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Escritos sobre Educação

versão impressa ISSN 1677-9843

Escritos educ. v.4 n.2 Ibirité dez. 2005

 

ARTIGOS

 

A forma escolar e a produção das disciplinas escolares como objeto de investigação sócio-histórica

 

The school system and the production of school disciplines as an object of socio-historycal investigation

 

 

Ângelo Filomeno Palhares Leite1

Instituto Superior de Educação Anísio Teixeira da Fundação Helena Antipoff

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo foi elaborado a partir de um capítulo de a dissertação de mestrado defendida em 2005 no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC Minas, e intitulada: A Formação da cultura filosófica escolar mineira no século XIX - uma filosofia de compêndio: um estudo sobre a disciplina de filosofia no Liceu Mineiro (1854-1890). A pesquisa sobre o tema teve o intuito de subsidiar teoricamente a dissertação, que foi um trabalho de reconstituição histórica do ensino de filosofia no Liceu Mineiro, importante estabelecimento escolar de instrução secundária em Minas Gerais no século XIX, da data de sua criação, em 1854, até 1990, quando não só muda de nome, para Ginásio Mineiro, como a disciplina de filosofia deixa de fazer parte de seu currículo. Apresentamos no texto, de forma sucinta, a análise realizada do conceito de forma escolar, a partir de um trabalho de Vincent; Lahire & Thin (2001), e de sua importância para uma investigação em história das disciplinas escolares.

Palavras-chave: Forma escolar, História das disciplinas escolares, Currículo, Cultura escolar e Sócio-história.


ABSTRACT

This paper was based on a Master's dissertation submitted to the Post-Graduation Program in Education from the Catholic University in Minas Gerais - Pontifícia Universidade Católica, in 2005. The dissertation was entitled: The School Philosophical Development in Minas Gerais during the XIX century - a philosophy of compendium: a research on philosophy as an academic discipline in the Liceu Mineiro (1854-1890). The research was intended to serve as the theoretical basis for the dissertation, a study on the historical reconstitution of philosophy as a discipline in this important high school in Minas Gerais in the XIX century. From the date of its foundation in 1854 up to 1990, the referred high school was subject to major changes - not only does its name change but also the discipline of philosophy ceases to be part of the school curriculum. The concept analysis of the school system is briefly presented on the grounds of a study carried out by Vincent; Lahire & Thin (2001), highlighting its importance for a historical investigation of the school disciplines.

Keywords: School system, History of school disciplines, Curriculum, School culture and socio-history.


 

 

Introdução

Nossa intenção no presente artigo é tentar demonstrar que uma pesquisa em história das disciplinas escolares não pode dispensar, ao menos preliminarmente, uma compreensão da categoria de forma escolar, tal como ela tem sido proposta pela sociologia da educação, sem correr o risco de não conseguir organizar a investigação tanto no sentido de se evitar um certo anacronismo historiográfico, que indiferencia o que hoje denominamos de escola do que um antigo ou medieval entende pela mesma, bem como uma certa desordem no uso de outras categorias como: modelo escolar, cultura escolar, disciplina escolar, entre outras.

Isso não significa pensar nossa escola apenas como produto de estruturas que lhe determinariam previamente seu modo de ser, mas também entendê-la como produtora e possuidora de esferas que detêm autonomia própria, em que pese guardar certa homologia com o entorno da qual é contemporânea.

Da mesma maneira, não pensamos em hierarquizar as categorias de análise ao modo do racionalismo de um Espinoza (1973), por exemplo, que tem como modelo o matematismo à maneira da geometria. O que pensamos foi operar algumas distinções e contribuir assim para se evitar uma certa confusão entre os termos em uso ao se investigar.

Para tanto, passamos em revista alguns autores da sociologia e historiografia da educação que tratam mais diretamente da temática proposta em vista do intuito anunciado.

 

Considerações Preliminares

Como é sabido, os estudos que fizeram com que as disciplinas escolares se constituíssem como um campo de pesquisa autônomo estão ligados às análises sobre a formação do conhecimento escolar, que se articulam com os estudos sobre a história do conhecimento curricular.

Nessa direção, Silva (1998) aponta-nos que:

"... o interesse na história do currículo remonta à primeira fase da chamada Nova Sociologia da Educação, iniciada na Inglaterra por Michael Young e outros. A historização do currículo era uma estratégia central no enquadramento teórico da NSE, na exata medida em que a perspectiva histórica permitia expor a arbitrariedade dos processos de seleção e organização do conhecimento escolar e educacional" (SILVA, 1998, p. 7).

