "transtorno bipolar". Chegou a ser atendido por psicólogos do INSS, mas disse que uma delas o "ensinava que ele não devia sentir tudo aquilo", fazendo-o desistir de falar e o impelindo ao vício pelos ansiolíticos. A família passou a tratá-lo como incapaz, buscando aposentá-lo e Lúcio se encaixou cada vez mais no lugar de doente mental, de quem se pode esperar qualquer atitude insensata. Até que, pela primeira vez, chegou a uma internação psiquiátrica.

O modo como Lúcio se dirigia aos profissionais faziam-nos pedir por uma intervenção, pois se incomodavam com seu jeito "impertinente e exigente", pois ele reivindicava tratamento diferenciado. Por fatores de estrutura, há uma malícia na demanda neurótica, que ao manifestar-se na instituição, manipula a equipe de técnicos, tornando o manejo do caso muito mais complicado para todos e até impossível para alguns.

Nossa posição diante disso foi apostar que o tempo de punição, determinado pela lei jurídica, poderia ser utilizado como um tempo de tratamento, fazendo operar um saber sobre uma outra Lei, a Lei simbólica. A partir da negação em atendê-lo o tempo todo pelos corredores e pátio, sua lucidez foi demarcada. Ofertamos uma escuta diferenciada, em local reservado e em tempo determinado. Lúcio, então, substituiu seu choramingo infantil e suas queixas sobre o cotidiano da instituição, implicando-se em suas questões contemporizadas em sua internação. Ele passou a falar dos pensamentos auto-depreciativos que lhe acometiam todas as noites e associá-los aos seus pesadelos e antigos rituais transformados em idéias repetitivas. Falou de uma culpa avassaladora por questões de seu passado, sobre as conseqüências de seu delito contra uma mulher que o levou a sofrer sanções da lei, bem como falou de seus planos para o futuro. Enfim, passou a se dispor a um trabalho de análise. Logo muitos da equipe vieram "agradecer", pois Lúcio tinha ficado menos irritante no dia-a-dia. Ele mudou, falava como homem.

Que mudança foi essa? A instalação do campo de transferência. Mais ainda: a substituição do sintoma anterior pela neurose de transferência. Quando Lúcio obteve sua alta, ele estava decidido a uma série de coisas, dentre elas, a dar continuidade ao tratamento. No momento da alta, Lúcio foi encaminhado para um serviço ambulatorial do SUS.

Mais ou menos dois meses depois de sua alta, recebemos um chamado da portaria do hospital, dizendo que Lúcio nos aguardava. Seu irmão, com quem estava morando logo ao sair do hospital e de quem gostava muito, faleceu e Lúcio não conseguiu ser atendido no ambulatório para onde foi encaminhado. Lúcio estava bem vestido, trazia um livro de presente. Não tomava mais nenhuma medicação, nem mesmo os ansiolíticos. Pediu para ser atendido em consultório particular e marcamos um horário. Porém ele havia voltado a morar no interior tendo comparecido uma vez somente, faltando as duas outras marcações e não mais conseguimos contato com ele, já que seu telefone havia mudado. Talvez a mudança subjetiva tenha sido suficiente para ele. Foi por causa da transferência que o que seria uma desgraça tornou-se um ponto de basta no sintoma deste sujeito e ele saiu da identificação com a doença mental.

Se nos ocupássemos de tentar reverter o Mandado de Internação ao invés de escutar o usuário, não poderíamos sustentar o campo transferencial instalado. Independentemente da determinação judicial ou burocrática de uma internação psiquiátrica, o sujeito precisa ser convocado a se implicar em sua própria posição subjetiva.  

Vimos também em nossa pesquisa que a busca por parte dos técnicos de uma posição clínica e não mais burocrática em relação ao tratamento oferecido também pode ser buscada na noção da Psicologia sobre o vínculo terapêutico, utilizada em muitos estudos das chamadas Ciências Médicas sobre a relação médico-paciente (MARQUES & ARRUDA, 2007). Consideramos tal noção insuficiente, pois quando os técnicos levam em conta que para uma boa condução do Projeto Terapêutico o usuário de saúde mental "deve estabelecer um vínculo terapêutico" com o serviço, não parecem estar aí incluídas todas as conseqüências decorrentes de tal vínculo, inclusive os impasses e engodos em relação ao próprio tratamento. A partir disso situamos a diferença da noção de vínculo terapêutico para a noção psicanalítica de transferência, que inclui a noção da resistência. Por isso a transferência também pode ser obstáculo ao tratamento, pois muitas vezes o sujeito, que na clínica psicanalítica é convocado ao trabalho subjetivo, para de trabalhar e passa a amar ou odiar a quem dele trata, resistindo ao tratamento (FREUD,1976b).

