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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.1 São Paulo jun. 1990

 

PONTO DE VISTA

 

Repensando a pós-graduação

 

 

Leonidas Hegenberg

Professor titular-colaborador do Instituto de Psicologia da USP

 

 

Com freqüência assustadora, a Pós-Graduação (PG) vem sendo tratada como simples prolongamento da graduação. Aparece, pois, nestes moldes: a sala de aula, inteiramente convencional, o professor-expositor, um grupo grande de alunos, anotando aquilo que o mestre lhes diz, os 50 minutos, o sinal de entrada e saída, o controle de faltas, as "provinhas" mensais, as notas de aproveitamento... Só falta, para completar o quadro dos anacronismos, a lista dos aprovados, afirmando que o aluno A é melhor do que o aluno B, porque sua nota foi 0,03 maior do que a do colega!

A simples menção desses itens é suficiente para revelar que a PG está necessitando, urgentemente, de sérias reformas. Este comentário registra algumas sugestões, arroladas com o propósito de encaminhar o redirecionamento da PG.

...

A fim de cogitar de um programa de estudos avançados, certas condições devem estar satisfeitas. Sem elas, não cabe pensar em PG, mas em aperfeiçoamento de programas básicos e (possível) alteração da mentalidade vigente.

Que condições são essas?

Em primeiro lugar, é imprescindível a presença de um estudioso de renome. Ele é o fulcro de todo o "esquema" aqui proposto e em torno dele gira o resto. Esse estudioso escreveu e publicou diversos trabalhos (em revistas de ampla circulação); mantem-se em contato com inúmeros pesquisadores; participa desta "universidade invisível" que não conhece fronteiras políticas ou geográficas, respeitando apenas as fronteiras de honestidade intelectual; lê muito, inclusive revistas de divulgação; com a ajuda de uma boa bibliotecária, mantém-se informado a respeito do movimento editorial; conversa com os colegas, discute suas duvidas e ajuda-os a equacionar suas dificuldades.

Em segundo lugar, ao pesquisador de renome se associam dois (ou mais) auxiliares diretos. Um deles, pelo menos, é ótimo professor, dono de grandes virtudes didáticas, "tutor" dos companheiros mais jovens. O outro é pesquisador que não deixa de folhear todos os fascículos dos "Abstracts" e dos "Reviews" que a biblioteca receba e uma de suas tarefas primordiais é a de manter o grupo informado a respeito do que se investiga em outros centros de pesquisa congêneres, — dando especial atenção às novidades que possam interessar aos colegas. Esses auxiliares focalizam certas questões gerais, mas concentram-se no exame de pormenores intrigantes, surgidos em decorrência das tentativas de resolver meia dúzia de problemas básicos e que "andam no ar", conforme se percebe ao analisar o rumo das pesquisas realizadas em vários pontos do mundo.

Como terceiro item da lista de condições, assinale-se que a essa "cúpula" se associa um grupo de cinco, dez ou mais professores/pesquisadores, cada qual empenhado na resolução de alguma questão que, direta ou indiretamente, se prenda aos citados pormenores intrigantes das "grandes linhas de pesquisa". São jovens promissores, gradualmente reunidos em função dos interesses da cúpula e da entidade a que todos se filiam. A eles cabe, em síntese, a maior parte da produção da PG, em termos de artigos, palestras, participação em congressos, cursos, inventos e protótipos, material produzido em laboratórios e oficinas, ou técnicas inovadoras. A eles cabe, também, a tarefa de orientar os recém chegados, ensinando-os a manusear revistas, a fazer levantamentos bibliográficos, a organizar um seminário ou uma aula, a participar de uma reunião, a debater um tema, e assim por diante.

Para as pessoas dessa equipe, inglês, francês, alemão, sem falar no espanhol e no italiano, são idiomas "corriqueiros". Na equipe, além disso, há quem saiba (com maior ou menor esforço) traduzir artigos escritos em russo, japonês e, talvez, em mais um ou dois outros idiomas.

