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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.1 São Paulo jun. 1990

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Socialização: um problema de mediação?*

 

Socialization: a problem of mediation?

 

 

Jerusa Vieira Gomes

Profª, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Apresenta uma tentativa de aproximação entre as abordagens de SARTRE (1960), BERGER & LUCKMANN (1976) e ERIKSON (1976) no que tange ao processo de socialização, a partir da idéia da mediação no que tange ao processo da socialização, a partir da idéia da mediação. Faz, ainda uma análise da mediação em camadas subalternas, procurando ressaltar as suas especificidades, em camadas subalternas, procurando ressaltar as suas especificidades.

Descritores: Psicologia Social


ABSTRACT

This article presents a tentative approach among SARTRE's (1960), BERGER' & LUCKMANN's (1976) and ERIKSON's (1976) theories of the socialization process through the concept of mediation. It also presents an analysis of the socialization process in Brazilian popular classes.

Index Terms: Social psychology.


 

 

Duas questões têm recebido a atenção dos investigadores sociais da latino-américa, nos últimos anos: a primeira, mais antiga e ampla, refere-se às precárias condições de vida das camadas subalternas, e suas conseqüências sobre a vida familiar e, especialmente, sobre a criança, o chamado "menor".

A segunda, mais recente e restrita às áreas da Psicanálise e da Psicologia em geral, refere-se à tentativa de criar uma Psicologia impropriamente denominada Psicologia marxista.

Neste artigo, pretendo desenvolver algumas idéias, levantar alguns problemas teóricos, envolvidos nas questões acima, a partir da análise do processo de socialização.*

Move-me a certeza de que o estudo da identidade, dos papéis sociais, do trabalho, da marginalidade e criminalidade infanto-juvenil e adulta, e de muitos outros aspectos da vida humana, tão caros aos pesquisadores contemporâneos, exige uma compreensão prévia do processo socializador. Sem isto, o mais restará dissociado e, nessa medida, sem sentido.

Na verdade, há anos venho procurando desvendar o intrincado processo de socialização — quer ao nível teórico, quer ao nível prático, de pesquisa. Assim, as idéias aqui propostas decorrem desse trabalho. Minha expectativa é de que tenham alguma valia.

 

1. A Mediação: uma tentativa de aproximação

Referí-me, linhas atrás, à impropriedade de se denominar marxista uma psicologia, porque não acredito seja isto pertinente. Há sim, desde os anos vinte, teóricos que têm procurado conciliar algumas idéias básicas do pensamento marxista com, principalmente, alguns dos principais postulados da Psicanálise. Exemplo recente temos em LORENZER (1976), que assumiu tal desafio, no estudo da socialização.

Desconhecia o trabalho de Lorenzer, quando empreendi uma tentativa bem mais modesta, também no estudo da socialização. Todavia, descobri-lo serviu, de um lado, para aprofundar minhas reflexões. De outro, para reafirmar a confiança na trilha escolhida e perseguida — diversa da apresentada por ele —, porque não encontrei justificativa para abandonar a minha busca particular. Encontrei, sim, a reafirmação da importância de se estudar a mediação, seja qual for o enfoque.

De fato, o que venho procurando, há anos, é conciliar três diferentes concepções da socialização, a saber: a de BERGER & LUCKMANN (1976) - vinculada ao materialismo dialético -, a de ERIKSON (1976) - com fundamento na psicanálise - e a de SARTRE (1960) - fenomenológica.

A necessidade de conciliá-las decorre, acredito, do reconhecimento da importância de cada uma, sem, no entanto, considerar qualquer delas, sozinha, capaz de esclarecer o processo em causa. Conjugando-as, talvez, encontremos uma possibilidade de melhor compreender o que se desenvolve sob o rótulo de socialização.

BERGER & LUCKMANN — analisando o processo sob a ótica da Sociologia do Conhecimento — definem a socialização como a "ampla e consistente introdução de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela." (1976, p. 175).

Longe de conceberem tal processo como mecânico, partem da relação dialética homem-sociedade que, para eles, implica três momentos: interiorização-objetivação-exteriorização. A interiorização corresponde ao momento privilegiado da socialização. É um mundo já posto, com uma configuração estabelecida — uma vez que sua existência precede a existência individual — que haverá de ser interiorizado e assumido pelo novo membro. E evidente que interiorizar supõe objetivá-lo e a ele responder, exteriorizando-se.

