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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.12 no.1 São Paulo jan. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Arrependimento da realização da esterilização tubária em gestação de alto risco

 

Repentance of the realization of tubal sterilization in high-risk pregnancies

 

 

Amanda Maihara dos SantosI,1; Gláucia Rosana Guerra BenuteII,2; Roseli Mieko Yamamoto NomuraIII,3; Seizo MiyadahiraIII,4; Mara Cristina Souza de LuciaII,5; Rossana Pulcineli Vieira FranciscoIII,6

IFaculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
IIDivisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
IIIDepartamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivos: Identificar o índice de arrependimento relacionado à realização da cirurgia de esterilização tubária, descrever os aspectos associados ao arrependimento e investigar as alterações que as mulheres acreditam ter ocorrido na vida delas decorrente da realização da cirurgia. Métodos: Estudo prospectivo transversal. Foram convocadas a participar do estudo todas as mulheres que apresentaram gestação de alto risco e que realizaram a cirurgia de esterilização tubária na Clínica de Obstetrícia de hospital universitário entre os anos de 2005 e 2007. Foram convocadas 316 mulheres e 216 pacientes foram incluídas no estudo. Resultados: Das mulheres entrevistadas, 2,8% se arrependeram de ter realizado a cirurgia de esterilização tubária. Constatou-se significância estatística no que diz respeito à dúvida em realizar o procedimento (p<0,01); aos sentimentos despertados a partir da constatação da impossibilidade de gerar (p<0,01) e a média de relacionamento estável (p<0,01). Conclusões: A população pesquisada apresentou graves problemas de saúde, o que explica a taxa de arrependimento inferior à observada na literatura. Para minimizar o arrependimento, sugere-se o trabalho multidisciplinar oferecendo acesso a planejamento familiar, reflexão e questionamentos acerca da escolha realizada.

Palavras-chave: Gravidez, Esterilização tubária, Anticoncepção.


ABSTRACT

Objective: Identify the index of repentance related to surgery of tubal sterilization, describe aspects related to repentance and to investigate the changes that women believe they have been occurred because of the surgery. Methods: Prospective cross study. High risk pregnant women who underwent tubal sterilization surgery in the Obstetrics clinic in a University Hospital between 2005 and 2007. A total of 316 women were included for a scheduled interview and 216 women answered the interview. Results: Of the women interviewed, 2.8% regretted having the tubal sterilization surgery. Statistical significance was found in doubt to doing the procedure (p<0.01), in the feelings awaken with the inability to reproduce (p<0.01) and stable relationship average (p<0.01). Conclusions: The population studied had severe health problems which explains the lower rate of regret found in the literature. To minimize the regret, we suggest that multidisciplinary work providing access to family planning, reflection and debate about their current choice.

Keywords: Pregnancy, Tubal sterilization, Contraception.


 

 

INTRODUÇÃO

Historicamente, o papel social da mulher está associado à maternidade. Apesar das inúmeras mudanças ocorridas ao longo dos séculos, da participação cada vez maior das mulheres nas esferas econômica, política e social, ainda a maternidade é concebida como tarefa primordial à essência do feminino (Patias & Buaes, 2010). Com o surgimento de métodos contraceptivos e dos programas de planejamento familiar, a maternidade passa a ser compreendida como uma opção, um desejo, e não mais uma vocação na vida da mulher (Kato, 2004). A responsabilidade em assumir escolhas livres e informadas sobre a reprodução propicia processo de grandes alterações nos relacionamentos sexuais e, consequentemente, na vida da mulher (Carreno, Dias-da-Costa, Olinto, & Meneghel, 2006).

No Brasil, em 1996, entra em vigor a Lei sobre Planejamento Familiar (Lei Federal n° 9.263/96) que estabelece com clareza o dever do Estado de oferecer e o direito dos cidadãos de terem acesso aos meios para controle da fecundidade, regulamentando também o direito e as restrições relativas à esterilização cirúrgica no Brasil. A partir desta lei, em 1997, o Ministério da Saúde regulamentou os parágrafos correspondentes à esterilização, estabelecendo normas para a sua realização no Sistema Único de Saúde (SUS), pela portaria n°144/97. Portanto, de acordo com a legislação vigente, é tarefa dos serviços públicos de saúde oferecer, entre outros métodos, a laqueadura tubária e a vasectomia, desde que a pessoa solicitante tenha capacidade civil plena, seja maior de 25 anos ou tenha, pelo menos, dois filhos vivos. A lei determina, ainda, que a cirurgia só pode ser realizada depois de decorridos, no mínimo, sessenta dias a partir da manifestação do desejo de fazê-la. Durante esse período a pessoa que solicita a esterilização deverá participar de sessões de orientação, incluindo o aconselhamento por equipe multidisciplinar. A cirurgia não pode ser realizada no momento do parto ou aborto, exceto quando houver necessidade comprovada, em virtude de cesarianas sucessivas anteriores.

