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Escritos sobre Educação

Print version ISSN 1677-9843

Escritos educ. vol.5 no.1 Ibirité June 2006

 

ARTIGOS

 

Sujeito: uma organização complexa?

 

Subject: a complex organization?

 

 

Luiz Roberto Paiva de Faria1 ; Raquel de Souza Lobo Guzzo2

Pontifícia Universidade Católica de Campinas

 

 


RESUMO

O presente artigo discute o conceito de subjetividade a partir de dois enfoques: um, que parte do particular, ou seja, do indivíduo para o social e que aqui denominamos de sujeito psicológico. O outro, que parte do geral, e aqui chamamos de sujeito histórico. Ao demarcar essas duas formas de subjetividade, propomo-nos a discutir a relação dialética que se estabelece entre elas, resgatando, pela psicologia, o sujeito histórico, como forma de acontecer do sujeito psicológico, e, assim, de produção do conhecimento psicológico.

Palavras-chave: Subjetividade; História; Psicologia social; Dialética; Marxismo


ABSTRACT

The present article discusses the concept of subjectivity from two approaches: one that considers the particular one, that is, from the individual to the social one and that we call here psychological subject. The other that considers the generality that we call here historical subject. Demarcating these two forms of subjectivity, we discuss the dialectic relation established between these two forms of subjectivity, rescuing from psychology, the historical subject as a form to be in existence of the psychological subject, and consequently of production of the psychological knowledge.

Keywords: Subjectivity; History; Social psychology; Dialectic; Marxism


 

 

A intenção que move este artigo é discutir os caminhos paralelos que o “sujeito” psicológico e o “sujeito” histórico percorrem. A motivação para escrevê-lo surge do fato de que o modo de ciência que fazemos é reflexo do modo de vida que temos, da sociedade que temos produzido, dos mecanismos sociais de relação e conhecimento. O principal desdobramento desta minha inquietação, aqui exposta, é que, ao conhecer as estruturas básicas de produção deste sujeito, também estaremos expondo um modo de funcionamento da sociedade. O que me inquieta é certa condição do conhecimento científico dentro do universo do conhecimento humano, que o eleva a um lugar soberano, hegemônico – inclusive dentro da própria disciplina, quando teorias em tensão procuram demonstrar quão bem fundamentadas estão em relação às outras, ao explicar e/ou desvelar a realidade.

Um primeiro comentário é sobre o que estamos considerando como sujeito histórico e sujeito psicológico. Basicamente, sujeito é aquele de quem se fala. O leitor poderia considerar que quando eu falo de sujeito nesse sentido, estou falando de objeto da ciência psicológica e da ciência histórica. Poderia considerá-lo assim, mas é neste ponto que reside minha discussão, posto que sujeito não é o objeto, não é redutível à tentativa inglória de submissão a leis gerais, nem permanece o mesmo – o sujeito guarda em si uma “processualidade”, e que nem mesmo podemos dominá-la completamente. Assim, que fique bem claro: sujeito histórico ou psicológico é pessoa, gente como eu e você, que sofre diversas influências, mas que tem algo que faz de mim e de você, se não outra coisa, apenas eu e você genuinamente. Eu e você nos diferenciamos um do outro, e tanto eu quanto você também modificamos e nos tornamos outro, ou outros. Modificamo-nos, inclusive, quando eu e você passamos a nos conhecer. Eu levo um pouquinho de você e você leva um pouquinho de mim. Mas continuamos sendo eu e você, diferente de qualquer outro. Esse é o sujeito.

E como falar de gente psicológica e gente histórica? Pois bem. Eu sou eu e o universo que me acompanha. Dentro de mim, uma multiplicidade de universos que se tocam. Poderíamos entender que esses universos são aspectos da minha vida que, no todo, concedem a mim um modo de vida, um jeito de ser aquilo que eu sou. Os liames são frágeis. Tendemos a pensar o mundo contigüamente, isoladamente. Mas qual a verdadeira fronteira entre você e seu ambiente? E se, especulativamente, você pensasse que é constituído de O2, que esse gás é rico ao redor de sua pele, e por ela penetra ao nível micro celular? Onde está a fronteira? Também pensamos assim em relação a nós mesmos. Quanto de nós há em nós? Todavia há eu e você. Há nós. E há eu em você – e você em mim, se houver um mínimo contato. E mesmo quando não houver, pode haver ainda algum resquício de você em mim, por um universo que eu e você construímos – o universo da cultura.

