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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.1 São Paulo jun. 1990

 

PONTO DE VISTA

 

Psicanálise e psicoterapia breve

 

 

Ryad Simon

Professor associado do Instituto de Psicologia da USP

 

 

Refletindo sobre os modelos de procedimento nos quais se inspiram — consciente e inconscientemente — as várias formas de psicoterapia, cheguei a conclusões que me parecem esclarecer de uma maneira nítida e coerente as diferenças, o alcance e os fundamentos das diversas abordagens psicoterápicas. E isso tudo se articulando de uma maneira tão simples, que achei útil escrever algo a respeito e fazer poucas sugestões.

A psicoterapia - na qual se inclui a psicanálise como uma das abordagens - surgiu como um procedimento médico visando à "cura" de uma doença. Etmologicamente o conceito designa tratamento psicológico. Procurando fugir ao modelo médico, muitos profissionais, principalmente americanos, propuseram adotar um modelo pedagógico. O indivíduo em busca de ajuda psicológica é encarado como possuidor de um distúrbio de aprendizagem. Por exemplo, ALEXANDER & FRENCH (1946) concebem a neurose como efeito da interrupção do processo de aprendizagem. Se um problema se torna muito perturbador para enfrentá-lo o processo de aprender se interrompe. Surgem formas estereotipadas de tentativas de solução fracassadas. Dessa definição segue-se naturalmente que a psicoterapia visa reiniciar e completar um processo de aprendizagem interrompido quando se instalou a neurose.

Outra dupla americana, SMALL & BELLAK (1978) também propõem o modelo pedagógico como forma de compreender e modificar os distúrbios psicológicos. Sua posição nesse aspecto pode ser resumida em duas questões:

Como este paciente melhor desaprenderá, aprenderá, reaprenderá ou aprenderá de forma diferente o que necessita aprender? Mais especificamente: como pode aprender certos sintomas, a adquirir funções, a responder diferentemente e a modificar aspectos de sua personalidade? (p. 43).

Entre os utilizadores da Terapia Comportamental o conceito reeducativo é ainda mais arraigado, baseado nas teorias de condicionamento e recondicionamento.

Não é meu intuito fazer uma resenha mas apenas situar e discutir um problema. Os usuários do modelo da neurose como aprendizagem e da psicoterapia como reaprendizagem incorrem em certas posturas e esquemas de ação com implicações importantes. Vou tentar torná-las claras e evidentes.

Na abordagem psicoterápica, que segue o modelo pedagógico, observo:

1) O Terapeuta (T) se identifica com o professor; o Paciente (P) com o aluno. Daí se segue que na fantasia do P (e talvez do T), o T é aquele que sabe; o P aquele que não sabe.

2) O T é ativo, o P é passivo. Aqui se retoma a relação médico-paciente, que se pretendia superar. O único ganho é que o paciente não é mais o "doente" e o médico o "normal". Mas pemanece a relação dirigente-dirigido.

3) O T está certo, o P acredita. Essa é uma condição inescapável. Pois, se o paciente não acredita no médico, não segue a prescrição. Se o aluno acha que o professor não está certo, é reprovado.

4) O T decide, o P acompanha. Em conseqüência das três relações precedentes o T escolhe o que mais convém ao P: o que manifestar e o que suprimir; ao que é gratificável, o que é punível.

Desse modo a psicoterapia sob este modelo educativo estimula a passividade e o conformismo. (Adiante proporei algo para atenuar esses aspectos.)

Na abordagem psicanalítica que tem se desenvolvido entre alguns praticantes ingleses, dos quais Bion foi o expoente, o modelo que subentende a postura do analista, segundo suponho, segue o procedimento da investigação científica, abandonando a idéia de tratamento e cura. Sua finalidade não é o aprendizado, mas a descoberta.*

Nesta acepção de prática psicoterápica (psicanalítica) como descoberta, as implicações mais relevantes me parecem:

1) O T não sabe e o P não sabe. Essa postura estimula uma relação que, em vez de hierárquica, é de colaboração. Ambos se tornam parceiros na empreitada rumo ao desconhecido.