A legislação foi assim elaborada, pois a prática de esterilização no Brasil estava associada à realização de cesáreas, onde o pagamento pelo procedimento era encoberto e levava à esterilização de mulheres jovens e com poucos filhos. Além disso, essas mulheres nem sempre eram adequadamente esclarecidas e orientadas, sendo comum o arrependimento pela cirurgia (Carvalho, Osis, Cecatti, Bento, & Manfrinati, 2007). Deste modo, o planejamento familiar tornou-se uma questão de saúde pública no Brasil.

Após a regulamentação esperava-se a diminuição do número de cesarianas, do número de laqueaduras realizadas no pós-parto imediato, da realização da cirurgia em mulheres com idade inferior a 25 anos e orientação às mulheres sobre os diferentes métodos anticoncepcionais, assim como acesso a esses.  No entanto, estas alterações não ocorreram na intensidade esperada (Carvalho et al., 2007; Gonçalves, Garcia, & Coelho, 2008; Moura, & Vieira, 2010).

A laqueadura, atualmente, é o método contraceptivo mais conhecido e desejado, sendo considerada a opção mais segura e eficaz. Embora existam muitos tipos de contracepção, a esterilização tubária é a forma de controle de natalidade mais popular (Jayakrishnan, & Baheti, 2011). No entanto, tem-se constatado altos índices de arrependimento decorrentes desta escolha (Machado, Ludermir, & Costa, 2005; Fernandes, Bedone, Leme, & Yamada, 2006; Barbosa, Leite, & Noronha, 2009), o que representa uma séria questão médica, pois não existe garantia de que a reversão possa ser realizada, assim como o retorno à fertilidade (Vieira, 2007). Estudos demonstram que as razões para o arrependimento incluem idade jovem no momento da cirurgia (menor que 30 anos), mudança de parceiro e perda ou deficiência de um filho (Jayakrishnan, & Baheti, 2011; Tan, & Loh, 2010; Schepens, Mol, Wiegerinck, Houterman, & Koks, 2011). Encontra-se, como alternativas para o arrependimento, a cirurgia de reversão e o procedimento de fertilização in vitro (Boeckxstaens, Devroey, Collins, & Tournaye, 2007; Tan, & Loh, 2010).

A laqueadura tem sido utilizada cada vez mais como um método contraceptivo, mundialmente mais de 200 milhões de mulheres em idade reprodutiva têm se submetido ao procedimento de esterilização tubária (Schepens et al., 2011). O Brasil é considerado um dos países com maiores índices de laqueadura (Nicolau, Moraes, Lima, Aquino, & Pinheiro, 2011). A alta prevalência da laqueadura tubária entre as mulheres sem escolaridade mostra que o sistema público de saúde ainda apresenta dificuldades em incorporar a assistência anticoncepcional aos serviços de atenção primária (Moura, Silva, & Galvão, 2007).

Como problema de saúde pública, a esterilização tubária deve ser estudada em todos seus aspectos para que se possa propor forma adequada de realizar o aconselhamento, visando diminuir os índices de arrependimento e propiciar condições de escolhas adequadas aos métodos contraceptivos existentes. Deste modo, torna-se importante compreender os índices de arrependimento da realização da esterilização tubária em mulheres com risco de vida em outras gestações. Neste estudo, o objetivo foi identificar o índice de arrependimento relacionado à realização da cirurgia de esterilização tubária, descrever os aspectos associados ao arrependimento e investigar as alterações que as mulheres acreditam ter ocorrido na vida delas decorrente da realização de esterilização tubária.