Cada um pode, de acordo com suas próprias percepções e idiossincrasias — que vão, pois, determinar sua interiorização, objetivação e exteriorização — aceitá-lo ou recusá-lo. Mas a ninguém é permitido anulá-lo; podemos até destruí-lo, mas não podemos fazer de conta que não existe.1

Para algumas pessoas esta parece uma análise mecânica. Tal suposição, se verdadeira, negaria a própria característica dialética assumida pelos autores. Se não é mecânica pode, todavia, ser uma análise bastante cruel, porque desvenda a situação do homem no mundo e, nessa medida, nega a possibilidade de qualquer romantismo pseudo-científico. É cruel ou real? Não sei, apenas é.

A relação dialética homem-sociedade, defendida pelos autores, impõe que se pense o mundo real, concreto. Nesse mundo, não é a criança quem estabelece as condições de sua existência, essas são um a priori. É nesse e com esse a priori que cada um de nós se desenvolve e interage (ou se debate?).

Parece evidente que a criança — não sendo concebida como uma tábua rasa — apresente peculiaridades específicas na maneira como apreende o, e reage ao, mundo físico e social circundante. Contudo, não há como negar o a priori de sua condição existencial primeira. Portanto, mesmo considerando-se a unicidade e originalidade de cada pessoa, tudo isso só existe em relação a condições previamente estabelecidas sem a sua participação. Desse modo, a sua própria possibilidade de ser original e única decorre de tais condições.

Para BERGER & LUCKMANN,2 a relação da criança com o mundo social é mediada pelos adultos encarregados de sua educação: os outros significativos. Por outro lado, a relação entre eles — adulto-educador e criança-aprendiz — é mediada pela subjetividade particular de ambos.

Não cabe aqui desenvolver a idéia da inter-subjetividade envolvida na socialização. Importa, todavia, ressaltar que muito embora o mundo social seja real, concreto, objetivo, ele é, de um lado, percebido e transmitido de maneira subjetivada pelo adulto e, de outro lado, ele é percebido e interiorizado pela criança, também de maneira subjetivada. Assim, podemos considerar a socialização como um processo caracterizado por relações inter-subjetivas, como aliás, todas as relações humanas o são.

O que torna única a interação aqui considerada — e aumenta o grau de subjetividade nela envolvida — é o fato dela ocorrer em um clima carregado de emoção.3 Na verdade, adulto e criança, no decorrer da socialização, longe de serem dois estranhos interagindo via suas subjetividades particulares, são duas pessoas ligadas por um forte laço emocional. O fato dessa aprendizagem ter por base a emoção parece suficiente para explicar a permanência do conteúdo interiorizado no decorrer desse processo.

Retomemos, agora, a idéia acima exposta: os outros significativos como os mediadores entre a criança e o mundo social. De fato, são eles que estabelecem as condições iniciais de vida da criança (o a priori infantil). É na relação com eles que a criança faz a sua aprendizagem de ser social que nada mais é, segundo Sartre, do que a sua aprendizagem de ser em situação.

Para SARTRE, a única possibilidade de se vir a compreender o adulto em que nos tomamos reside na análise das condições em que se dá a mediação, e das características dos mediadores específicos.

Para ele, "... de fato, o materialismo dialético não pode se privar por mais tempo da mediação privilegiada que lhe permite passar de determinações gerais e abstratas a certos traços do indivíduo singular." (1960, p.56)

Sartre vai ainda mais longe, ao afirmar: "o existencialismo crê, ao contrário, poder integrar este método porque ele descobre o ponto de inserção do homem dentro de sua classe, isto é, a família singular como mediação entre a classe universal e o indivíduo: a família, de fato, é constituída no e pelo movimento geral da História e vivida, de outra parte, como um absoluto na profundidade e na opacidade da infância." (p. 57)

Dessa maneira, é a família — através de seus membros adultos, os mediadores — quem insere o homem em sua classe e, assim, na sociedade.