Então, sujeito psicológico é o cenário interno constituído de múltiplos universos em mim, tornando-me um ser genuíno, e um ser em relação. São diversos os universos, ou aspectos, da vida psicológica do sujeito. Também aqui é difícil impor limites, mas suponho que haja três aspectos maiores pelo qual o sujeito psicológico se manifesta:

O primeiro deles é o cognitivo, sobre o qual repousam as operações mentais ligadas à idéia, ao pensamento, à representação. Ele se desdobra em diversos outros aspectos, tais como a criatividade e a manifestação da inteligência. Dentro deles é difícil impor limites,de modo a diferenciar o que é idéia, o que é pensamento e o que é representação. Um pensamento inclui uma representação, mas não necessariamente é uma idéia, se considerarmos idéia como um final de um processo de pensamento, sua conclusão sobre um problema dado. Uma idéia inclui um pensamento, e nem sempre uma representação pode resultar numa idéia ou pensamento. Embora confuso, o meu argumento é de que há categorias dentro deste campo (e dos outros também) que não se reduzem umas às outras, mas que “trabalham” juntas, se complementam quando necessário, ou se aproximam.

Um outro aspecto do sujeito psicológico é o afetivo. Aqui implicamos uma gama enorme de sensações, sentimentos e emoções que estão presentes na vida interna do sujeito e que, sem dúvida alguma, é elemento importante para dizer que eu sou eu e você é você. Novamente, o campo afetivo inclui uma série de novas categorias que são produzidas sem a interferência do sujeito, tais como expressividade e contato.

Por fim, temos como aspecto marcante do sujeito psicológico o comportamento, entendido como a materialidade desse sujeito. O comportamento é seu estar no mundo, não redutível a agir sobre ele. O comportamento inclui também uma múltipla rede de categorias, incluindo nelas a ação sobre o ambiente, mas também a reação a ele.

Além desses três aspectos da vida psicológica, há ainda outros dois níveis de análise para a constituição do sujeito psicológico, aqui não considerados dicotomicamente, mas numa relação contínua de produção do ser:

O primeiro deles é o nível do indivíduo, da esfera privada e íntima, que se manifesta nos três aspectos da vida psicológica do sujeito, garantindo o “selo da singularidade”.

O segundo, é o nível das relações, tanto as mais imediatas, como os amigos, os colegas de trabalho, família, etc., como as mediatas, tais como as figuras públicas, as representações de papéis sociais, as políticas públicas, as normas de conduta, etc.

Há ainda um outro modo de falar sobre o sujeito psicológico a partir da idéia corrente na psicologia de que o homem é um ser bio-psico-social – e constituímos, então, mais três eixos de análise dos aspectos de vida psicológica do sujeito.

Creio que em um dado momento da história da psicologia todos os teóricos utilizaram algum desses elementos para constituir o seu sujeito psicológico. O que sistematicamente muda são as posições assumidas diante de cada um deles, ora rechaçando, ora aduzindo novos elementos, mas sempre reconfigurando o sistema psicológico proposto em função de um ou outro posicionamento teórico, ou conveniência temática. Freud vai falar dos aspectos afetivos, a partir do biológico, e constituir um aparelho psíquico que produz idéias, sentimentos e ações, e eis seu sujeito psicológico. Já Watson vai constituir um sujeito, também a partir do biológico, cuja idéia central coloca o ser quase como refém do meio (Friedman e Schustack, 1999). Skinner vai considerar os aspectos afetivos, mas sua ênfase é no comportamento observável, ainda que mencione comportamentos encobertos (Friedman e Schustack, 1999).