Para ilustrarmos tal diferença na clínica, trazemos o caso de um usuário que foi internado compulsoriamente no CIAPS Adauto Botelho porque ameaçou de morte o marido da assistente social do CAPS de sua cidadezinha, por ter "se apaixonado por ela". Isto fez com que tal marido, junto com os técnicos do CAPS, movessem uma ação judicial para que o usuário fosse internado, já que ele representava "um risco para a sociedade". Freud declara que no trabalho com o Inconsciente "a ambição educativa é de tão pouca utilidade quanto a ambição terapêutica" (FREUD, 1976c, p. 158). Para Lacan (1998b, p. 595), desde o início de seu ensino, tudo o que intervém suspendendo, destruindo ou interrompendo a continuidade do tratamento está do lado do analista. A resistência se expressa quando o analista não se atém à realidade do discurso, mas, a realidade factual, empurrando o analisante para o acting out, ou seja, para a realização da transferência fora de sua presença. Não corresponder à demanda amorosa do paciente não significa rechaçá-la ou incriminá-la, mas tomá-la em trabalho. Este é o desafio com o qual lida a clínica psicanalítica e com o qual os técnicos de tal CAPS não souberam lidar, ocupando mais um leito do hospital. O encaminhamento dado, portanto, contrariou a diretriz política de desinstitucionalização, por causa da dificuldade de manejo clínico.

 

4. CONCLUSÕES

A Psicanálise, convocada a responder por seu modo de intervenção no âmbito do serviço público, aponta sempre para o sujeito como ponto de onde devem partir todas as ações efetuadas, invertendo a noção de que as propostas terapêuticas devem estar prontas previamente em um projeto instituído.

A vivência cotidiana da tensão entre o sujeito e a burocracia nos serviços interroga o possível enrijecimento de modelos de atendimento. Acreditamos que uma das contribuições importantes que a Psicanálise pode oferecer à discussão da lógica da rede de atenção psicossocial é que se possa dar lugar ao real, à imprevisibilidade do sujeito do Inconsciente, à emergência do inesperado e à importância da transferência na condução dos casos. Além de dar lugar produtivo ao imprevisto, tomar o sujeito como ponto de partida para as intervenções, para os encaminhamentos, para o manejo ou para a condução do caso, implica em colocar em relevo a relação viva existente entre os usuários e os técnicos.

No entrecruzamento de questões consideradas como sendo de cunho político com aquelas de cunho clínico, poder-se-ia chegar a um ponto de discussão fundamental que deveria permear as ações dos técnicos de atenção psicossocial: qual o objetivo ou finalidade do tratamento? Como dar limite e não perpetuar a relação entre o usuário e a rede de atenção psicossocial? Esta constante reflexão possibilita que os serviços não se tornem eternos centros de convivência e ressocialização, nos quais a relação dos usuários para com o serviço se estenderia infinitamente ou de modo difuso, reproduzindo ou repetindo as demais instituições da sociedade ou modos já existentes de laços intersubjetivos. Nossa aposta é de que, a partir de uma clínica ativa, a rede de serviços em saúde mental deixa de correr o risco de se tornar um conjunto de instrumentos de captura ao usuário, para ser um tecido social que permita ao sujeito sua produção.

Se a Reforma Psiquiátrica no Brasil vem desconstruindo um tipo de assistência profundamente arraigada que produz, em vez de tratamento, a exclusão de cidadãos de seu meio social, a Psicanálise vem propor a construção contínua de uma clínica que não tenha em seu cerne um outro tipo de exclusão: a do sujeito e seu desejo. Se pudermos ouvir as recomendações de Freud, colocando a transferência como o pilar da clínica, o sujeito passa a ter lugar na estratégia política de condução dos casos e na relação entre unidades dentro da rede. Para isso é preciso tomar o campo da transferência para além de uma conceituação teórica e o campo das leis como "vivo", fazendo parte das discussões do cotidiano. Isto implica em inverter a noção aterradora de localizar no Outro, (no Ministério da Saúde, na instituição, na Ordem Jurídica ou na Ordem Médica) a totalidade do saber. Implica, enfim, em viabilizar uma nova política que passe pela clínica.

 

5. REFERÊNCIAS

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1Filiação: PNS-SUS da Secretaria Estadual de Saude de MT. Artigo extraído da dissertação de mestrado "O lugar da Clinica na Reforma Psiquiátrica Brasileira" defendida em 2008 no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ, sob orientação da Profa. Dra. Doris Luz Rinaldi.
Cartilha do Ministério da Saúde: Clínica Ampliada, Técnico de Referência e Projeto Terapêutico Singular, 2ª. Edição. Site do Ministério da Saúde.Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Brasília, 2007 <bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/clinica_ampliada.pdf >