Em concordância com a afirmação sartreana, e deixando ainda mais nítida a especificidade dos grupos familiares, BERGER & LUCKMANN (1976) lembram:

Os outros significativos que estabelecem a mediação deste mundo para ele modificam o mundo no curso da mediação. Escolhem aspectos do mundo de acordo com sua própria localização na estrutura social e também em virtude de suas idiossincrasias individuais, cujo fundamento se encontra na biografia de cada um. O mundo social é 'filtrado' para o indivíduo através desta dupla seletividade. Assim, a criança das classes inferiores não somente absorve uma perspectiva própria da classe inferior a respeito do mundo social, mas absorve esta percepção com a coloração particular que lhe é dada por seus pais (ou quaisquer outros indivíduos encarregados da sua socialização). A mesma perspectiva da classe inferior pode introduzir um estado de espírito de contentamento, resignação, amargo ressentimento ou fervente rebeldia.

Como conseqüência uma criança da classe inferior não somente irá habitar um mundo grandemente diferente do que é próprio da criança de uma classe superior, mas pode chegar a ter um mundo inteiramente diferente daquele da criança de classe inferior que mora na casa ao lado. (p. 176)

Portanto, o que preconizava Sartre — o uso da idéia da mediação pelo materialismo dialético — foi, e com muita propriedade, realizado por BERGER & LUCKMANN, aproximando as duas abordagens. Assim, para todos eles, dizer que o homem se transforma em um ser social é o mesmo que dizer que ele — situado no mundo em função da posição ocupada por sua família na estrutura social existente — incorpora o mundo social vivido e apreendido pela família singular a que pertence. Dessa maneira, é através da família (onde em nossa sociedade se encontram, em geral, os outros significativos, os mediadores) que os diversos meios sócio-culturais, e as diferentes classes, deverão produzir crianças e adultos também diferentes.

O pesquisador da Psicologia Social, que se proponha estudar a socialização sob este enfoque, depara-se com a imperiosidade de analisar os três angulos da questão: o mundo social imediato, a ser interiorizado pela criança; a família que, além de ser a mediadora, tem especificidades que a distinguem de qualquer outra; a criança que, sujeito da aprendizagem social, interiorizará o mundo mediado a partir de suas próprias idiossincrasias e de maneira singular e solitária.

Impõe-se, então, a pergunta: que abordagem psicológica seria de mais valia a tal pesquisador, de modo a ajudá-lo a melhor compreender o processo em causa, do ponto de vista da criança que o vivência?

SARTRE apontou um caminho, acentuando a importância da psicanálise, à medida que ela.

De fato, é um método que se preocupa, antes de tudo, em estabelecer a maneira pela qual a criança vive suas relações familiares no interior de uma sociedade dada. E isto não quer dizer que ela coloque em dúvida a prioridade das instituições. Ao contrário, seu objeto depende, ele mesmo, da estrutura de tal família particular e esta não é mais que uma certa singularização da estrutura familiar própria a tal classe, dentro de tais condições. (1960, p. 87)

A Psicologia oferece-nos, través de Erikson, uma valiosa alternativa, com a, hoje clássica, associação de Psicanálise à Antropologia. Esta é uma teoria que resultou de observações clínicas e de pesquisa de campo desenvolvida em duas comunidades indígenas norte-americanas. ERIKSON (1976), ao relatar a pesquisa, o faz de maneira detalhada, abrangendo os dois aspectos básicos: social e individual. O autor concebe o desenvolvimento psico-social em fases progressivas. A aprendizagem que se processa em cada uma delas é, para ele, condicionada pelas características culturais. Coerente com o referencial psicanalítico, Erikson admite não só a mediação criança-mundo, mas a particulariza na figura materna.

Ambas, cultura e mediação materna são, sistematicamente, realçadas pelo autor:

A medida que aumenta o raio de percepção, coordenação e sensibilidade da criança, ela enfrenta os padrões educativos da cultura de sua sociedade e aprende assim as modalidade básicas da existência humana, cada uma delas em padrões pessoal e culturalmente significativos. (...) Obter (quando não é 'ir buscar') significa receber e aceitar o que é dado. Esta é a primeira modalidade social que se aprende na vida; e parece mais simples do que na realidade é, pois o hesitante e instável organismo do recém-nascido adquire essa modalidade só quando aprende a regular seus sistemas de órgãos de acordo com a forma em que a ambiência materna integra seus métodos de cuidado infantil.