 

MÉTODO

Trata-se de estudo prospectivo transversal. Neste trabalho participaram gestantes que tinham doença materna grave, como diabetes, hipertensão, trombofilia, cardiopatia, câncer de mama, aneurisma, colagenose, aplasia medular, asma grave ou moderada, hipertiroidismo, linfoma de Hodgkin; risco obstétrico, como três cesáreas ou mais, doença trofoblástica, isoimunizações e risco relativo, como malformações fetais, idade materna, artrite reumatoide, HIV, obesidade mórbida, Síndrome do X frágil, macroadenoma de hipófise, plaquetopenia, doença hipertensiva específica da gravidez, que foram indicadas ao processo de laqueadura devido à gestação de alto risco, na Divisão de Clínica Obstétrica de hospital universitário no período compreendido entre janeiro de 2005 a dezembro de 2007. Foram verificadas em prontuário todas as solicitações efetuadas para realização da cirurgia. Foram realizadas 649 solicitações para a realização da esterilização tubária no período analisado. A convocação foi feita a todas as mulheres que tinham seus dados cadastrais atualizados, totalizando 316 mulheres que realizaram a cirurgia de esterilização tubária. Responderam à entrevista 216 pacientes.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição. A convocação foi realizada por telefone e as mulheres compareceram ao ambulatório em dia e horário agendado previamente para responder à entrevista, após consentirem em participar desse estudo assinando o termo de consentimento livre e esclarecido.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semidirigidas, que apresentavam roteiro previamente elaborado, onde o sujeito da pesquisa tinha liberdade de falar o que desejasse em cada questão formulada. As entrevistas tiveram duração média de uma hora e foram realizadas por psicólogas capacitadas especificamente para os propósitos da pesquisa.

Foram coletados os seguintes dados sociodemográficos: idade (anos), escolaridade, estado conjugal atual (com companheiro ou sem companheiro) e relacionamentos conjugais anteriores, número de gestações e religião (católica, evangélica, outros e sem religião).

A escolha pela utilização da entrevista semidirigida se deu devido à inexistência de instrumentos específicos para avaliar arrependimento em situações de cirurgia. Os instrumentos padronizados e validados para a população brasileira cujo objetivo é avaliar o arrependimento dizem respeito à aquisição de bens de consumo, desenvolvidos na disciplina de Psicologia do Consumidor. A entrevista foi desenvolvida tomando por parâmetro e adaptando algumas questões da escala de arrependimento no processo de tomada de decisão do consumidor (Nicolao, 2002).

Para a análise dos dados da entrevista, foi realizada a Técnica de Análise de Conteúdo, que tem como objetivo descrever, interpretar e compreender os dados. Bardin (2009) define essa técnica como um conjunto de técnica de análise da comunicação visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores quantitativos que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção e recepção dessas mensagens. Os dados das entrevistas foram codificados, transformando os dados brutos do texto em categorias e todos os resultados obtidos com a categorização foram, posteriormente, analisados com técnicas quantitativas.

Os resultados quantitativos foram analisados através do programa Statistica for Windows (versão 4.3, Statsoft, Inc., 1993). As variáveis foram analisadas descritivamente, calculando-se médias e desvios-padrão, frequências absolutas e relativas. Os dados categóricos e quantitativos foram avaliados pelo Teste exato de Fisher quando indicado. As variáveis contínuas foram analisadas pelo Teste t de Student. O nível de significância utilizado para os testes foi de p<0,05.

 

RESULTADOS

A idade das mulheres variou entre 21 e 48 anos, com média de 35,8 anos (DP=5,51); média de 3,9 gestações (DP=1,66) e 3 filhos vivos (DP=1,2). Das 216 mulheres entrevistadas, 2,8% (n=6) se arrependeram de ter realizado a cirurgia de esterilização tubária. As pacientes foram convocadas a responder à entrevista com média de 31,2 meses (variando entre 12 e 42 meses) após a realização da cirurgia.

Quando correlacionados os dados sociodemográficos com o arrependimento, verificou-se significância estatística referente à média de relacionamento estável (p<0,01), conforme os dados apresentados na Tabela 1.

 

 

Ao se avaliar aspectos específicos da decisão em realizar a cirurgia de esterilização tubária constatou-se significância estatística entre os grupos no que diz respeito aos sentimentos negativos despertados quando a mulher constatou impossibilidade de gerar (p<0,01). A associação entre ter apresentado dúvidas no momento de decidir se desejava ou não realizar a esterilização tubária também apresentou significância estatística (p<0,01) (tabela 2).

 

 

Questionou-se sobre as alterações associadas à cirurgia de esterilização tubária. Constatou-se que a alteração negativa no estado emocional e piora no relacionamento com filhos e/ou parentes foi significativamente mais frequente entre as mulheres que se arrependeram da realização da cirurgia (p=0,05; p=0,03, respectivamente). Não foram encontradas associações positivas para nenhum dos outros itens selecionados, conforme os dados apresentados na Tabela 3.

Tal como apresentado na tabela 3, as mulheres atribuíram à cirurgia de esterilização tubária uma série de mudanças ocorridas em suas vidas. A seguir apresentam-se transcritos alguns discursos ilustrativos desta associação autorreferida.