2) T e P não usam a memória, mas a capacidade de suportar o não saber. É isso que propicia a descoberta. (No aprendizado o T fica no conhecido). Nesse caso, caberia falar do complexo de Édipo na experiência analítica como descoberta ou redescoberta? Suponho que, se se toma o complexo de Édipo como "coisa em si", como "pensamento sem pensador", como "préconcepção" à espera da "realização (BION, 1963, 1965) então é forçoso admitir que o complexo de Édipo de cada pessoa é único, desde que não há duas "realizações" idênticas. É esta originalidade de cada compleco de Édipo que se apreende quando analista e analisando adotam a disciplina de vivenciar a esperiência "sem desejo e sem memória". Neste sentido cabe falar em descoberta.

3) T e P não sabem de onde partir, nem de onde chegar. Essa postura é inerente à descoberta. Nós não descobrimos; somos descobertos pelo desconhecido. Desde de que dispostos a suportar a escuridão e o desamparo.

4) T e P, não tendo um plano, um espaço definido para investigar, também não têm limite de tempo.

Daqui se segue que o modelo pedagógico (ou médico) dá coerência e sentido à psicoterapia breve (ou variedades que pretendem encurtar a análise, mas sem duração definida). A psicoterapia breve, tendo um ponto de partida e um ponto de chegada, permite traçar-se um plano, uma orientação "espacial". Para percorrer o "espaço" planejado pode-se presumir um tempo de percurso. A abreviação do tempo de tratamento é a característica principal da psicoterapia breve. Para encurtar o tempo é imprescindível planejar. Para planejar é preciso "saber". Através do "saber", para conduzir o paciente por um certo caminho num tempo determinado, o terapeuta dirige o curso da psicoterapia. Assim, planejamento, duração e diretividade, são características que encaixam perfeitamente no modelo pedagógico. E não se coadunam de forma alguma com a abordagem psicanalítica.

Retomando o assunto sob outro ângulo. O que leva à escolha do modelo psicoterápico? — O objetivo a ser alcançado com o procedimento terapêutico. Uma vez escolhido o objetivo, os modelos de abordagem são inescapáveis. Se o objetivo é a "cura" (remoção do sintoma, reversão do quadro clínico), o modelo médico é inevitável. Se o objetivo é o "reajustamento" (adaptação às variações da realidade — interna ou externa — que exigem do sujeito novas respostas), o modelo imperativo é o pedagógico (desaprender, reaprender). Se o objetivo é o conhecimento da essência da individualidade de uma pessoa, o modelo é obrigatoriamente o da investigação científica, que remonta à postura de Freud.** Entre os modelos médico e reeducativo há grande semelhança. As diferenças são superficiais, como foi visto.

Portanto, se o psicoterapeuta adota uma terapia psicodinâmica dos fenômenos mentais e relações interpessoais, o espectro de sua atividade profissional poderia ser disposto num continuum. Num extremo ficaria a Psicanálise, seguindo-se todas as formas de Psicanálise Aplicada, culminando com a Terapia Breve.

Eu disse acima que uma vez escolhido o objetivo, o modelo de procedimento psicoterápico era inelutável. Mas por sua vez a escolha do objetivo se deve à concepção de distúrbio psíquico adotada pelo terapeuta. A concepção de neurose ou psicose como falha no processo de aprendizagem leva a um conjunto coerente (mas nem sempre explícito) de procedimentos ativos (modelo de ação) que visam a informar, conformar e dirigir o comportamento para determinado objetivo decidido pelo terapeuta. Por exemplo, ALEXANDER & FRENCH, (1946, cap. 5), propõem como princípio diretor de sua "Terapia Psicanalítica": tratamento é reeducação e direção do processo terapêutico. Não há nada de errado com essa concepção de distúrbio e abordagem psicoterápica. Mas é preciso perceber a diferença qualitativa com relação à psicanálise. Se não pareceria que analista e analisando são ingênuos, despendendo tempo e esforço e dinheiro num longo trabalho que conduz ao mesmo fim da terapia breve. Os argumentos de que a psicanálise se alonga porque estabelece uma relação de forte dependência, ou porque o analista fica passivo, ou porque é necessário remontar às origens do confito genético para obter a cura, etc, são efeitos da confusão entre os objetivos da Psicanálise e os das abordagens que visam a cura ou reeducação.