É claro, então, que a situação total ótima implícita na disposição do recém-nascido de obter o que lhe é dado é sua regulação mútua com a mãe que lhe permite desenvolver e coordenar seus meios de obter à medida que ela desenvolve e coordena seus meios de dar. (p. 67)

Em outro momento, Erikson afirma de maneira mais categórica:

O firme estabelecimento de padrões duráveis para a solução do conflito nuclear da confiança básica versus a desconfiança básica, na simples existência, é a primeira tarefa do ego e, portanto, antes de tudo, uma tarefa para o cuidado materno. Mas, basta dizer aqui que a soma de confiança derivada das primeiras experiências infantis não parece depender de quantidades absolutas de alimento ou de demonstrações de amor, mas antes da qualidade da relação materna. As mães criam em seus filhos um sentimento de confiança por meio daquele tipo de tratamento que em sua qualidade combina o cuidado sensível das necessidades individuais da criança e um firme sentimento de fidedignidade pessoal dentro do arcabouço do estilo de vida de sua cultura. Isso cria na criança a base para um sentimento de identidade que mais tarde combinará um sentimento de ser 'aceitável', de ser ela mesma, e se converter no que os demais confiam que chegará a ser. Portanto (dentro de certos limites previamente definidos como os 'deve' do cuidado infantil), há poucas frustrações nesta ou nas etapas seguintes que a criança em crescimento não possa suportar, contanto, que a frustração conduza à experiência sempre renovada de uma maior uniformidade e de uma continuidade mais acentuada do desenvolvimento no sentido de uma integração final do ciclo de vida individual com uma mais ampla pertencividade significativa. Os pais não se devem limitar a métodos fixos de orientar por meio da proibição e da permissão; devem também ser capazes de afirmar à criança uma convicção profunda, quase somática, de que tudo o que fazem tem um significado. Enfim, as crianças não ficam neuróticas por causa das frustações, mas da falta ou da perda de significado social nessas frustrações (1976, p. 229)

Emerge, do acima exposto, a vinculação clara entre figura materna, formação da estrutura psíquica básica e características culturais. É na relação com a mãe — e eu diria com as figuras parentais e familiares próximas — que a criança faz a sua aprendizagem do social e organiza as bases de seu psiquismo.

Portanto, ao final do processo de socialização ela, a criança, não só domina o mundo social circundante, já incorporou os papéis sociais básicos — seus e de outros, presentes e futuros — mas, acima de tudo, já adqiriu as características fundamentais de sua personalidade e da identidade. Tudo isso, na verdade, estava a se desenrolar acompanhando o processo de socialização. E só é possível por intermédio da mediação, porque a criança imatura não tem condições de prescindir dela.

Descartemos, agora, a ênfase na figura materna. Dito de maneira mais branda, relativizemos aquilo que só faz sentido numa sociedade com uma organização social semelhante à nossa4. Aliás, basta reportarmo-nos a ARIÈS (1978) e POSTER (1979): a educação infantil como atividade primordial materna é fruto da emergência da chamada família burguesa.

Posto isto, podemos retomar o conceito de outro significativo, de Berger e Luckmann: aqueles que estabelecem a mediação criança-mundo, conforme vimos no início deste trabalho. Seja a mãe ou o pai, os irmãos mais velhos, os avós, ou mesmo não parentes con sangüíneos mas que desempenhem a função de educar a criança constituem, para ela, os seus outros significativos. E, nessa medida, fazem a mediação entre ela e o mundo.

Embora sem pretender adentrar a sua teoria, há uma afirmação de LORENZER (1976) que se aplica com propriedade a todo e qualquer outro significativo, apesar dele a fazer em um contexto teórico diverso:

O que a mãe simplesmente 'é' se resolve em sua biografia. A interação que ela oferece a seu filho, isto é, a práxias concreta de interagir, é produto de sua própria práxis de vida. Por fim, seu interagir pertence às formas de interação de sua própria práxis enquanto está incluída na ação da sociedade global. Dito brevemente: as formas de interação da mãe são expressão de sua experiência na socialização secundária, que não abandona o indivíduo até sua morte.

Porém, esta socialização secundária se constitui sobre a base da socialização primária da mãe; descansa então no processo de socialização que a mãe cumpriu em sua infância, na díade mãe-filho de seu próprio desenvolvimento. Isto nos remete à mãe da mãe e a seus familiares, e ao processo dialético de apropriação e mediação entre natureza interior e formas de interação por ele oferecidas que atravessou a geração anterior. Desde logo, também podemos decompor a biografia desses familiares da segunda geração, e assim sucessivamente até recorrer todas as mediações. (p. 43).