Também Forquin (1993) tributa à nova corrente sociológica da educação a intensificação do interesse pelos estudos curriculares.

Para o autor, com efeito,

"... a reflexão desenvolvida na Grã-Bretanha durante as duas últimas décadas sobre os fatores culturais da escolarização deve muito às contribuições teóricas originais de uma corrente de pesquisa e de reflexão sociológicas que se cristalizou ao redor do final dos anos 60 e que se designa geralmente pelos termos (na verdade, de modo algum, equivalentes) de "sociologia do currículo" ou de "nova sociologia da educação"" (FORQUIN, 1993, p. 69).

Nessa linha de raciocínio, Silva (1998) sugere, com bastante convicção, que é próprio de uma pesquisa histórica do currículo,

"... ver o conhecimento corporificado no currículo não como algo fixo, mas como um artefato social e histórico, sujeito a mudanças e flutuações. (...) Uma análise histórica do currículo deveria, (...) tentar captar as rupturas e disjunturas, surpreendendo, na história, não aqueles pontos de continuidade e evolução, mas também as grandes descontinuidades e rupturas. Uma tal perspectiva estaria atenta aos diferentes significados que, através da história, podem ter sido

Silva (1998) caracteriza em seu texto esse novo espírito científico. O mesmo, por ser histórico, deve evitar a descrição que vise apenas demonstrar a diferença entre o antigo e o atual currículo, pois, se a nova perspectiva enxerga o currículo da escola como um artesanato sócio-cultural, então cabe a explicação da dinâmica que lhe deu o contorno que o fez ser como é.

Isso envolve ver o currículo como resultante de "um processo constituído de conflitos e lutas entre diferentes tradições e diferentes concepções sociais. Esse processo é tão importante quanto o resultado" (SILVA, 1998, p. 8).

Essa idéia de manufatura social que é o currículo, não resulta de uma deliberação epistêmica imaculada (SILVA, 1998). Para ele, "O currículo não é constituído de conhecimentos válidos, mas de conhecimentos considerados socialmente válidos" (SILVA, 1998, p. 8, itálicos do autor).

Mais ainda, nesse modo de raciocinar, o processo sócio-cultural de construir o currículo tampouco é tido como logicamente coerente e sólido, antes, se configura muito mais como um modo de operação sincrético que combina crenças, expectativas, visões de sociedade e alguma evocação científica muito mais como ornamento.

Desse modo, "uma história do currículo que se limitasse a buscar o lógico e o coerente estaria se esquecendo precisamente do caráter caótico e fragmentário das forças que o moldam e determinam" (SILVA, 1998, p. 9).

Uma história do currículo não pode perder de vista que o mesmo é fabricado para produzir efeito sobre as pessoas, como de fato o tem produzido,

"... o currículo não apenas representa, ele faz. É preciso reconhecer que a inclusão ou exclusão no currículo tem conexões com a inclusão ou exclusão na sociedade. (...) uma história do currículo amplia a tradicional preocupação com o acesso à educação. Não se trata apenas de uma questão de acesso (...), mas do acesso diferencial a diferentes tipos de conhecimento (...) do acesso diferencial ao currículo ou talvez, melhor dizendo, aos currículos" (SILVA, 1998, p. 10, grifos do autor).

Uma disciplina escolar é um componente curricular por excelência, em que pese essa evidência aparente, cabe articular entre esses dois elementos. Existe relativamente um bom número de autores de relevância cuja investigação é centrada na história das disciplinas escolares como Goodson (1990), Chervel (1992) e Juliá (2002).

Para Chervel, considerado por Juliá (2002) um clássico dessa literatura, a especificidade da História das disciplinas escolares é o ensino da "idade escolar".

Segundo esse autor,

"... a história dos conteúdos é evidentemente seu componente central, o pivô ao redor do qual ela se constitui. Mas seu papel é mais amplo. Ela se impõe colocar esses ensinos em relação com as finalidades às quais eles estão designados e com os resultados concretos que eles produzem. Trata-se então de fazer aparecer a estrutura interna da disciplina, a configuração original à qual as finalidades deram origem, cada disciplina dispondo, sobre esse plano, de uma autonomia completa, mesmo se analogias possam se manifestar de uma para outra" (CHERVEL, 1990, p. 187).