Por outro lado, pretender que a Psicanálise é um procedimento melhor, superior, porque alcança níveis mais profundos e amplos do psiquismo do que outras abordagens, é frivolidade e arrogância. Seria análogo a pretender que o trabalho do intelectual é superior ao do camponês. Se são fruto da escolha livre do homem têm o mesmo valor. São apenas estilos diferentes de vida.

Assim, creio que a decisão sobre o objetivo da psicoterapia deveria ser da livre escolha do terapeuta e do paciente. Estabelecido de antemão. Ou podendo mudar no curso da experiência, se ambos assim o desejarem, desde que compreendidas as motivações.

Respeito e compreendo o psicanalista que queira somente fazer psicanálise, embora sempre me venha à mente o modelo do alfaiate que somente faz um modelo e tamanho de roupa e o cliente precisa encaixar-se nela, ou desistir.

Proponho que haja maior flexibilidade. Que o psicanalista aprenda modelos de técnicas curativas e reeducativas. Não que deva abandonar a prática da psicanálise. Mas diversificar seu procedimento. Pois, se o analista tem preocupação de alcançar e ajudar maior número de pessoas, não será barateando os honorários e mantendo as mesmas quatro sessões semanais que conseguirá isso.

Penso que a essência da questão está na liberdade do cliente poder escolher o que pretende, e na liberdade do psicoterapeuta de aceitar ou não o procedimento escolhido. (Para o cliente ter sua liberdade de opção obviamente deve estar ou ser esclarecido). Porque, uma vez livremente escolhido e aceito o método de abordagem, as implicações do modelo médico ou pedagógico — assinaladas no começo deste trabalho — perdem muito da sua onipotência e idealização.

O terapeuta estará aplicando, desta forma, seu conhecimento por escolha livre de ambos. Não será um método decidido pelo terapeuta, como aquele que sabe o que é bom e o que serve para o cliente, redundando numa relação arrogante e onisciente.

É possível que o cliente, tendo optado por psicoterapia breve, em seguida, ou ao cabo de algum tempo, decida pela psicanálise. Ou, se nunca pretender analisar-se, terá sido fruto de uma decisão lúcida e não por acidente casual. Por outro lado, penso nos inúmeros pacientes que tendo feito uma experiência em psicanálise, não a suportaram muito tempo, ou já desistiram de saída. Talvez se o alfaiate não fosse tão rigoroso o cliente não saísse nú.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDER, F. & FRENCH, T. Psychoanalytic therapy. New York, Ronald, 1946.        [ Links ]

BION, W. R. (1963). Elements of psychoanalysis. In: BION, W. R. Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. New York, Jason Aronson, 1977. 110p.        [ Links ]

BION, W. R. Second thougths. New York, Jason Aronson, 1967.        [ Links ]

BION, W. R. (1965). Transformations. In: BION, W. R. Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. New York, Jason Aronson, 1977. 183p.        [ Links ]

FREUD, S. (1913). On psychoanalysis. In: FREUD, S. The case of Schreber; papers on technique and other works. London, Hogarth Press, 1958. p.205-211. (Standard Edition of the Complete Psychological Works of S. Freud, v.12)        [ Links ]

SMALL, D. & BELLAK, L. (1978). Psicoterapia breve e psicoterapia de emergência. Porto Alegre, Artes Médicas, 1980.        [ Links ]

 

 

* W.R. Bion em seu "Second thoughts", 1967, aponta que "o progresso da psicanálise levou a mudança de um estado de coisas no qual idéias de 'tratamento', 'cura' e 'resultados', não têm mais qualquer sentido." (p. 149) "Há um breve passo do abandono da 'cura' para a descoberta da realidade da psicanálise e do inusitado no mundo da experiência psicanalítica. O 'desejo' da cura é precisamente um exemplo do desejo, entre outros tantos, que não deve ser acolhido por um psicanalista." (p.151)
** Quando, em seu ensaio "On psyco-analysis" (1913), Freud refere-se à Psicanálise como método terapêutico, teoria da personalidade e método de investigação do psiquismo, sugiro que o único que mereceria nomear-se "Psicanálise" seria este último. Aos dois outros aspectos - terapêutico e teórico — mais caberia serem chamados "aplicações da Psicanálise", porque se referem ao já sabido e aceito. A Psicanálise nas acepções científica e social está sempre nas fronteiras respectivamente do desconhecido e do controvertido.