Esse é o mínimo necessário para cogitar da PG. Mas ao lado do pessoal é preciso, ainda, uma série de outros fatores. De início, uma boa biblioteca em que existam os "Abstracts" e os "Reviews" (e.g., "Mathematical Review" e "Chemical Abstracts" ou equivalentes, conforme a área de estudo), assim como verbas para obtenção, rápida e eficaz, de cópias de artigos julgados de interesse — e trazidos de qualquer local em que se encontrem os periódicos onde hajam sido divulgados. Está claro que uma biblioteca não pode atuar a contento se não tiver, em seus quadros, alguns bibliotecários de referência, inteligentes e dedicados, bem como funcionários capazes de executar os vários serviços de classificação e catalogação, para rápida recuperação de informações.

A par disso, presume-se que haja verbas para aquisição de algum equipamento, assim como para cobrir gastos com material de consumo. Serviços de apoio (particularmente secretaria) estão atendidos. Há recursos, preferencialmente administrados pela própria equipe, para enfrentar algumas despesas de viagem (participação em congressos, simpósios, etc.) e ocasionais despesas decorrentes da vinda de visitantes (convidados pela equipe), vinculada à divulgação de temas de interesse mútuo.

...

Aí estão as condições para cogitar de um adequado programa de PG. Quanto maior o número de "chefes de pesquisa" e de pessoas a eles associadas, tanto maior o alcance do PG e tanto mais "produtivas" as equipes — em termos de qualidade e quantidade de artigos, ensaios críticos, aparelhos, equipamentos, etc. Tanto maior, também, a possibilidade de acolher gente de formação diversificada e facilitar a ampliação do leque de atividades da PG.

Considerando que vários estudos são hoje feitos por grandes equipes,* percebe-se a importância que adquire o trabalho em grupo e a permanente troca de idéias. Isso deve ser facilitado ao máximo. Está claro que um ou outro indivíduo preferirá trabalhar isolado. Nada impede que o faça. Todavia, estimular-se-á, sempre que viável, o "atrito", ou seja, o contato com numerosas pessoas, para provocar a interfecundação de idéias e aumentar a probabilidade de atingir soluções, sobretudo quando as questões tiverem caráter interdisciplinar — o que, em nossos dias, acontece com freqüência crescente.

A PG é procurada, naturalmente, por várias pessoas, de origens diferentes, preparo básico diversificado e, obviamente, interesses muito variados. Algumas desejam simplesmente "situar-se" no mundo das idéias; outras procuram aprofundar seus conhecimentos em um setor específico; terceiras tentam viabilizar uma idéia; a maioria procura um título ("Mestre" ou "Doutor"), contemplando carreira acadêmica. Em tese, não parece conveniente olhar para essas pessoas de modo padronizado; menos conveniente ainda é fazer o que se tornou comum atualmente: "jogá-las" em uma sala de aula e despejar cursos sobre elas... Cada pessoa é diferente das demais e deve ser tratada de modo particularizado. A questão que se coloca, portanto, é esta: "Como agir?" Procedimentos serão variados. Tentando descrevê-los com a preocupação de apontar seus traços de maior relevo, pensemos nos casos mais comuns, ou seja, das pessoas que procuram a PG em busca de um mestrado.

...

Cada interessado será entrevistado por um dos elementos da cúpula da PG. Dessa entrevista resultará noção mais ou menos clara do que o levou à PG. Se a equipe estiver em condições de nortear o candidato, sua atividade prosseguirá; caso contrário, ele será encaminhado a outro centro congênere, melhor habilitado a atendê-lo. De uma segunda entrevista resultará idéia razoavelmente precisa a respeito do pesquisador/professor a que o candidato poderá ficar (eventualmente) vinculado, isto é, seu (futuro) "supervisor".

Numa terceira entrevista, preferivelmente com o professor de especiais dotes didáticos e o eventual "supervisor", o candidato mostrará que conhece nosso idioma, estando capacitado a redigir, de modo adequado e correto, um relatório, um ensaio, uma resenha ou um sumário de artigo. Aproveitar-se-á essa mesma ocasião para saber se o interessado conhece razoavelmente bem o inglês (ou, em vez disso, algum idioma estrangeiro, preferentemente o alemão, o francês, o russo ou o japonês). Conhecer "razoavelmente bem" significa traduzir, sem necessidade de dicionário, um trecho de obra de caráter técnico (da área a que o candidato se dedique ou pretenda dedicar), entender meia dúzia de questões formuladas nesse idioma e respondê-las sem (grandes) tropeços, de modo inteligível.