Contudo, a crítica de Vincent; Lahire & Thin (2001, p. 15) dirigida a Chervel é a de que "ele não utilizou suficientemente os trabalhos dos sociólogos para aprofundar suas análises".

Vamos, a seguir, tentar ver como a concepção de forma escolar, sociologicamente proposta, pode contribuir para os estudos em questão, tendo como referência o citado trabalho de Vincent; Lahire & Thin (2001).

Forma escolar, escolarização do social e relações de poder

Comecemos por tentar responder à questão: o que é a forma escolar? Na perspectiva de Vincent; Lahire & Thin (2001) é uma forma peculiar de socialização, a escolar, cujo sentido exprime um tipo específico de relação social, como relação com regras impessoais e relação com outras formas sociais, dentre estas, principalmente, relações com formas de exercício do poder.

Sua finalidade mais ampla é a pedagogização do social, isto é, das relações sociais pela via da impessoalidade das normas. E no âmbito mais específico da escola, de um disciplinamento das relações pedagógicas pelo represamento do elemento espontâneo constitutivo de um estilo de vida e da transformação dessa relação, de relação comunitária entre mestres e alunos, em uma relação de governo dos alunos pelos mestres (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001).

A forma escolar é solidária de outras transformações do todo sócio-histórico: a constituição do Estado Moderno, a progressiva autonomização de campos de práticas heterogêneas, a generalização da alfabetização e da forma escolar e a construção de uma relação distanciada da linguagem e do mundo (relação escritural-escolar com a linguagem e com o mundo). São formas de relações sociais tramadas por práticas de escrita e/ou tornadas possíveis pelas práticas de escrita e pela relação com a linguagem e com o mundo que lhes é indissociável (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001). O que os autores citados buscam demonstrar é que a análise, que eles chamam de "sociogenética", permite,

"... estabelecer relações entre a forma escolar e outras formas sociais, principalmente, políticas". (...) "Segundo parece, a forma escolar de relações sociais só se capta completamente no âmbito de uma configuração social de conjunto e, particularmente, na ligação com a transformação das formas de exercício do poder" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 16-17, grifos dos autores).

Para demonstrarem de modo mais concreto o significado de forma escolar, os autores analisam uma configuração social de conjunto, a França urbana do fim do século XVII à primeira metade do século XIX, de onde extraem cinco características relativamente invariantes (ou recorrentes, no dizer dos autores) de algumas formas escolares de relações sociais.

São elas:

  1. "A escola como espaço específico, separado das outras práticas sociais (em particular, as práticas de exercício do ofício), está vinculada à existência de saberes objetivados" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 28).
  2. "A escola e a pedagogização das relações sociais de aprendizagem estão ligadas à constituição de saberes escriturais formalizados, saberes objetivados, delimitados, codificados, concernentes tanto ao que é ensinado quanto à maneira de ensinar, tanto às práticas dos alunos quanto à prática dos mestres. A pedagogia (no sentido restrito da palavra) se articula a um modelo explícito, objetivado e fixo de saber a transmitir". (...) "Historicamente, a pedagogização, a escolarização das relações sociais de aprendizagem é indissociável de uma escrituralização-codificação dos saberes e das práticas" (...) "O modo de socialização escolar é, portanto, indissociável da natureza escritural dos saberes a transmitir" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 28-29).
  3. "A codificação dos saberes e práticas escolares torna possível uma sistematização do ensino e, deste modo, permite a produção de efeitos de socialização duráveis, registrados por todos os estudos elaborados sobre os efeitos cognitivos de escola. A forma escolar de aprendizagem se opõe então, ao mesmo tempo, à aprendizagem no âmago de formas sociais orais, pela e na prática à escrita (...) e à aprendizagem do "ler" e do "escrever" não sistematizado, não formalizado, não durável" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 30).
  4. "A escola como instituição na qual, se fazem presentes formas de relações sociais buscadas em um enorme trabalho de objetivação e de codificação - é o lugar da aprendizagem de formas de exercício do poder. Na escola, não se obedece mais a uma pessoa, mas a regras supra-pessoais que se impõem tanto aos alunos quanto aos mestres". (...) "A codificação da organização das próprias práticas e saberes escolares (por exemplo, codificação gramatical) é correlativa de processos extra-escolares - principalmente estatais -, de codificação e, deste modo, está indissociavelmente ligada a um modo particular de organização e de exercício do poder" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 30-31, grifos dos autores).
  5. "Enfim, para ter acesso a qualquer tipo de saber escolar, é necessário dominar a "língua escrita" (...). A forma escolar de relações sociais é a forma social constitutiva do que se pode chamar uma relação escritural-escolar com a linguagem e com o mundo" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 34-35).

