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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.1 no.1 São Paulo June 1990

 

ENTREVISTA

 

 

Entrevista com a Drª Zélia Ramozzi-Chiarottino realizada em dezembro de 1988, conforme roteiro preparado por Antonio P. R. Agatti e pela Comissão de Publicações do Instituto de Psicologia. Participaram como entrevistadores Antonio P. R. Agatti e Elsa Gonçalves Antunha.

Elsa — Professora Zélia, em nossa entrevista gostaríamos de conhecer o seu pensamento a respeito de várias questões. Começaríamos pelo seguinte: Quais são, a seu ver, os pontos fortes e fracos da Psicologia não só no Brasil como no mundo?

Zélia — Elsa, acho que a resposta a essa pergunta é um pouco difícil pois referir-se-ia à situação da psicologia em todo o mundo. Não estou tão bem informada assim. Vou, no entanto, falar sobre aquilo de que tenho notícia. Creio que o ponto mais fraco é a falta de teorias, a falta de conceituação. Dentro da Psicologia temos poucos conceitos verdadeiros, apenas noções. Ora, uma noção é passível de ser interpretada de maneiras diferentes, por pessoas diferentes, ao passo que um conceito é já alguma coisa mais precisa. A Psicologia carece de conceitos, no Brasil e no mundo. Os pontos fortes estão, ao contrário, justamente nas teorias melhor formuladas, mesmo que não satisfaçam aos anseios daqueles que buscam a Psicologia para compreender a psiquê humana. Por exemplo, a Psicologia Experimental no Brasil e no mundo é um ponto forte. E forte por sua metodologia e por seus conceitos precisos. Por outro lado, há "teorias" em Psicologia que mesmo não sendo verdadeiras teorias obtêm sucesso terapêutico.

Elsa — Seriam fortes segundo um critério pragmático?

Zélia — Precisamente. Lembro-me da posição expressa pelo professor Aldo Carotenuto. Ele não via relação necessária entre as teorias e as práticas terapêuticas, mas se a prática leva à cura, há um ponto forte. Temos excelentes analistas no Brasil, excelentes terapêutas. Em suma, do ponto de vista teórico há, realmente, uma certa fraqueza, uma grande fraqueza em Psicologia; enquanto, do ponto de vista prático, acho que há muita coisa forte.

Elsa — Completando o que foi dito até agora, quais são, a seu ver, os rumos da Psicologia no mundo e, particularmente, no Brasil? Como vê a Psicologia no ano 2000?

Zélia — O ano 2000 está perto, exageradamente perto. Eu diria que a Psicologia caminha rumo a uma teoria que venha a justificar as práticas, isto é, rumo a uma prática realmente derivada de uma teoria. A Psicologia caminha nessa direção: construção de teorias. Para isso, é claro que ela deveria dar ênfase às relações que tem com as outras teorias em outros campos, por exemplo com as teorias neurofisiológicas e biológicas. Teria, também, que se relacionar com as Ciências Humanas, com a Filosofia (particularmente com a Teoria do Conhecimento) Lingüística e, até, com a arte. Acho que é nesse caminho que a Psicologia caminha.

Agatti — Esses são os rumos que você prevê?

Zélia — Sim. Acho que a Psicologia vai evoluir na teoria e na união da prática à teoria. Ver-se-á uma prática derivando de uma teoria, uma teoria justificando a prática. Isso, na realidade, não existe ainda. Há, por exemplo, técnicas terapêuticas, mas você não as liga necessariamente à teoria. Sabe-se, com efeito, que casos idênticos são curados por teorias completamente diferentes. Isto leva alguns a dizer: o que funciona é o terapeuta não a teoria.

Agatti — Realmente, esse era um ponto sobre o qual o professor Carotenuto insistiu e que chamou a atenção. Perguntei-lhe, mesmo, à época, porque havia, então, cursos para formar psicólogos?

Elsa — Professora Zélia, quais seriam dentro de sua própria especialidade, as perspectivas de evolução da teoria piagetiana?

Zélia — Gostaria de dizer que a teoria de Piaget é uma verdadeira teoria. Talvez uma das únicas em Psicologia. Satisfaz a todos os critérios de uma teoria científica. Sobre a "evolução" dessa teoria, diria que não deve ser reformulada, como pensam alguns dos meus melhores amigos, p. ex., o Battro e o Dolle. Acredito que a teoria piagetiana engloba, com muita tranquilidade, os fatos aos quais eles se referem... Esses fatos, sim, são novos. Mas para explicá-los não vejo ainda necessidade de reformular a teoria, embora isso possa vir a acontecer.

Elsa - Isso significa, na sua opinião, que a construção da teoria piagetiana já teria levado em consideração aqueles referenciais a que se referiu há pouco, a neurologia, a biologia?