De fato, a biografia de cada um é construída na interação constante entre os elementos que compõem uma família particular, e só nela faz sentido e se explica. E isto já o vimos em Sartre: é a família de cada sujeito quem o insere na classe específica, com as peculiaridades que a caracterizam (o que implica, inclusive as modalidades e a qualidade das interações entre seus membros). No futuro, a história pessoal (biografia) escapa aos limites estreitos da família original, enriquecendo-se. Não escapa, porém, a suas determinações iniciais: a base e o filtro das vivências posteriores.

Pois não é, de início, nem a renda fundiária, nem a natureza estritamente intelectual de seu trabalho que faz de um Flaubert um burguês. Ele pertence à burguesia porque nasceu nela, isto é, porque apareceu no meio de uma família já burguesa e cujo chefe, cirurgião em Rouen, era arrastado pelo movimento ascensional de sua classe. Se ele raciocina, se sente como burguês, é que o fizeram tal, numa época em que ele não podia nem sequer compreender o sentido dos gestos e dos papéis que lhe impunham. Como todas as famílias, esta família era particular: sua mãe era aparentada com a nobreza, seu pai era filho de um veterinário provinciano, o irmão mais velho de Gustave, em aparência mais dotado, foi desde cedo o objeto de seu rancor. É, pois, na particularidade de uma história, através das contradições próprias desta família, que Gustave fez obscuramente o aprendizado de sua classe. (SARTRE, 1960, p. 54-55)

Sartre legou-nos uma frase lapidar, a síntese do predomínio da mediação familiar: "Valéry é um intelectual pequeno-burguês, não há dúvida. Mas, nem todo intelectual pequeno-burguês é Valery." (p. 53)

Reconstituir uma história pessoal — de Valéry, Flaubert e Baudelaire, como o fez Sartre — implica reconstituir a história de uma família particular, em suas gerações sucessivas. Nessa medida, acaba sendo uma reconstituição das mediações. Mediações realizadas por aqueles que, para a criança, eram os outros significativos. É interagindo com eles que a criança faz a sua aprendizagem dos papéis sociais básicos e constrói os alicerces de sua personalidade e da identidade5.

Destarte, parece-me consistente a aproximação entre as teorias aqui analisadas. Em resumo, enquanto Sartre supõe a família como mediadora; Berger e Luckmann referem-se aos outros significativos — que podem ou não ser parentes consangüíneos —, e à família deles; para Erikson a mediação é materna. De todo modo, o estabelecimento da mediação como o cerne do processo de socialização une posições na aparência, e talvez mesmo só na aparência, tão díspares.

A análise da socialização segundo o enfoque aqui proposto deverá permitir-nos melhor compreender que tipo de homem — e nessa medida, que tipo de personalidade — está sendo formado na sociedade urbano-industrial.

Para tanto, impõe-se aprofundar o conhecimento sobre as modalidades de organização familiar, e da sua dinâmica interna, nas diferentes camadas sociais. Impõe-se, sobretudo, conhecer a maneira como se realiza a educação da criança, no interior dessas famílias e classes6.

 

2. A especificidade da Mediação em Camadas Subalternas

Posto o problema teórico da mediação, retomemos, agora, a questão que serviu de abertura ao presente artigo: as condições de vida das camadas subalternas (ou pobres, ou de baixa renda) e suas conseqüências sobre a vida familiar e, especialmente, sobre a criança.

Nos grandes centros metropolitanos, as camadas pobres são, em grande parte, constituídas por uma população de origem rural, os genericamente denominados migrantes.

Não cabe aqui adentrar as inúmeras causas dos movimentos migratórios — os fatores de expulsão e de atração —, já exaustivamente discutidos pelos investigadores sociais.

No que tange à Psicologia Social, são vários os aspectos da vida do migrante que merecem a atenção. Mas, quando tanto se fala na criança, no menor, das camadas pobres, investigar a socialização aparece-me como primordial, dada, principalmente, a peculiaridade do agente socializador — portanto, da mediação —, bem como da situação em que ela transcorre.

Todavia, em consonância com o ponto de vista teórico aqui assumido, há que se conhecer, antes de tudo, a família. Situá-la na estrutura de classes, embora fundamental, não é o bastante. Torna-se imprescindível conhecê-la em sua organização e dinâmica internas.