Com esta longa citação queremos apenas mostrar o essencial dos autores em questão, isto é, o estranhamento em relação àquilo que hoje nos parece tão natural, como certas categorias que assumem um caráter de generalidade tão grande do tipo: "educação" "pedagogia", entre outras, que se perde o sentido pelo qual foram particularmente constituídas.

O alvo que Vincent; Lahire & Thin (2001, p. 17) tem em mira é explícito. "Digamos de modo mais claro que, reduzindo a análise sócio-histórica à historiografia, não seria possível captar sua importância para a análise do "presente"". Dessa maneira, um estudo sócio-histórico das disciplinas escolares evidencia sua índole multidisciplinar2 e plurimetodológica, em razão tanto da necessidade de diálogo claramente posta nos termos acima anunciados, quanto em razão da complexidade desse tipo de investigação.

Nossa escrita na seqüência buscará dialogar, criticamente, com a historiografia da educação e a compreensão da mesma com relação às categorias (ou conceitos) que tomamos em nosso presente estudo para análise.

 

A historiografia da Educação e os estudos de História das disciplinas escolares

Juliá (2001) entende a cultura escolar como objeto da história, possibilitado, principalmente, em decorrência do refinamento historiográfico porque passaram os problemas da educação há cerca de duas décadas. Para o autor, a história da educação tradicional foi,

"... em suas principais linhas, uma história política e institucional, no tempo em que as lutas entre as Igrejas e o Estado eram mais violentas: tratava-se então de se posicionar pró ou contra os jesuítas, pró ou contra a Revolução Francesa e suas conquistas" (JULIÁ, 2002, p. 37).

Também a história da educação brasileira passou por semelhante transformação, caso que veremos mais adiante. De forma complementar, Juliá (2001) define a cultura escolar como,

"... um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, socio-políticas ou simplesmente de socialização)" (JULIÁ, 2001, p. 10, grifos do autor).

Mais adiante, na mesma obra, o autor citado elenca três eixos que nos permite o entendimento da cultura escolar como objeto da historia da educação, ambos propostos como vias ou caminhos a serem seguidos na investigação:

"... a primeira via seria interessar-se pelas normas e pelas finalidades que regem a escola; a segunda, avaliar o papel desempenhado pela profissionalização do trabalho de educador; e a terceira, interessar-se pela análise dos conteúdos ensinados e das práticas escolares" (JULIÁ, 2001, p. 19).

Como se pode verificar, na ótica do referido autor, as disciplinas escolares constituem um elemento do currículo e este, parte da cultura escolar.

Para Vincent; Lahire & Thin (2001, p. 15), por sua vez, "a invenção da forma escolar se realiza na produção das "disciplinas" escolares3". Falar de forma escolar como forma de relações sociais permite evitar a confusão entre instituição e forma, mais precisamente, entre instituição escolar e forma escolar, "precisamos reafirmar que a forma escolar não é estritamente confundida com a instituição escolar, nem limitada por ela, mas é transversal em relação a diversas instituições e grupos sociais" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 46).

Desse modo,

"... falar de forma escolar é, portanto, pesquisar o que faz a unidade de uma configuração histórica particular, surgida em determinadas formações sociais, em certa época, e ao mesmo tempo que outras transformações, através de um procedimento tanto descritivo quanto "compreensivo". (...) "uma teoria da forma escolar permite, (...) pensar a mudança. (...) o que se poderia chamar a recorrência através das modificações" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 9-10).

Assim, os autores em questão falam de um "modelo republicano" de escola, de "escola mútua", "das escolas dos Irmãos", que apesar de diferentes entre si e das mudanças, estas, na ótica dos autores, "não chegaram a interferir naquilo que definimos como forma escolar" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 10).

A caminhar na direção desta perspectiva, isso significa que uma forma escolar pode abarcar mais de um modelo escolar, sendo o modelo mais restrito que a forma escolar.

