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Psicologia USP

On-line version ISSN 1678-5177

Psicol. USP vol.1 no.1 São Paulo June 1990

 

RESENHAS

 

 

Niélsy Helena Púglia Bergamasco

Deptº de Psicologia Experimental – Instituto de Psicologia- USP

 

 

Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX, por Alain Corbin. Tradução do original francês de 1982, por Ligia Watanabe. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, 367 p.

Somos capazes de distinguir milhares de substâncias através do seu cheiro. Cerca de 30 milhões de receptores em cada narina, nos possibilitam uma extraordinária sensibilidade (embora muitos animais sejam ainda muito mais sensíveis). No entanto, os estudiosos da percepção, em geral, têm dedicado pouca atenção e interesse à pesquisa relativa ao sistema olfatório.

Sem duvida, uma das razões para tal desinteresse é decorrente de problemas metodológicos relativos à dificuldades inerentes ao estudo desta modalidade sensorial, principalmente em seres humanos, mas também em animais. As experiências subjetivas relativas ao olfato não levaram a uma distinção clara entre as diversas qualidades de odores e as muitas tentativas para classificá-los em algumas categorias ou odores "primários", não conseguiram uma aceitação geral entre os pesquisadores. Um outro motivo, para que o olfato permaneça menos estudado pode estar relacionado com a importância dominante de outros órgãos sensoriais, principalmente visão e audição. Mas motivos menos explícitos podem estar subjacentes a esta postura negligente diante do olfato. É na verdade, um sentido considerado "primitivo", e portanto, menos nobre.

Neste sentido o livro do historiador francês Alain Corbin é instigante e provocador, uma vez que ele aborda o comportamento olfativo sob um ângulo diferente, como base para análise de valores, crenças e mesmo preconceitos sociais. Ele nos introduz num mundo fascinante de reconstituição histórica das lutas sociais e do surgimento do mundo burguês através de uma fonte inusitada — o olfato.

Através de uma história da percepção do olfato, o autor reabilita este sentido, considerado tão inferior e abandonado mesmo pelas nossas civilizações audiovisuais O uso dos sentidos e sua hierarquia vivida têm uma história. O estudo do olfato é negligenciado e o discurso científico é bastante hesitante quanto a este assunto. Os estereótipos com relação ao olfato traduzem sentimentos e medos que transparecem na definição do olfato como o sentido do desejo, do apetite, do instinto. Está por trás a marca da animalidade. Farejar iguala ao animal e acuidade olfativa está diretamente relacionada com pouca inteligência e estado selvagem no ser humamo. O uso do olfato é, então, de certa maneira proibido porque farejar, dar provas de acuidade olfativa, gostar de fortes odores animais, reconhecer o papel erótico dos odores sexuais, gera suspeita e atestam falta de refinamento e ignorância dos usos sociais. Ao lado desta conceituação de primitividade, o comportamento olfativo atesta sua importância como sentido de conservação: o nariz avisa sobre o veneno (antes do paladar) e ainda é o melhor analista da qualidade do ar.

Ao traçar um paralelo entre a história dá percepção do olfato e a diferenciação das classes sociais com a ascensão da ordem burguesa e seus valores, o autor analisa o processo de purificação dos odores (ou desodorização) que se estende não só à higienização dos ambiente públicos e domésticos, mas também dos corpos.

Neste nosso mundo atual, extremamente asséptico e mesmo de recusa dos odores, apenas algns exemplares da linguagem coloquial e da literatura, atestam que num passado distante, o olfato foi sem dúvida o sentido de mais importância do que ele é hoje: "Isto não está cheirando bem", "Este negócio cheira a tramóia", "O negócio cheira bem", "Olhava muito pelos cantos e perguntaram-lhe o que viera cheirar ali", "Cheirou logo os milhões que aquele negócio daria de lucro", etc.

Alguma coisa mudou na maneira de perceber e analisar os odores e o autor se pergunta "O que significa esta acentuação de sensibilidade? Como se operou esta misteriosa e inquietante desodorização, que nos torna seres intolerantes a tudo que possa romper o silêncio olfativo de nosso meio ambiente? Quais foram as etapas desta profunda modificação antropológica? Que tramas sociais se escondem por trás desta mutação dos esquemas de apreciação e dos sistemas simbólicos"?

Na primeira parte do livro o autor se dedica a analisar a REVOLUÇÃO PERCEPTIVA OU O ODOR SUSPEITO através dos itens (1) O ar e a ameaça pútrida, (2) Os pólos de vigilância olfativa, (3) Emanações sociais, (4) Redefinir o insuportável e (5) O novo cálculo do prazer olfativo. Na segunda parte, PURIFICAR O ESPAÇO PÚBLICO, ele trata de (1) As estratégias da desodorização, (2) Os odores e a fisiologia da ordem social e (3) A política e os malefícios. Por fim, na terceira parte, sobre ODORES, SÍMBOLOS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS são discutidos (1) O fedor do pobre, (2) "O hálito da casa", (3) Os perfumes da intimidade, (4)A embriaguez e o frasco e (5) "Risos suados", com o desfecho sobre "Os odores de Paris".

Além de escrever de uma maneira clara e agradável, que cativa o leitor, o autor impressiona pela sua erudição e profundidade de estudos sobre o tema ao apresentar, no final, uma extensa discussão de notas referentes a cada um dos capítulos.