Os bairros pobres revelam, na verdade, a permanência da família conjugal. Esta, no entanto, apresenta uma estreita relação de interdependência com a família de origem, os grupos de parentesco e, principalmente, de vizinhança7.

A familiaridade com um bairro periférico tem-me permitido observar, ao longo dos anos, a pertinência da afirmação acima. Mais que isso, o quanto o dia-a-dia é compartilhado, em sua quase inteireza, por aqueles que lá permanecem durante o dia e pelos demais — os que trabalham fora —, no retorno à casa e nos dias de não trabalho. Fechar a porta talvez seja mais um ato simbólico, porque não impede a entrada e saída de parentes, vizinhos e amigos. Parece inexistir, sobretudo, qualquer noção ou sentimento de privacidade, tão caros às famílias dos estratos médios e altos urbanos.

Quanto à organização e dinâmica internas essas famílias revelam uma grande ambigüidade. A distribuição da autoridade, na aparência, parece obedecer ao modelo clássico, ou seja: do mais velho ao mais moço, do homem à mulher. O mesmo vale para os papéis sociais, que parecem seguir a ancestral distribuição sexual. Todavia, em ambos — distribuição da autoriade e dos papéis — a vida urbana acarretou profundas modificações.

Como o diz DURHAN, (1976) a inversão da hierarquia ocupacional — à medida que melhores oportunidades são oferecidas ao mais jovem, escolarizado — provoca uma inversão na hierarquia de autoridade (p. 201-208).

Além disso, a adaptação da mulher às regras do trabalho fabril, competitivo; a conquista de sua autonomia, requerida pelas novas regras de luta pela sobrevivência; o seu contacte com a patroa, no caso das empregadas domésticas, criam, nela, uma consciência de sua condição. Na maior parte das vezes, torna-se autônoma e independente, enquanto permanece, no interior da família, fazendo o jogo da submissão, na relação com o cônjuge.

Destarte, à primeira vista, temos a impressão de existir um jogo de faz-de-conta entre velhos e jovens, homens e mulheres. Mas, tudo isso é mais profundo, e reflete as contradições e os conflitos entre o conteúdo interiorizado na socialização primária — no campo e nas vilas semi-rurais — e o interiorizado na socialização secundária — nas vilas e, principalmente, na metrópole. A força deste último, recente e em acordo com o novo meio, não consegue anular, de fato, a sobrevivência do conteúdo arcaico, incorporado em condições emocionais, na relação com os outros significativos de sua infância.8

No contexto dessas famílias, a socialização torna-se, portanto, um empreendimento complexo e contraditório. O adulto migrante, socializado no e para o meio rural — ou mesmo na e para a pequena cidade —, na verdade, no dizer de BERGER & LUCKMANN, (1976) não apenas absorveu os papéis e as atitudes dos outros, mas, nesse processo, assumiu o mundo deles, já que "a identidade é objetivamente definida como localização em um certo mundo e só pode ser subjetivamente apropriada juntamente com este mundo." (p. 177)

Ora, os pais migrantes incorporaram a escala de valores, hábitos e costumes típicos do meio rural e/ou semi-rural. Em aqui chegando, estes indivíduos, em grau maior ou menor, variando segundo sua faixa etária e grau de flexibilidade interna, acabaram por se adaptar. Em outras palavras, foram, progressivamente, assumindo hábitos e atitudes urbanos. Mas, em que grau e nível isto ocorreu? E qual sua escala de valores? O que é transmitido à criança? Qual o seu nível de aceitação dos novos valores? O que procura transmitir aos próprios filhos? Em que grau ele, o socializador, domina as técnicas essenciais à vida no meio urbano?9

Por outro lado, se muito mais cedo a criança sofre, no meio urbano-industrial, a influência direta do novo meio, em uma idade ainda precoce ela já está muito mais à vontade neste meio. Ou seja, já o domina mais que os próprios adultos que, apesar disto, são os responsáveis pela preparação dessa mesma criança para a vida social. Mas, como preparar alguém para um mundo que não é o seu? Para um mundo que eles mesmos desconhecem? Parece não ser esta uma questão exclusiva do migrante, uma vez que, com a velocidade da mudança social nas últimas décadas, a dificuldade de adaptação da maior parte dos pais ao mundo vivenciado por seus filhos é um fato inconteste. Se isto é verdade para todos, no que tange ao migrante deve ser ainda mais, em decorrência de sua condição máxima de "estrangeiro", no meio urbano-industrial de consumo.