“Choro com facilidade, mas não sei se é por causa da cirurgia” (p.27, p.210);

“Ando mais irritada, me sinto diferente como mulher. É frustrante saber que você não pode mais ter filhos” (p.14, p.185).

As alterações negativas na saúde física foram relatadas como:

 “O ciclo menstrual aumentou, ficou desregulado, fico mais agitada antes de menstruar e tenho mais sangramentos” (p.25, p.43, p.51, p.123, p.126, p.129, p.153, p.172, p.186, p.189, p.215, p.265, p.265);

 “Agora tenho mais cólicas e engordei” (p.77, p.185, p.190, p.198).

Também se constatou piora nas relações sexuais, como ilustram os discursos:

“Não tenho mais o desejo de antes, nem o mesmo desempenho sexual” (p.22, p.147, p.194, p.203);

“Perdi o interesse, estou mais fria com meu marido” (p.48, p.82, p.186).

Quando questionadas sobre possíveis alterações no relacionamento com parceiros e no relacionamento com filhos/parentes, constatou-se:
“Meu parceiro me acusa de não poder mais dar filhos” (p.185);

“Meu filho disse que estou mais nervosa e que antes não gritava muito” (p.190);

“Sinto que estou mais estressada e impaciente, antes não era assim” (p.9, p.22).

Para ilustrar o arrependimento, seguem-se os discursos:

“Acho que poderia ter usado a camisinha como método contraceptivo e ter outros filhos mais tarde” (p.63);

“Me sinto culpada por não ter lutado para impedir a cirurgia” (p.30);

“No fundo me arrependo, porque queria muito ter mais um filho” (p.264).

 

DISCUSSÃO

A taxa de arrependimento em mulheres que realizaram a cirurgia de esterilização tubária encontrada neste estudo foi de 2,8%, inferior aos achados da literatura que se situam ao redor de 10,5%. A probabilidade de arrependimento é estimada entre 2-13%, no entanto, apenas 1-3% se submetem ao procedimento de reversão (Schepens et al., 2011). O fato de a população pesquisada neste estudo apresentar problemas de saúde, tornando a gestação de alto risco, parece indicar que a opção pela laqueadura pode ser mais assertiva em virtude das possíveis complicações e do alto risco à vida dessas mulheres. Esses dados corroboram achados da literatura de que mulheres com problemas durante a gravidez apresentaram menor risco de arrependimento, assim como as que tinham elevado número de filhos e as que não apresentavam dificuldades financeiras (Carvalho, Cecatti, Osis, & Sousa, 2006).

A Lei do Planejamento Familiar (lei n° 9.263/96) garante à mulher e ao cônjuge o acesso às informações sobre a cirurgia de laqueadura tubária e sobre métodos contraceptivos, além de orientações de grupo multidisciplinar, mas não é suficiente para garantir a reflexão e erradicar o arrependimento.

Interessante notar que, após a cirurgia de laqueadura, as mulheres atribuem alterações, em diferentes áreas da vida, à realização da cirurgia. É possível supor que características da feminilidade relacionadas diretamente à capacidade reprodutiva gerem desconforto fazendo com que a realização da cirurgia passe a ser a “grande vilã” na vida destas mulheres. No entanto, para conclusão acertada acerca deste assunto seria necessário pesquisa qualitativa, voltada para aspectos subjetivos e projetivos na vida destas mulheres.

A prática da esterilização tem assumido aspectos de maior precocidade, acontecendo em níveis bastante elevados nas faixas etárias jovens. Acrescenta que a decisão em idade inferior a 25 anos, a pouca informação sobre o procedimento e o pouco conhecimento sobre anticoncepcionais são fatores que se relacionam ao arrependimento (Eichenberg, Rada, Trevisan, Tatsch, Menezes, & Poli, 2002; Figueiredo, Evangelista, Abdalla, & Silva, 2006). A perda de um filho e a troca de parceiro também são fatores relacionados ao arrependimento (Ludermir, Machado, Costa, Alves, & Araújo, 2009) e a principal razão para a busca da reconstrução cirúrgica tubária é a mudança de cônjuge (Moura, & Vieira, 2010). A percepção de família completa, problemas financeiros e problemas conjugais também influenciam na decisão de se submeter à laqueadura, e a procura pela reversão é motivada principalmente por novo matrimônio (Cunha, Wanderley, & Garrafa, 2007). Neste estudo observa-se que idade, número de gestações e filhos vivos, religião e estado civil não se associaram ao arrependimento provavelmente devido ao risco de uma nova gestação.