Isso nos possibilitaria, no caso da educação no Brasil, poder falar, talvez, é claro, pois carecemos de mais pesquisas para tanto, ao menos como hipótese, de um modelo escolar do Império, da República, ou ainda jesuíta, pombalino, liceal etc., ou até mesmo mais de um modelo escolar convivendo ao mesmo tempo, sem, contudo, abandonarem, ambos, o "paradigma" da forma escolar.

Quanto à categoria (ou ao conceito) de cultura escolar, ela se refere, tal como vimos, à instituição escolar. Mafra (2003), na esteira de Forquin (1993), nos chama a atenção para se evitar a confusão do conceito de cultura escolar com o conceito de cultura da escola, para tanto, a autora opera uma distinção entre as três dimensões culturais presentes na escola, "a saber: a cultura na escola, a cultura da escola e a cultura escolar" (MAFRA, 2003, p. 125).

Na dimensão da cultura na escola o que se procura verificar com os estudos dos estabelecimentos escolares são,

"... as características ou manifestações socioculturais específicas ou a diversidade e diferenças étnico-culturais marcantes entre os corpos discente e docente. Nesses casos, os autores são movidos, entre outras, por questões sobre como se diferenciam as formas de apreensão de uma cultura hegemônica por grupos culturais diversos, que marcas de identidade são engendradas nas relações socioculturais entre seus corpos discente e docente, e como a escola é ressignificada por diferentes grupos culturais" (MAFRA, 2003, p. 125).

Quanto à dimensão da cultura da escola, a autora citada afirma que esses estudos,

"... buscam dar visibilidade ao que se denomina ethos cultural de um estabelecimento de ensino, sua marca ou identidade cultural, constituída por características ou traços culturais que são transmitidos, produzidos e incorporados pela e na experiência vivida do cotidiano escolar" (MAFRA, 2003, p. 126).

Muito próxima desta é a dimensão da cultura escolar, cujos estudos, na perspectiva de Mafra (2003, p. 129), buscam "identificar a presença de um ethos escolar na maneira de ser, de agir, de sentir, de conceber e representar a vida escolar, as vivências de alunos e professores que passaram por um estabelecimento".

Dessa maneira, parece-nos que o quê diferencia ambas as dimensões é o caráter de estudos sincrônicos com relação à cultura da escola, e uma maior exclusividade concedida à diacronia pelos estudos da cultura escolar. Estes estudos, como aponta a autora,

"... tendem a privilegiar as transformações e impregnações que constituem a vida escolar, reconstituindo a trajetória histórica e social de instituições escolares, a partir de recortes espaço-temporais mais demarcados" (MAFRA, 2003, p. 128-129).

Nessa perspectiva então, a história das disciplinas escolares está mais afeita aos estudos que tem a cultura escolar como seu objeto a investigar. Aliás, esta é também a perspectiva de Juliá (2001), como vimos, muito embora, ele a dirija para a história da educação de forma mais geral, sendo aqui nosso interesse mais restrito à história das disciplinas escolares.

 

A Nova Historiografia da Educação Brasileira: Novas Perspectivas para os Estudos de História das Disciplinas Escolares?

Carvalho (1997), em um trabalho tanto de demarcação de "fronteiras" quanto de balanço da historiografia da educação no Brasil, faz uma severa crítica à obra de Fernando de Azevedo (1976) que, segundo a autora, efetua um tipo de leitura que foi especialmente nefasto para a pesquisa da instrução pública brasileira, e em particular, a do século XIX. A autora, ao fazer a crítica da obra de Azevedo, em especial "A Cultura Brasileira", busca nesse empreendimento tracejar uma nova reconfiguração (em andamento segundo ela) para a História da Educação Brasileira.

Para Carvalho (1997, p. 7) com a obra de Azevedo,

... cristalizam-se representações sobre a educação no Brasil e sua história que tem sido atuantes na configuração da historiografia educacional (...) enquanto dispositivos de rígidos esquemas de enquadramento da disciplina.

A crítica central da autora a essa tradição historiográfica da educação é a leitura a-crítica feita da obra de Azevedo, ao não perceber essa produção como "discurso perspectivado ou posicionado", cujo procedimento produz um tipo de investigação que pré-configura o objeto a ser investigado, na qual o sentido é dado de antemão.

Na seqüência da investigação, como quer Carvalho (1997), efetua-se a busca daquela pré-figuração na série de eventos supostamente investigados, cuja intenção, porém, era desde o início apenas ilustrar aquela significação que já se apresentava como ponto de partida.