Zélia — Não, mas a teoria piagetiana tem uma característica interessante. Ela pode ser aplicada a coisas às quais Piaget não se dedicou. Como, por exemplo, à reeducação, de um modo geral, à disfasia evolutiva, à afasia, etc. O trabalho que faço, por exemplo, se enquadra inteiramente dentro da teoria piagetiana. Acho que esses fatos novos virão explicitar aspectos da teoria que não estavam explícitos. O problema é entender a teoria...

Elsa — Nesse caso, a própria teoria dá margem a esses desdobramentos?

Zélia — Exatamente. Vou dar um exemplo. Quando Piaget começou a escrever, pensou-se que ele fosse lamarkista, pois só existiam duas teorias em voga: o lamarkismo e o darwinismo. No entanto, sua teoria não cabia nem cá, nem lá. Com o advento da teoria da epigênese, percebeu-se que Piaget se inseria nesta teoria. Em outras palavras, a teoria de Piaget ficou intacta. A teoria biológica é que fundamentou a hipótese piagetiana, mas o corpo de hipóteses já estava completo de certos anos para cá. O próprio Piaget diz que deveria reformular sua teoria e, em muitos pontos, a reformulou. Sua teoria é essencialmente baseada em modelos, mas isso é outro assunto.

Elsa — Julgo interessante discutir esse ponto.

Zélia — A teoria de Piaget baseia-se em modelos. Esses, sim, podem ser alterados, mas isso já está previsto na própria concepção de modelo. Acho que é a isso que o Agatti estava se referindo.

Agatti — Sim. Em recente artigo do Prof. Dolle percebi uma crítica ao que ele julga um modelo universal de sujeito epistémico não suficientemente abrangente para fazer face às influências ambientais e à aprendizagem.

Elsa — O Prof. Dolle estaria pensando mesmo numa reformulação?

Zélia — Piaget construiu uma teoria baseada em modelos que podem ser aperfeiçoados. No entanto, a estrutura desta teoria é dificilmente reformulável, pois já prevê a possibilidade desses aperfeiçoamentos.

Elsa — Professora Zélia, quais são, a seu ver, as contribuições brasileiras mais significativas, relativamente à teoria piagetiana?

Zélia — Eu gostaria de salientar alguns notáveis trabalhos feitos aqui na pós-graduação sobre, por exemplo, o papel de operação na transformação social e na educação; as relações entre a teoria piagetiana e a ludoterapia ou sobre a importância dessa teoria na reformulação do aprendizado da criança surda; a criança e o computador; a descoberta do vínculo causal e a gênese da noção de abstração...

Agatti — Zélia, você não quer falar de seu trabalho que é uma ampliação, uma derivação ou evolução da teoria piagetiana?

Zélia — Sim. Tenho diversos orientandos que trabalham fundamentalmente no sentido de explicitar alguns aspectos da teoria. Procuramos intervir na socialização da criança. Eu, pessoalmente, faço reeducação de crianças com problemas de reorganização de seu mundo e que não têm lesão orgânica no cérebro ou no aparelho foniátrico. Essa criança está completamente impossibilitada de se comunicar com o mundo ou se comunica muito mal, mas não se sabe porque. A reeducação que propomos, baseada em Piaget, visa refazer o caminho que a criança deveria ter percorrido de modo a poder interagir com o meio, desde os esquemas motores até a linguagem e as operações, ou seja, desde os sistemas de significação até os sistemas lógicos.

Agatti — Professora Zélia, houve na psicologia brasileira interpretações opostas da teoria de Piaget em contextos práticos, o que teria levado a controvérsias fortemente impregnadas de conteúdos ideológicos. Você gostaria de comentar alguma coisa nesse sentido?

Zélia - Ah, sim. Isso ocorreu em relação à questão do "deficit" cognitivo. Acreditamos, como Piaget, que o ser humano tem capacidades muito específicas que dizem respeito a trocas simbólicas com o mundo. A criança evolui de trocas práticas, concretas, às trocas simbólicas. Há evolução, portanto, não podemos negar. Uma criança, por exemplo, que tenha ficado muito presa às trocas práticas não é inferior mas está inferior à outra, como diria o antigo ministro da educação. Ela está inferior, isto é, não alcançou o nível que poderia ter alcançado. Pela bagagem hereditária de que dispõe, ela pode chegar às trocas simbólicas, embora não o tenha feito. Defendemos que a troca simbólica é mais aprimorada que a troca concreta. O conteúdo dessa troca simbólica pode ser o de nossa cultura ou de qualquer outra. Isso não tem importância. Só podemos julgar se houve evolução ou não, do ponto de vista formal. A troca simbólica é um tipo de forma de interação com o mundo. A troca concreta é outro tipo, menos evoluído que aquele.