Apesar dos esforços do governo em adotar políticas e medidas para permitir o acesso da população aos meios de contracepção desde 1983, com lançamento do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), os avanços têm se mostrado lentos e pouco eficazes. Pesquisa realizada nas Unidades Básicas de Saúde de municípios brasileiros confirma que a atenção ao planejamento familiar no Brasil continua a ser marcada pela indisponibilidade de métodos anticoncepcionais nos serviços públicos de saúde, além da capacitação insuficiente dos profissionais para atuarem nessa área (Osis et al., 2006). Isso contribui para que a esterilização cirúrgica continue sendo o método preferido e muito utilizado pelas mulheres, e coloca o país entre aqueles com os maiores índices de esterilização feminina do mundo (Figueiredo et al., 2006; Cunha et al., 2007).

A afirmação de que mesmo com uso de contraceptivos as mulheres engravidaram e a crença de que a laqueadura é 100% eficaz, além do baixo risco da cirurgia quando efetuada corretamente são fatores motivadores que contribuem para que as mulheres que não desejam voltar a engravidar (Lutala, Hugo, & Luhiriri, 2011) optem pela esterilização tubária.

A pequena chance de reversão e a subjetividade da mulher são fatores importantes na decisão pela esterilização e para um futuro arrependimento ou sentimento ambivalente em relação à cirurgia realizada (Gonçalves et al., 2008), fato constatado ao verificar que nenhuma paciente soube precisar com exatidão os motivos do arrependimento.

As mulheres estudadas, por se tratar de um grupo de risco, referiram motivos diferentes para a realização da laqueadura tubária quando comparadas à população em geral. O principal motivo foi possível risco em próxima gestação, seguido de restrição a contraceptivos e número de filhos.

Notou-se ainda que apesar da religião católica desaconselhar o planejamento familiar e privilegiar o relacionamento sexual para a procriação, as mulheres que afirmaram ser praticantes desta religião não se incomodam em fugir das regras pré-estabelecidas. Após a esterilização a maioria das mulheres relatou sentimentos positivos em relação à saúde física, às relações sexuais e ao fato de não poderem gerar outro filho. Esse estado emocional pode estar relacionado à despreocupação com uma futura gravidez, com o uso de métodos contraceptivos e com a tranquilidade na vida sexual com o marido (Minella, 1998). A qualidade no relacionamento com os filhos, parceiro ou parentes também foi influenciada positivamente, valorizando àqueles que estão próximos.

Uma das limitações encontradas neste estudo foi a coleta dos dados ter sido realizada até dois anos após a realização da cirurgia, o que pode ser considerado pouco tempo para se avaliar o índice de arrependimento, justificando a taxa inferior. O tempo de arrependimento da cirurgia apresentou-se entre dois e quatro anos (Cunha et al., 2007).

O trabalho multidisciplinar e a certeza do conhecimento prévio de outras possibilidades de evitar a gestação devem ser prioridade para que as mulheres possam escolher com maior propriedade de conhecimento o tipo de contracepção a ser utilizada, diminuindo possíveis arrependimentos. Os grupos de planejamento reprodutivo têm demonstrado maior apropriação das mulheres a respeito de métodos contraceptivos e possibilitam, além da troca de experiências, aquisição de novos conhecimentos (Heilborn, Portella, Brandão, & Cabral, 2009). Sugere-se o trabalho multidisciplinar oferecendo acesso a planejamento familiar, reflexão e questionamentos acerca da escolha realizada e àquelas com problemas de saúde, em que uma gestação colocaria em risco sua vida, o acompanhamento psicoterápico, pois a doença já traz muito sofrimento e a possibilidade de não poder gerar filhos deve ser amplamente trabalhada e refletida.

 

CONCLUSÕES

A taxa de arrependimento encontrada entre mulheres que tiveram gestação de alto risco e que realizaram a cirurgia de esterilização tubária foi de 2,8%. Os aspectos que se associaram ao arrependimento foram o tempo médio de relacionamento estável, sentimentos negativos relacionados à impossibilidade de gerar, dúvidas no momento de decidir pela esterilização tubária. As alterações autorreferidas associadas ao arrependimento foram relacionadas à piora no estado emocional e no relacionamento com filhos e/ou parentes.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: amandamaihara@yahoo.com.br

 

 

1Mestranda em Ciências, Departamento de Obstetrícia e Ginecologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
2Diretora Técnica de Serviço de Saúde da Divisão de Psicologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
3Professora Livre-Docente do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
4Professor Livre-Docente do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
5Diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
6Professora Livre-Docente do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.