Por que é o migrante um "estrangeiro"? Segundo a literatura especializada, a migração acarreta, necessariamente, desenraizamento. Mas, o que está oculto sob tal expressão é um processo brutal e dramático de corte da própria existência. Não é, como pode parecer à primeira vista, apenas uma perda de vínculos familiares — passíveis de certa recomposição no presente — de marcos sócio-culturais de referência, etc. É, mais que isto, uma mudança radical nas condições de vida e de trabalho, MELLO, 1985) que torna imperiosa, além, ou junto com, a adaptação ao meio novo, a reestruturação da própria identidade.

Os passos migratórios — do campo à cidade —, em nome da melhoria de suas condições de vida, são uma trajetória da autonomia à servidão. Assim, de pequeno proprietário rural autônomo, torna-se um trabalhador assalariado que vive do sub-emprego.

Posto isto, impõe-se-nos uma das questões mais "relevantes: como o migrante elabora suas perdas e ganhos, decorrentes da mudança radical em sua situação de existência? A resposta completa e satisfatória, a ela, ainda não foi encontrada. Sabe-se que a migração acaba por exigir, do sujeito que a realiza, uma reorganização interna, psicológica. Quanto a isto não resta dúvida; o problema é saber como a faz. De todo modo, sabe-se que, progressivamente, ele se transforma em outro, se percebe outro e acaba por reestruturar, nesse processo, sua própria identidade.

O processo ora descrito ainda está, em geral, em curso, quando ele, o migrante, vê-se às voltas com a árdua tarefa de educar os seus filhos e, portanto, nessa medida, de ser o mediador.

Mas, atenção, como se ainda não bastasse, há que educá-los em condições estranhas e adversas. Educado pelos pais em um quotidiano partilhado em sua totalidade — do trabalho à cama —, haverá de educar seus filhos sem com eles compartilhar a vida diária, porque ambos, pais e filhos, estão separados pelas imposições urbanas de luta pela sobrevivência.

"(...) De uma certa maneira, a cidade modifica o cerne da relação entre os pais e os filhos, as necessidades e aspirações não caminham na mesma direção. As crianças não vão trabalhar com os pais, que exercem ocupações — pedreiros, carpinteiros, operários — incompatíveis com a presença das crianças. O destino das crianças é outro, deve ser outro, para preencher as aspirações dos pais: elas vão à escola e devem cursar a escola, até onde puderem, em busca de uma vida mais confortável, mais fácil, menos dura, talvez, que a de seus pais.

A lei básica, que rege ou organiza a socialização ainda é a mesma lei ancestral: a sobrevivência, mas as regras que compõem essa sobrevivência mudaram. As mulheres sabem dessa mudança, e o meio de que dispõem para preparar os filhos para o futuro é a escola (MELLO, 1983).

Mas, lembra a própria autora, a escola exerce a sua função de maneira muito imperfeita.

Em tal contexto, é natural que a socialização acabe por se tornar um acontecimento — muito além de complexo e contraditório, como eu mesma o chamei — dramático.

É um mediador mergulhado em um mundo confuso e problemático que, embora desconheça o conteúdo social objeto da mediação, é quem dela está encarregado.

Portanto, se o mediador filtra, necessariamente — em função dos fatores apontados na primeira parte deste artigo —, o conteúdo cultural, nas condições aqui analisadas estamos diante de um filtro excessivo, que deixa passar muito pouco e distorce em demasia. E isto, apenas, em conseqüência de sua condição de "estrangeiro", não por qualquer outra incapacidade que se lhe queira atribuir.

 

3. Considerações Finais

Partindo da análise teórica da mediação, apresentei, inicialmente, uma tentativa de aproximação entre as abordagens de Berger & Luckmann, Sartre e Erikson. E minha suposição que este referencial teórico, se associado, permite-nos melhor compreender o processo de socialização.

A seguir, procurei demonstrar como a mediação nas camadas subalternas — habitantes do meio metropolitano — acaba por se constituir em um empreendimento complexo, contraditório e até mesmo dramático, uma vez que o próprio sujeito que a realiza está, ainda, em processo de adaptação social e reestruturação da identidade.

A responsabilidade que nos cabe enquanto cidadãos, como investigadores sociais comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa, deve levar-nos, a todos nós, à reflexão sobre as conseqüências das idéias aqui desenvolvidas.