Não custa sublinhar: ninguém procura perfeição. Deseja-se que o candidato saiba escrever corretamente. Um ou outro erro será admissível, pois as tarefas posteriores permitirão corrigir tais falhas. Mas quem não souber escrever coerentemente não deverá ser admitido na PG. O mesmo vale para o inglês (ou outro idioma). Se o candidato fala fluentemente a língua, tanto melhor. Se não fala, deve estar em condições de usar o idioma para traduzir, com pouco esforço, trechos de assuntos que conheça. Posteriormente, esse domínio da língua estrangeira far-se-á indispensável. (E será indispensável enquanto o inglês for a língua científica "oficial": a língua em que se divulga praticamente tudo que a pesquisa tem levado a concluir.)

Admitindo que o candidato haja superado essa "fase inicial", estará em condições de ingressar na PG. Novas entrevistas com o supervisor permitirão delimitar, com alguma nitidez, aquilo que o candidato poderá obter na PG, o que sabe, as deficiências que apresente, a maneira de remediá-las, etc.

Note-se, aqui, um primeiro ponto importante a distinguir esta, e a maneira tradicional de entender a PG. A forma tradicional é, naturalmente, "massificante": todos os candidatos são postos em uma espécie de "linha de montagem" em que poucas opções se apresentam; a presente forma de entender a PG é "individualista"; não há dois programas iguais e cada candidato está associado a um programa, especialmente traçado para ele. Por isso mesmo, há um limitante superior para a quantidade de matrículas na PG: no máximo, cada elemento da equipe cuidará de cinco ou seis pessoas, para que a atenção não se atomize e haja a possibilidade de alcançar algum êxito.

Supervisor e candidato manterão prolongados diálogos, durante algumas semanas, em busca de "um plano de ação". Esse plano, diga-se desde já, deve ser claramente delineado, com objetivos próximos e remotos, mas deve, também, permitir alterações, segundo o que as circunstâncias vierem a ditar.

Note-se que o plano poderá (mas não obrigatoriamente) exigir estudo regular de certas matérias, em sala de aula. Novo ponto de especial interesse é este: jamais se obrigará um candidato a acompanhar cursos com a finalidade de "somar pontos" (ou "créditos") até obter um total previamente estipulado. Não tem sentido exigir que alguém, interessado em aperfeiçoar seus conhecimentos de um dado assunto M, seja obrigado a acompanhar cursos do assunto N, como não tem sentido exigir, de quem já leu e até escreveu a respeito do tema M, que faça cursos — simplesmente para "juntar créditos"... A sala de aula desenvolve mentalidade "receptiva", "passiva", ao passo que a PG deve ser o oposto disso, desenvolvendo a criatividade e valorizando a produção.

Ressalte-se a diferença. No âmbito tradicional, há "cursos de PG": salas de aula, grande número de ouvintes, interessados ou não, com poucos e rápidos momentos de interação, principalmente tendo em conta que o professor expõe um assunto, Lembrando que os "créditos" acumulados em cursos caducam, os alunos serão obrigados a acompanhar as aulas, ainda que nenhum dado importante possam trazer-lhes. De acordo com a sugestão aqui feita, "cursos" são apenas ocasionais; há programas individualizados; pessoas que se associam a um supervisor estão em constante contato e seus interesses são similares; acresce que o número de pessoas assim postas a interagir são poucas, o que estimula a troca de impressões e de idéias.

O plano poderá envolver, pois, em vez de aulas, estágio(s) em centros de pesquisa, estudo individual, estudo em grupo; leitura dirigida, atuação em laboratório(s), visitas a diversas pessoas, com as quais serão mantidos longos diálogos, etc. Cada ser humano reage de uma forma, aprendendo deste ou daquele modo; levá-lo a aprender e produzir é o objetivo maior de seu supervisor — que usará, portanto, das vias que lhe parecem adequadas, sugeridas pela sua experiência.

Seja qual for, o plano deve ter, porém, alguns "marcos" mais ou menos rígidos. A fim de alcançar o título de "Mestre" (e, posteriormente, o de "Doutor") o candidato está obrigado a mostrar que cumpriu satisfatoriamente determinadas exigências, estudou certos assuntos e sabe umas tantas coisas. Como revelar que fez, estudou e sabe? Certamente não pela via tradicional das "provinhas" em sala de aula! Há maneiras muito mais sábias e eficazes de mostrar sabedoria...