Enfim, é a esse sujeito psicológico que eu estou me referindo – o sujeito que considera cada teórico a cada tempo que produziu uma “estória” sobre seu sujeito. Consideremos que cada teórico da psicologia é um escritor, talvez um contista, talvez um novelista. Sua teoria é sua estória, sua narrativa. E seu personagem somos nós, pelo qual ele conta sua estória. O que difere o contista do cientista é que esse pretende para sua estória uma argumentação, portanto, uma dissertação... Ao presumir tal tarefa, sua estória tem que ter valor de verdade, ainda que provisória, ainda que submetida ao jugo da crítica. Mas não há como fugir de um modo particular de argumentação, o que o torna incidentalmente um contista. E seu personagem, no caso da psicologia, é o sujeito psicológico. Nesse sentido, podemos falar do sujeito freudiano, do sujeito skinneriano, do sujeito lacaniano, do sujeito gonzalezreiano.

Mas falta falar do sujeito histórico. Do mesmo modo que o sujeito psicológico, sujeito histórico é o sujeito de quem fala a história. Mas também devemos considerar o sujeito que fala a história. Ou seja, o personagem, no caso, é passivo, por estar presente na descrição da história que se considera, mas também é ativo, porque produz história – dizia Marx.

Considerar um sujeito histórico apresenta a dificuldade conceitual de ele próprio estar submetido às vicissitudes do nosso olhar teórico, forjado por nossa cultura, por nossos sentimentos, pelo nosso modo particular de fazer (e se integrar a) história. Para tal tarefa é preciso defender a idéia de que há uma história, e mais, defender que a história é viva, está pelo sujeito e no sujeito.

Quando se pensa em história, imediatamente se associa o conceito de tempo. Leigamente, o passado é foco da análise, como referência do que acontece hoje. Institucionalmente, nas academias, não é assim, porque ali a história é dinâmica. Desse modo, podemos inventariar uma história do futuro, do presente e do passado. Junto com o conceito de tempo, situamos o conceito de espaço. E na interação de ambos registramos o acontecer. Tempo, espaço e acontecer são três elementos que situam o sujeito histórico. A propósito da história, o acontecer não está disponível só para o humano. Ele está disponível para o existente. A existência é o recorte do tempo, do espaço e do acontecer.

Mas há um complicante. O tempo pode ser considerado de diversas formas, e já não é mais explicado em termos lineares, como foi compreendido pela lógica positivista e que ainda inunda os nossos dias com o tic-tac arbitrário dos relógios e compromissos. Hawking (1988) mostra como o tempo ganhou nova interpretação depois da teoria da relatividade:

“Até o começo deste século acreditava-se num tempo absoluto. Ou seja, cada evento poderia ser rotulado por um número chamado “tempo”, de uma forma única, e todos os bons relógios concordariam com o intervalo de tempo entre dois eventos. Entretanto, a descoberta de que a velocidade da luz parecia a mesma a todos os observadores, independente do deslocamento de cada um, levou à teoria da relatividade, e nela foi necessário abandonar a teoria de tempo único e absoluto. Em vez disso, cada observador teria sua própria medida de tempo, como registrada pelo relógio que o conduzisse: relógios de observadores diferentes não precisariam concordar necessariamente. Assim, o tempo se tornou um conceito mais pessoal, relativo ao observador que o estivesse medindo.” (p.143).

Do mesmo modo, o espaço também tem uma implicação diferente na constituição do acontecer e, por conseguinte, na constituição do sujeito histórico. Hawking prossegue:

“Quando se tenta unificar a gravidade com a mecânica quântica, temos que introduzir a idéia do tempo “imaginário”, que é indistinguível do conceito de direções no espaço. Se podemos ir para o norte, podemos também voltar e nos dirigirmos para o sul; da mesma maneira, se podemos ir em frente no tempo imaginário, devemos ser capazes de voltar atrás. Isso significa que não há diferença significativa entre as direções para frente e para trás no tempo imaginário. Por outro lado, quando se assume o tempo “real”, existe uma grande diferença entre essas direções, como sabemos.”

