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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.1 no.1 São Paulo June 1990

 

RESENHA

 

 

Ronilda Ribeiro

Deptº de Psicologia da Aprendizagem do Desenvolvimento e da Personalidade – Instituto de Psicologia-USP

 

 

"A urdidura que preparamos com os fios deve deixar passar a luz para que o amor se
manifeste na trama".
Naíde

 

A arte interior do psicanalista, por Walter Trinca. São Paulo, EPU/EDUSP, 1988.

Como um tecelão urde a trama e cria um tecido, onde a harmonia de formas e cores, permite uma apreciação da beleza do todo e, simultaneamente, da beleza deste ou daquele detalhe, Trinca tece neste seu livro, com fios da mais alta qualidade e com veia criadora, uma obra bela e necessária.

Embora cada capítulo preserve relativa independência em relação aos outros, compõem juntos, um todo harmonioso que vem a constituir importante e necessário espaço de reflexão sobre a prática psicoterápica e, para além disso, sobre o existir humano.

Os fios usados nesse tecido vieram alguns do Ocidente e outros do Oriente — alguns fios grossos e opacos, outros leves, quase transparentes, outros brilhantes: as referências bibliográficas mostram os caminhos percorridos para a aquisição desses fios. Junto a Freud, Bion, Winnicott, Lasch encontramos Lin Yutang, Rabindranath Tagore, T'u'Ch'ihshiu, Gandhi. Ao lado de autores modernos estão alguns clássicos entre os quais Demócrito, Platão, Shakespeare.

Além do prazer que se pode experimentar ao entrar em contato com as idéias e a poesia de Trinca e dos autores por ele citados há o prazer de apreciar o processo de criação da obra. E possível intuir um profundo, lento e amadurecido processo de vivência das idéias apresentadas. Antes da trama surgir do movimento ritmado das mãos, sua forma ideal gestou nas profundezas do ser do autor.

Cada leitor recortará os temas que maior ressonância podem oferecer a suas inquietações pessoais. O que apresento a seguir é apenas uma forma particular de recorte, uma vez que as possibilidades são múltiplas.

"O espaço de acolhimento" (cap.5), "a compreensão empática" (cap. 14), "o significado de reverie" (cap. 15), "a observação perspicaz" (cap. 16) são alguns dos temas básicos do encontro humano em psicoterapia, que são aqui tratados. Questões relativas à Ética são consideradas com o mesmo espírito de profunda reflexão.

Os temas que em meu particular recorte de leitor impuseram-se com mais força foram os seguintes:

a) Imagens intuitivas em psicanálise que, segundo me parece, são perfeitamente generalizáveis para outros procedimentos psicoterápicos.

b) Julgamento das ações do cliente — este tema perpassa, de modo sutil, vários capítulos.

c) Postura pessoal do psicanalista (generalizável para psicoterapeuta) frente à vida.

Em publicações anteriores, cuja leitura sugerimos, Trinca já abordou a questão das imagens intuitivas. Na presente publicação retoma o tema dedicando-lhe os quatro primeiro capítulos do livro. Essas imagens, não exclusivamente visuais, que afloram durante o encontro psicoterápico e que constituem fonte riquíssima de informações sobre os sentimentos mais profundos e significativos do cliente, sobre seus temores e esperanças, sobre os processos que utiliza para posicionar-se no mundo e frente a si mesmo.

E, como fio condutor, ao longo de todo o trabalho, da primeira à última página, fio que ora se oculta por debaixo da trama e ora se impõe nítido como o principal da composição, está o tema relativo à postura do psicanalista frente à vida. Trinca indica elementos fundamentais, absolutamente necessários, indispensáveis para o sucesso do trabalho de cura ou desenvolvimento das pessoas: amor pela vida; um sentimento constante de admiração frente a seu mistério e sua beleza; uma busca do transcendente para além das fronteiras do fenômeno, ou seja, um desejo e possibilidade de intuir a dimensão cósmica que subjaz a cada acontecimento humano. Trinca trata mais explicitamente dessa questão nos capítulos 7 — A experiência da luz, 8 — Sabedoria inconsciente, 10 — Sentimento de presença de vida, 12 — O alargamento do espaço mental, 13 — Rotação de perspectiva, 16 — A observação perspicaz, 17 — A arte do florescimento da individualidade, 18 — O Ser e a verdade, 19 — Um passo além da posição depressiva, 21 — A memória espiritual da humanidade, 22 — A dimensão cósmica, 23 — Tópicos para uma filosofia de vida, 24 — Um estado de ser. Aponta como um dos requisitos para intuir essa transcendência a disposição para maravilhar-se.

"Maravilhar-se com a percepção de fenômenos naturais é encontrar-se em um estado de mente que os sente como algo que sempre existiu no coração humano" (p. 125)

Outro requisito fundamental para o sucesso da psicoterapia é a postura de confiança na vida que o psicoterapeuta deve ter:

"fé na vida que constrói e cuja força desabrocha em beleza" (Tagore, citado por Trinca)

Trinca esclarece na introdução que seu livro não se destina a especialistas em Psicanálise:

"Foi elaborado com a intenção expressa de oferecer ao leitor médio um ângulo de visão a respeito da psicanálise que habitualmente não é dado pela literatura de divulgação, ou seja, o lado humano do psicanalista".

Embora, realmente, o livro possa ser bastante elucidativo e propiciador de reflexões ao leitor leigo, os psicoterapeutas mais que ninguém poderão beneficiar-se de sua leitura. Há espaço nessa obra para o despertar de novas e necessárias inquietações assim como há espaço para compartilhar com o autor, inquietações não tão novas, sempre presentes no exercício da psicoterapia.

Terapeutas também somos tecelões. A arte interior do psicanalista nos propicia espaço para refletir sobre nosso artesanato.