Concretizemos a situação e pensemos num jovem que procura o "Mestrado", com olhos voltados para uma carreira acadêmica. Deixou estabelecido, preliminarmente, que sabe o Português (redige corretamente), conhece um idioma estrangeiro e pretende estudar um dado tema, em uma específica área do saber, na qual já localizou (provisoriamente) um setor de especial interesse. Notar que esse pressuposto afasta, como candidatos à PG, as pessoas que pretendam estudar "coisas vagas" como, p. ex., "História" ou "Fisiologia animal" ou mesmo "Literatura brasileira do século XIX". Arregimenta, em vez disso, pessoas que pretendam estudar "Aplicações do nióbio", "A fase II de Wittgenstein" ou "Responsabilidade civil do transportador aéreo".

Após alguns contatos com o supervisor, esse jovem delineará seu "plano", cuja etapa final será (1) uma dissertação ("tese") de mestrado; ou (2) um "exame" de qualificação. Para atingir essa etapa derradeira, algumas atividades serão necessárias.

A primeira fase envolverá conhecimento completo de um livro (o "livro-base") que contenha, amplamente discutido, o tema central de interesse. Note-se que temos o péssimo hábito de 1er livros "pela metade", deixando "para depois" os capítulos finais das muitas obras que examinamos. Combater esse hábito é um ponto importante na formação de um professor/pesquisador e é isso que justifica a exigência de leitura completa de um "livro-base". Está claro que o candidato revelará seus conhecimentos ao supervisor, encarregado de verificar se o livro foi lido e teve seu conteúdo inteiramente assimilado.

Em nosso modo de entender, um dos meios mais eficazes de estudar determinado assunto é tentar digerir um ou mais artigos de revistas especializadas: a leitura dos outros artigos aí referidos, até que as idéias se tornem inteligíveis, é via difícil, mas muito profícua de aprendizado. Assim, nada melhor do que exigir do candidato a tradução de artigos e de comentários críticos publicados em revistas especializadas (digamos, uma centena de páginas) e posterior discussão do texto assim gerado. Essa, discussão abrirá margem para elucidação de pontos obscuros, debate de temas correlatos e assentamento de idéias fundamentais. Paralelamente, as traduções, devidamente analisadas e corrigidas, darão origem a uma coletânea de textos, cuja utilidade está fora de questão.

O contato com obras novas fará com que o candidato elabore alguns estudos críticos ou resenhas — digamos, uma dúzia deles. Tais comentários e resenhas serão divulgados (depois de discutidos com o supervisor) em apropriados jornais e revistas.

É claro que o candidato deve, na medida do possível, "viver" a PG. Significa isso que deve participar das reuniões de estudos, dos seminários, das palestras, etc, que hão de ser usuais na PG. Em cada qual dessas reuniões, um ou mais elementos da PG farão exposições, discutindo questões específicas; em outras ocasiões, um ou mais candidatos discutirão suas dúvidas ou falarão de seus planos, comentando livros lidos, artigos traduzidos, resenhas elaboradas. Os candidatos habituar-se-ão, desse modo, a produzir, isto é, a ter alguma coisa pronta para oferecer, e a debater, ou seja, a defender suas idéias e criticar pontos falhos em exposições alheias.

Tudo isso, como é fácil perceber, dá dimensões novas à PG. Em vez de salas de aula, onde passivamente um grupo de pessoas recebe informações, temos, agora, mesas em que algumas pessoas se reunem para debater o que produziram: ensaios, resenhas, artigos — livros, talvez. Não há pseudo-conhecimento, "avaliado" por meio de provas ou testes, mas conhecimento efetivo, registrado e (ponto notável!) transmitido. Há equipes de trabalho, há fecundação de idéias, há debate, há produção, há estímulo, há vida.

Vamos repensar a PG?

 

 

* Veja-se por exemplo, o artigo: "Charm photoproduction cross section at 20 GeV" do Physical Review Letters, 51 (3): 156, 18 jul. 1983 com 99 autores!