Dentro do quadro geral da historiografia, esses elementos estão também, de alguma forma, contemplados. O jogo de como consideram o espaço, o tempo e o acontecer varia de autor, mas sempre se revela. Como o tempo já não é mais uma noção segura, o acontecer sugere uma ação interpretativa do mundo, e o sujeito histórico, uma construção do real. Agnes Heller (1972) vai considerar o espaço, o tempo e o acontecer pela via da consciência, o que denominou consciência histórica. Para Walter Benjamim (1985), é memória e dialética. Para os teóricos do movimento da “nova história”, é a estrutura, a longa duração, o imaginário (Bloch, 1965). Enfim, o que queremos demarcar é que o sujeito histórico é um sujeito implicado no acontecer histórico. Apropriar-se desse acontecer é tornar-se sujeito de sua história.

Podemos, agora, discutir os dois sujeitos dentro da história da psicologia, procurando brevemente demonstrar que sujeito histórico e psicológico são sombras um do outro. A história é uma luz que ilumina o sujeito psicológico, produzindo, em seu caminhar, sua sombra, o sujeito histórico. A psicologia é uma luz que ilumina o sujeito histórico, produzindo, em seu caminhar, sua sombra, o sujeito psicológico. Não é só um cacoete marxista deste que vos escreve, anunciando uma existência dialética entre esses dois sujeitos. Reconheço nisso um movimento de confrontações e contradições que produzem história e psicologia. Mas também reconheço uma fluidez de um pelo outro. Do contrário, assumiria para mim que esses sujeitos são uns coitados, reféns de sua história e de sua estrutura psicológica. Todavia, há a natureza determinante dele, a despeito de sua natureza determinada. Há eu e você, genuinamente.

Falemos, então, sobre essa relação.

Onde poderíamos encontrar o sujeito psicológico, partindo da tese acima formulada? Somente no sujeito histórico é que se pode observar a sombra, o sujeito psicológico. E é assim que diversos teóricos, que olham para o sujeito histórico, procuram mostrar o sujeito psicológico. Ou seja, procuram demonstrar como que eu e você somos “explicados” no curso de uma ciência em constante construção. E mais que isso: como eu e você, guardando nossa natureza múltipla, “existimos” dentro da teoria.

Dentre os teóricos que trabalham a manifestação dessa “existência”, estão Gonzalez Rey (2003), Robert Farr (1998), Guatarri(1984), Koch (1992), Danziger (1990), Gomes Penna(1991), Luís Cláudio Figueiredo(1991). Olharam o sujeito psicológico, da forma como o defini aqui, pela sombra do sujeito histórico.

O momento fundador da psicologia parece ter sido o da escola de Wundt, concorda a maioria destes teóricos. O sujeito psicológico de Wundt é um sujeito em nascimento. O sujeito histórico é o da consolidação do capitalismo industrial, da revolução burguesa na produção, e o resultado disso é a ênfase no controle da natureza. A intenção é a busca da ordem das coisas naturais em favor do progresso e do conhecimento. Gonzalez Rey (2003) lembra que:

“No laboratório de Leipzig, onde Wundt desenvolvia seu trabalho, mantinha-se uma preocupação, por ele próprio enfatizada, com a defesa da especificidade do objeto da psicologia como ciência, em relação ao qual Wundt mostrou um interesse muito maior que a maioria dos psicólogos que o sucederam” (p.01).

Wundt surge na história da psicologia como continuum de um pensamento quantificador, presente na Alemanha de seu tempo, que procura balizar os campos científicos emergentes em favor de uma psicologia científica. No entanto, ele não pretende abandonar seu percurso filosófico, por assim dizer, na medida em que procura investigar o funcionamento mental, ainda que não muito bem definido em seu delineamento teórico. Figueiredo (1991) afirma o seguinte:

“A possibilidade de submeter os fenômenos psíquicos aos procedimentos matemáticos, de forma a criar-se uma psicologia empírica, foi expressamente negada por Kant com a alegação de que estes fenômenos não se prestavam à análise e à observação e só tinham uma dimensão, a temporal, quando a mensuração de um processo exige duas dimensões, a temporal e a espacial“(p.47).