Senão, vejamos: procurei traçar, mesmo que de maneira incompleta e imperfeita, o quadro em que se desenrola a socialização das crianças nas camadas pobres. Algumas das principais dificuldades dos pais foram aqui levantadas. Tais dificuldades, que permeiam a mediação parental, existem em milhares de famílias, não são privilégio daquelas que "produzem" as chamadas crianças abandonadas, delinqüentes, marginalizadas, ou, usando o jargão costumeiro, os menores. Mas, atenção, podem vir, também, a "produzí-los". Que limite as separa? Esta a grande incerteza, ainda sem solução à vista.

A miséria, a pobreza, a exploração, a fome, a falta de moradia, de transporte, de escolas, tudo isto é real, na vida das camadas populares.

Mas, também é um fato, e igualmente sério, a precariedade que caracteriza a socialização das crianças, em decorrência, é preciso atentar para isto, também , mas não só, dos fatores acima mencionados. O fator preponderante talvez seja, e eu acredito que o seja, a falta de domínio do meio sócio-cultural, por aqueles que são os encarregados da educação infantil familiar — os mediadores.

Se, como sabemos, a escola também realiza de maneira imperfeita, incompleta e insatisfatória, a sua parte, o que esperar do futuro?

As discussões sobre os problemas relacionados à criança e ao menor, impõem não só a melhoria das condições de vida de suas famílias. Isto, embora fundamental, não é suficiente. Faz-se necessária a melhoria efetiva da escola destinada a estas populações, porque cabe a ela, não há dúvida, preencher parte das lacunas deixadas pela educação familiar.

Não se trata, meramente, como pretendem alguns — mesmo porque esta seria uma solução discutível e, até, inapropriada —, de tornar profissionalizante o ensino que lhes é oferecido. Trata-se, isto sim, da escola descobrir o como compartilhar com a família a tarefa de educar crianças e jovens.

E eu não cometeria a ingenuidade de supor ser isto do interesse do Estado porque ele assegura a sua permanência, sobretudo, através da reprodução das camadas subalternas. Para tanto, torna-se necessário mantê-las na miséria e ignorância (ALTHUSSER, 1980).

Todavia, ao nível do discurso oficial é constante a preocupação com o menor, o abandono deles, a violência, a criminalidade, etc. Vicioso é o círculo e só poderá ser, algum dia, interrompido quando as próprias famílias passarem a exigir condições satisfatórias de vida e de trabalho e, portanto, de escolarização também. As comunidades de base e os sindicatos, bem ou mal, têm procurado ajudá-las na formação de sua consciência. O percurso, no entanto, é longo e cheio de obstáculos.

Não obstante, o futuro das novas gerações passa pela melhoria das condições de existência de seus mediadores familiares. Impõe-se que eles dominem, com alguma eficácia, o meio urbano-industrial - o que inclui dominar as novas regras do jogo da sobrevivência e, nessa medida, da própria escolarização —, para que possam realizar a mediação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa, Presença, 1980.        [ Links ]

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(*) Este artigo origina-se de algumas idéias desenvolvidas em minha tese de doutorado, defendida no Instituto de Psicologia da USP, 1987, sob o título: Socialização: um estudo com famílias de migrantes, em bairro periférico de São Paulo.
1 P.L. Berger & T. Luckman. A construção social da realidade, 1976, p. 180
2 Idem, ibidem, p. 176
3 Idem, ibidem, p. 176
4 Não cabe aqui retomar esta discussão. Veja-se, no entanto, Jerusa V. Gomes, 1987.
5 A literatura é rica em exemplos. Veja-se as autobiografias de Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, Sartre, Nathalie Sarraute, Marguerite Yourcenar, dentre outras.
6 Este é o sentido do meu trabalho: estudar a educação da criança em famílias de baixa renda. Cf. Jerusa V. Gomes, 1987.
7 Ver o livro de Eunice Durhan, A caminho da cidade, p. 198-99, leitura obrigatória sobre o tema em questão.
8 Não retomarei aqui esta discussão, porque já o fiz em artigo recente. Cf. Jerusa V. Gomes. Do Campo à cidade: as transformações nas práticas educativas familiares. Cadernos de Pesquisa, nº 64, p. 48-56, 1988.
9 Respostas a algumas destas questões foram por mim encontradas e desenvolvidas. Cf. Jerusa V. Gomes, 1987.