Ou seja, é uma forma de proceder, na qual a pesquisa histórica serve apenas para confirmar o que já é sabido teoricamente, em que o historiador não se surpreende com os fatos, ao contrário, com uma certa licença antropomórfica, esses são surpreendidos a priori por uma teoria que lhes imputa sentido e significado, reiterando assim o que foi previamente fixado.

Com isso, não se renova a produção historiográfica, a análise de seus objetos e temas não se traduz em novidades, pois qualquer extração indutiva a partir desses é impedida pelo esquema imperial do sentido pré-fixado. A narração, assim, apenas reitera aquele princípio à exaustão.

Opera-se, com isso, uma espécie de petrificação do campo da investigação. A disciplina deixa de se definir por seus procedimentos, pela partilha e discussão desses procedimentos, por sua relação com problemas historiográficos, para configurar-se apenas pela referência a um campo de investigação e a um objeto rigidamente configurados (CARVALHO, 1997, p8).

Na seqüência de sua crítica, Carvalho (1997, p. 9) afirma que:

... com esses procedimentos, a narrativa de AZEVEDO estrutura um campo bipartido por estruturas temporais paralelas e apenas pontualmente conectáveis, nas quais constrói dois domínios apartados de investigação: o da história das idéias e projetos pedagógicos e o da história da organização dos sistemas de ensino.

No primeiro investiga-se o que deveria ser, e no último o que não foi. Segundo a autora, a mediação desses dois campos, é instituída pela narrativa de Azevedo, como a história do que não houve e deveria ter sido. É na perseguição implacável destes

desacertos descentralizadores da política e idéias educacionais no Império que o anacronismo constitutivo de AZEVEDO produz o apagamento da zona de intersecção entre o instituído e o projetado no campo educacional (CARVALHO, 1997, p. 9).

Sendo assim,

essa espécie de produção do não ser e da carência que perpassa toda a narrativa de AZEVEDO remete ao limbo do desconhecido não somente a história das modalidades não escolares de ensino, como também a das instituições de instrução pública no Império (CARVALHO, 1997, p. 9).

Ainda para ela, as representações, tanto da educação quanto de sua história, produzidas por Azevedo, ainda não foram suficientemente desarticuladas e criticadas.

Também Warde (1984), num trabalho mais antigo, ainda que perceba o problema por outro ponto de vista, antevê em termos tanto quantitativos quanto qualitativos, o prejuízo que o paradigma historiográfico modelado por Fernando de Azevedo legou para os estudos de história da educação, principalmente no século XIX.

Desse modo, as autoras buscam se distanciar o mais possível da perspectiva azevediana de centramento numa história do jurídico-político e das idéias pedagógicas, procurando alargar as fronteiras abertas pela Nova Historiografia da Educação.

Segundo o olhar de Carvalho (1997, p. 6) "uma enorme capacidade de renovar temas e instigar o olhar é o que hoje marca a presença da História da Educação no campo da pesquisa educacional".

Esse empreendimento da nova historiografia da educação brasileira busca sua reconfiguração através de uma reflexão conceitual e metodológica, problematizando seus procedimentos, seu objeto e liberando a disciplina de sua função dominantemente subsidiária da situação de antes (CARVALHO, 1997).

Para tanto, "tem sido importante a interlocução com a historiografia educacional européia" (CARVALHO, 1997, p. 12).

Talvez, em função da ânsia provocada pelo objetivo proposto, o texto de Carvalho (1997) nos parece passar de modo um pouco apressado pelos conceitos que estamos a analisar na presente obra, em especial o de forma escolar.

Sobre estes ela nos diz o seguinte: o de cultura escolar é mobilizado para focalizar "as práticas constitutivas de uma sociabilidade escolar e de um modo, também escolar, de transmissão cultural" (CARVALHO, 1997, p. 11).

O de modelo escolar ela o descreve da seguinte maneira: "como construção histórica resultante da intersecção de uma pluralidade de dispositivos científicos, religiosos, políticos e pedagógicos que definiram a modernidade como sociedade da escolarização" (CARVALHO, 1997, p. 12).

Quanto ao de forma escolar o mesmo nos possibilita, segundo a autora,

"... repertoriar através da disparidade indefinida dos gestos profissionais, as invariantes da intervenção pedagógica, ligadas não aos imperativos de toda transmissão de saberes, mas à 'forma escolar' da transmissão" (CARVALHO, 1997, p. 12).