Kant, filósofo alemão, é citado por Figueiredo porque correspondeu a um momento da história que procurava refletir sobre a produção do conhecimento. Ele não acreditava no acesso imediato às coisas, que ele chama de coisa em si, e o conhecimento, de coisa para nós. O acesso às coisas era dado pela razão. Continua Figueiredo:

Não obstante, o projeto de uma psicometria apareceu já no século XVIII na obra do filósofo alemão Christian Wolff, que esperava desta nova ciência a mensuração de graus de prazer e desprazer, perfeição e imperfeição, certeza e incerteza. O problema da medição, contudo, não era resolvido por Wolff, e assim permaneceria durante muito tempo”( p.47 ).

Figueiredo ainda expõe várias tentativas de sistematizar uma psicometria, a partir de várias estratégias e objetos do humano, para revelar o caráter distintivo da psicologia experimental de Wundt:

“Mediante a obra de outro fisiólogo convertido em psicólogo, W. Wundt (1832-1920), a psicologia experimental foi acrescentada de um novo procedimento e de novas preocupações com os estudos da duração dos fenômenos psíquicos (...). Nos delineamentos de Wundt e Donders o objetivo já não era, portanto, o de estabelecer as equivalências psicofísicas, mas a de medir os fenômenos mentais em si”(p.50 ).

O que é necessário assinalar, para o momento histórico dado, é que o conhecimento é construído pela apreensão sistemática do objeto, de modo a dar visibilidade a essas formas de conhecer a realidade. As necessidades históricas, em certo sentido, convidam os teóricos a seguirem determinados caminhos, e essa é justamente a razão pela qual o sujeito histórico precisa emergir. Por exemplo, Farr (1998) diz que Wundt estabeleceu três tarefas para sua vida: “a) uma psicologia experimental; b) uma metafísica científica e c) uma psicologia social”. Obviamente, essas metas não foram deliberadamente constituídas, mas seguiram um curso próprio na carreira de Wundt. Se olharmos para a Alemanha de Wundt, vamos nos deparar com uma Europa em desenvolvimento econômico e tecnológico aquecido. França, Inglaterra e Alemanha têm histórias de desenvolvimento peculiares. Os dois primeiros encontraram menores barreiras ao desenvolvimento econômico, por sua geografia, e pelo “acolhimento” dado à burguesia desses países. Já a Alemanha era um país dividido, em processo de unificação, e o seu desenvolvimento científico-tecnológico era uma via de acesso ao desenvolvimento econômico. Kahhale e Adrianni (2002) assim colocam este período:

“O pensamento científico no início do século XIX mostrava-se fundamentalmente desenvolvido na Inglaterra, França e Alemanha. Justifica-se a localização de pontos férteis para o desenvolvimento científico em tais países, pela tentativa de alcance de progresso econômico e tecnológico vivida por eles, o que culminou em amplas estratégias de incentivo e financiamento de pesquisas. A Alemanha teve estratégias de incentivo ao desenvolvimento cientifico e tecnológico ainda mais intensas que os demais países citados, dada a necessidade de equiparar-se a eles em termos de progresso econômico, uma vez que vivia um considerável retardo devido ao seu lento processo de unificação. A Alemanha ofereceu uma ampla abertura às ciências relacionadas principalmente à biologia, através da denominada Fisiologia Experimental.(p.35 )”

Assim, uma psicologia experimental era necessária para responder à exigência de uma disciplina bem delimitada, e fazer frente ao debate vigente na época; uma metafísica era necessária, para responder às inquietações do próprio Wundt e de outros pensadores contemporâneos dele, que discutiam a construção do conhecimento e a dificuldade de submeter o aspecto humano ao jugo da experiência; e uma psicologia social que atendesse à demanda histórica de entender os conflitos decorrentes de uma sociedade tão heterogênea como a alemã.