Elsa — Mudando um pouco o rumo de nossa conversa e visto que a senhora pesquisou bastante as origens do Instituto de Psicologia, quais são, a seu ver, os momentos mais importantes na história de nosso Instituto?

Zélia - Embora o nascimento do Instituto, com a reforma da USP de 1970, tenha extrema importância, julgo que os momentos mais importantes, nesta história ocorreram, a meu ver, antes de seu nascimento. E muito importante tudo aquilo que lhe deu origem. Lembraria sua origem em dois cursos da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras: Filosofia e Pedagogia. Nosso Instituto deriva da cadeira de Psicologia que pertencia ao curso de Filosofia, e da cadeira de Psicologia Educacional, do curso de Pedagogia. A primeira cadeira teve vários chefes. O primeiro foi o professor Etienne Borne; o segundo foi o nosso queridíssimo Jean Maugue. Em seguida, o professor Otto Klineberg e, após, a professora Annita Castilho Cabral. A cadeira de Psicologia Educaconal teve dois chefes: a professora Noemy Rudolfer e o professor Arrigo Angelini. A professora Annita teve importância fundamental neste processo, pois criou o curso de Psicologia. Foi a pessoa que mais trabalhou para isso. Aliás, tenho todas as atas, todos os documentos a respeito. Sei das lutas que teve que enfrentar para criar o curso de Psicologia, oficialmente aprovado em 26 de novembro de 1953 pelo CTA e em 16 de dezembro do mesmo ano pela Congregação da Faculdade de Filosofia. Depois da criação do curso começaram a funcionar cadeiras que já delineavam os futuros departamentos. E importante lembrar que a professora Annita criou uma especialização em Psicologia clínica no ano de 1954. Ficamos, então, com as cadeiras de Psicologia Educacional, regida pelo professor Arrigo, e com a cadeira de Psicologia, regida pela professora Annita, enquanto os professores Durval Marcondes e Cícero Christiano de Souza respondiam pela Psicologia Clínica, vinculada a esta mesma cadeira. Da cadeira de Psicologia da Filosofia originaram-se os departamentos de Psicologia Social e do Trabalho, a Clínica e a Experimental. Da cadeira de Psicologia Educacional derivou-se o departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Aprendizagem. E dessas estruturas surgiram os departamentos do Instituto de Psicologia, criado em 1970, tendo como seu primeiro diretor o professor Arrigo Angelini. Os outros diretores foram: o professor Dante Moreira Leite, a professora Maria José e, novamente, o professor Arrigo.

Elsa — Professora Zélia, no discurso de sua posse como diretora deste Instituto lembro-me que o senhor reitor deu muita ênfase a seu modo de pensar, relacionando isso diretamente com a sua muito árdua escolha de um diretor para nosso Instituto. Ele salientava exatamente essa perspectiva de implantação de modelos novos dentro do Instituto. Então, eu gostaria de saber quais são os seus objetivos relativamente à Psicologia como ciência, em sua atual administração.

Zélia — O professor Goldemberg queria salientar o interesse epistemológico que orientaria nosso trabalho à frente do Instituto, relativamente a curriculum, projetos e linhas de pesquisa. Minha posição em relação à Pscologia é muito clara. Para mim, a Psicologia é uma ciência biológica, pois toda ciência que estuda um organismo vivo é biológica, No entanto, a Psicologia é uma ciência biológica muito especial porque se relaciona com as ciências humanas que não têm como objeto formal o estudo de um organismo vivo, mas relações de diversos tipos. De outro lado, a Psicologia relaciona-se com a Ética, com sistemas de valores, com a religião, com a fé, com a arte, etc. E, então, uma ciência biológica muito especial. Nesse sentido, no curriculum devem constar os fundamentos biológicos do comportamento, embora frisando que esse organismo é um organismo muito especial, pois o homem, como diz Cassirer, é um animal simbólico; um animal que se relaciona com valores, fé, arte, que sente, que sofre, que tem problemas existenciais. Em Psicologia, estudamos um organismo capaz de construir sistemas lógicos e sistemas de significação. Esse foi o tema de meu discurso de posse.

Elsa — Em seus poucos meses de administração do Instituto de Psicologia já conseguiu alguns frutos desse seu modo de focalizar a Psicologia?

Zélia — Pouco. Confesso que estou um tanto frustrada pois enfrentei greves e outros graves problemas que não deixaram tempo para dedicar-me àquilo que julgo mais importante. Mas, refletindo bem, acho isso natural no início de uma gestão. Espero que 1989 será melhor. Primeiro tratei de "conhecer". Agora partirei para o que "devemos fazer".

 

 

(Revisão e discussão do texto original: Antonio P. R. Agatti)