A intenção de demarcação de uma "fronteira" na historiografia da educação brasileira é clara, e mesmo epistemologicamente legítima, contudo, a importância atribuída na obra "a interlocução com a historiografia educacional européia" (Carvalho, 1997, p. 12), sua apropriação nos pareceu reduzida à historiografia, uma vez que os estudos de alguns autores invocados pela autora, como Guy Vincent, por exemplo, são estudos sociológicos sobre a escola.

Não é nossa intenção aqui sugerir qualquer tipo de insuficiência teórica da historiografia em questão, considerando, é claro, seus objetivos em vista. Ao contrário, nosso questionamento é de que os estudos sobre a história das disciplinas escolares, como nos adverte Vincent; Lahire & Thin (2001), não podem ser reduzidos à historiografia.

Como é sabido, os estudos contemporâneos sobre a educação escolar invocam o novo cânone que deve orientar os mesmos, ou seja, posicionar-se favoravelmente em direção à investigação que visa o interior da escola, cânone consagrado metaforicamente no já famoso anexim da "caixa preta escolar".

Sem desmerecer o novo rifão epistêmico, que tem lá suas razões de ser, já tivemos outros como: "os efeitos agregados da escola"; "a escola como aparelho ideológico do estado" etc., a orientar os estudos sobre a educação escolar, que também tiveram, cada um ao seu tempo, suas razões de ser, de resto, ambos, legítimos.

Contudo, o que buscamos no presente trabalho não foi resolver um dilema entre uma investigação interna à escola versus uma outra exterior à mesma. Menos ainda, tivemos em mente digladiar entre autonomia ou determinismo social da escola, outra querela gnosiológica um pouco de antes.

Ao contrário, em primeiro lugar, nosso intento ao buscar compreender a forma escolar, foi o de entender como a escola se relaciona com o tipo de sociedade na qual ela emergiu e no interior da qual se mantém. Em segundo, uma investigação sobre uma disciplina escolar, por ventura, não dispensa aquele posicionamento que acima nos referimos? Não é a disciplina um produto tipicamente escolar? Por fim, o que tivemos em vista com o sentido das palavras acima, em grande medida foi de procurar evitar qualquer tipo de mal entendido com uma certa (pseudo) vigilância epistemológica contemporânea de tipo dogmática.

 

Considerações Finais

No exercício de análise que ora nos propusemos chegamos a alguns entendimentos, compreensões, que, mesmo que provisórios, nos permitem alguns enunciados sobre a importância da concepção de forma escolar para uma pesquisa em história das disciplinas escolares.

Esta nos possibilita ordenar o uso de conceitos como: modelo e cultura escolar, além de poder pensar o estudo da disciplina escolar como mais afeito aos estudos que tem a cultura escolar como objeto de investigação.

Possibilita evidenciar a necessidade de um estudo sócio-histórico das disciplinas escolares de índole multidisciplinar e plurimetodológica, tanto em razão da complexidade da investigação quanto das insuficiências de uma redução historiográfica do mesmo. Como ainda pensar a escola não apenas como produto de estruturas determinantes de seu modo de ser, mas compreendê-la, também, tanto como produtora e possuidora de esferas com autonomia própria, quanto solidária das transformações do entorno da qual é contemporânea e guarda certa homologia.

Da mesma maneira, a concepção em questão nos permite e ajuda a pensar as hierarquias conceituais de modo mais abrangente, sem confundir rigor com rigidez e reducionismo.

Em particular, as distinções operadas nos permitiram evitar confusões tanto entre os termos em tela, quanto entre forma e instituição escolar no desempenho da pesquisa, bem como conceber a história das disciplinas escolares como produto da forma escolar e objeto de investigação sócio-histórica.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: angelofilomeno@ig.com.br

Artigo recebido em: 25/07/2005
Artigo aprovado em: 02/09/2005

 

 

1 Mestre em Educação pela PUC Minas. Professor adjunto do ISEAT/FHA - Instituto Superior de Educação Anísio Teixeira da Fundação Helena Antipoff.
2 Multidisciplinar é entendido na perspectiva de MORIN (2001).
3 Haveria, pois uma oposição entre uma historiografia das disciplinas escolares versus uma análise sócio-histórica das mesmas? Não nos parece ser esse o problema e sim de dar uma certa ordem às categorias ou aos conceitos em questão.

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