Wundt é exemplo de como sujeito histórico e sujeito psicológico se encontram num mesmo debate. E seria conveniente uma breve análise de como eles se relacionam hoje para construir o conhecimento, em geral, e o conhecimento psicológico, em particular.

 

A construção do sujeito globalizado

Quando me pergunto: “Que psicologia é essa que temos hoje?” procuro garimpar aquilo em que a psicologia nos toca, a todos nós. Os movimentos de nosso próprio tempo.

A conjuntura é complexa:

a) O mundo anda “globalizado”: o avanço tecnológico otimizou a produção de bens, minimizando a força de trabalho. O desemprego também é global.
b) Como a sociedade se estruturou na exploração da força de trabalho para produzir o capital, e como cada vez menos a força de trabalho é necessária, cada vez mais cresce a massa de excluídos.
c) Como o capital também se globalizou, e diante da necessidade cada vez menor da força de trabalho, o Estado se isenta de intervir na realidade social.
d) Diante da escassez de oportunidades de trabalho, e da isenção do estado sobre a vida das pessoas, configura-se um quadro de competitividade.
e) Diante de um quadro de alta competitividade, a ênfase nos resultados sobre os processos, nos indivíduos sobre a comunidade, do privado sobre o público.

Mance (1998) discute, a partir dos pressupostos de Guatarri, a maneira particular que o capitalismo atual produz subjetividade. Discorre sobre subjetividade, lançando-nos ao conceito a partir de uma conjectura comum; a de que a subjetividade seria a condição do sujeito capaz de agir sobre o mundo de maneira autônoma. Todavia, retoma o conceito guatarriniano (Guatarri, 1987), em que a condição de sujeito está associada a uma produção de significado. Assim, a subjetividade seria uma instância social que permeia modos de ser e agir organizados dentro da lógica social. Essa, por sua vez, é marcada por uma dinâmica produtiva capitalista, burguesa. São temas bastante fecundos nos apontamentos e artigos de Guatarri, as diversas formas de produção do sujeito. É um sujeito histórico, por ser moldado pela cultura e condições concretas/materiais de existência, mas também um sujeito relacional e afetivo, desejante e processual. Como subjetividade, ele propõe a idéia de: “Uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida.” (p.25).

Opõe à subjetividade o conceito de singularidade, que seria:

“... uma maneira de recusar todos esses modos de encodificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomandos, recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos. Há assim algumas palavras cilada como a palavra cultura, noções anteparo que nos impede de pensar a realidade em questão". (p.17).

Mance (1998) é enfático neste ponto. O sujeito, posto como existência, é resultado de diversos aspectos da sua existência: o universo da cultura, da moral, da ideologia (no sentido marxista), das necessidades naturais etc. Esse processo o autor chama de individuação. E, novamente, a partir de Guatarri, ele assinala dois modos de produção da individuação. O primeiro deles é o da individualização em que os sujeitos cedem às pressões sociais às quais estão integrados. Cedem à idéia de poder, de competição, dentro da estrutura capitalista de produção, dentro de uma rede cultural hegemônica a serviço desta estrutura social. O segundo modo de individuação é a singularização, conforme descrita acima pelo próprio Guatarri (p. ).

Dentro do campo de análise da produção de subjetividade, em que a produção de sentido acontece junto à produção de bens e serviços, a globalização trama uma intrincada relação entre sujeitos, de tal modo que sujeito histórico escreve uma nova história, tendo por conseguinte o sujeito psicológico dentro de uma nova “psyché”.

Nesse sentido, para Mance, a própria produção do conhecimento é elemento necessário ao pleno desenvolvimento do capitalismo. Ele escreve:

Neste capitalismo globalizado, estamos frente a um aparente paradoxo. Se a fantástica terceira revolução tecnológica ampliou espetacularmente a produtividade, se é maior a produção de riqueza, porque juntamente com os indicadores de crescimento econômico também aumenta o número de pobres enquanto a riqueza se concentra cada vez mais nas mãos de uma parcela cada vez menor? A resposta é elementar: o capital precisa, cada vez menos, de trabalho-vivo para produzir cada vez mais capital.
O poder do conhecimento em aumentar a produtividade, inovando nas tecnologias, gerou a situação em que dá mais lucro ao capital explorar menos trabalho-vivo, isto é, manter menos trabalhadores empregados. Este fenômeno que Marx supôs nos Grundrisse em 1857 - mas não desenvolveu em “O Capital” porque não pretendia falar do futuro, mas apenas explicar cientificamente a economia de sua época - descrevendo-o como Disposable Time ou Nicht-Arbeitszeit (55), isto é, como o tempo disponível ou tempo de não-trabalho que o capital não pode mais empregar produtivamente de modo competitivo porque a ciência se tornou a grande fonte produtora da riqueza abaixando o tempo médio de trabalho necessário à produção das mercadorias, sendo a incorporação da tecnologia o diferencial entre a vida e a morte da empresa capitalista na competição do livre-mercado, é o que assistimos hoje. (p.04)
E mais do que isso, a produção intelectual engendra não apenas modos diversos de produzir bens e serviços, mas também novos modelos de produção de intelectualidade, de afetividade, de comportamentos serializados. Mance chama atenção para isso também, ao falar do valor de uso e troca virtuais dados por alguns elementos, tais como a publicidade, a venda de informações e as aplicações financeiras (p.05).

De fato, tudo é uma questão de momento histórico. Houve um tempo em que o sujeito foi sufocado pelas aspirações coletivas, a era dos clãs, depois dos feudos; mas isso criou as condições para a emergência do sujeito, do espaço privado, dos sentimentos particulares. A radicalização do ideário burguês condicionou a produção do indivíduo - uma espécie de sujeito “coisificado” e, portanto, suscetível à manipulação das forças governistas.

A idéia desse sujeito “coisificado” é mortificante. A idéia de uma psicologia que trata de pessoas como objetos também o é. Por outro lado, a idéia oposta, de um sujeito “massificado”, também não é agradável, também violenta o sujeito, e, por comparação, uma psicologia que trata de pessoas como uma massa sem rosto também não é agradável.

Sujeitos psicológicos e históricos são a mesma pessoa. Portanto, os diversos sujeitos que cada teórico traz à luz devem nascer de uma postura crítica, tanto quanto humilde por estar à mercê de uma sombra histórica. Devem antes conversar entre si, sentar-se à mesa de nossas divagações, e abrir-se ao outro. Devemos repetir, no nosso cotidiano não acadêmico, o gesto libertador de saber ouvir e saber falar.

Há, contudo, uma psicologia que me conforta. Nessa, partindo das condições concretas do sujeito, eu talvez possa ajudá-lo a compreender sua relação com o mundo não mais a partir dos objetos, mas a partir dos outros sujeitos. Nessa, talvez eu possa ajudar a reconhecer seu rosto alhures, em outras pessoas. Nessa psicologia, talvez eu possa fazê-lo libertar-se da condição de “coisa”, resgatando a dimensão mais humana de sua relação com o outro. Nesta psicologia, talvez eu possa finalmente confessar que sim, eu também ajudei a produzir história, embora isso não fosse mérito meu, mas das relações que participei e dos conhecimentos psicológicos que delas extraí.

Uma psicologia que possa, finalmente, tocar (e dialogar com) qualquer um...

 

Referências

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Rey, Fernando Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. SP: Thomson, 2003.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 17/03/2006
Aceito em: 30/04/2006

 

 

1 Doutorando do programa de Pós-Graduação em Psicologia: Ciência e Profissão da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Psicólogo. Pesquisador financiado com recursos do programa de fomento à pesquisa do CNPq. E-mail: luizroberto.psi@bol.com.br
2 Professora do programa de Pós-Graduação em Psicologia: Ciência e Profissão da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Psicóloga. E-mail: rguzzo@mpc.com.br

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