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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.2 supl.2 São Paulo dez. 1990

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Áreas secretas - uma questão da modernidade*

 

A secret areas: a question of modernity

 

 

João A. Frayze-Pereira

Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP

 

 


RESUMO

Examina o espaço destinado ao segredo, as condições de sua preservação e sua significação para a constituição da identidade individual nos limites da sociedade moderna. Algumas obras de arte (Botticelli/Bertolucci) são referidas pela análise que elabora a idéia de "sociedade contra-segredo" a partir das noções de "sociedade disciplinar" (M.Foucault) e de "direito ao segredo" (Piera Aulagnier)

Descritores: Arte. Poder. Psicologia Social. Psicanálise.


ABSTRACT

This work examines the place destinated to secret, the conditions of its preservation ans its significance to the constitution of individual identity concerning modern society. Some works of art (Botticelli/Bertolucci) are refered by the analysis which elaborates the idea of "counter-secret society". This idea is based on the notions of "disciplinary society" (M. Foucault) and of "right to secret" (Piera Aulagnier).

Index terms: Art. Power. Social Psychology. Psychoanalysis.


 

 

Sobre a idéia de modernidade, logo de início, convém lembrar pelo menos um ponto de agudíssima reflexão empreendida por Octávio Paz. Da leitura de Os filhos do Barro (Paz, 1984, p.39), somos levados a compreender que em todas as sociedades se verifica "de um modo ou de outro, aberta ou veladamente, a 'querela' dos antigos e dos modernos' ". E, no entanto, compreendemos também que "a modernidade é um conceito exclusivamente ocidental" (p.43). Explicando melhor: se de um lado "há tantas 'modernidades' como épocas históricas", de outro lado, "nenhuma sociedade, nem época alguma, denominou-se a si mesma moderna — salvo a nossa" (p.39). Que significa essa designação? Que implicações dela decorrem?

Mostra O. Paz que, realizando um pacto com a permanência, as sociedades humanas escolheram denominarem-se através do "nome de um deus, uma crença ou um destino: Islamismo, Cristianismo, Império do Centro..." (1984, p.39; 1967, p.22). São nomes que supõem a idéia da imutabilidade ou, pelo menos, da estabilidade. São emblemas que articulam todo um campo de sentidos no qual cada sociedade se funda e pelo qual se define para si mesma e para as outras, diante das quais ao mesmo tempo se afirma e se diferencia. São termos que resumem uma dinâmica pela qual o mundo se parte em dois: "cristãos — pagãos, muçulmanos — infiéis, civilizados — bárbaros, toltecas — chichimecas... nós - eles" (1984, p.39).

Ora, através de nossa sociedade o mundo também se divide: interiormente há o "moderno" em oposição ao "tradicional" e, do lado de fora, os "outros" que diante da "sociedade moderna" são invariavelmente "atrasados". Com efeito, se aos olhos do cristão a inferioridade do desconhecido residia em não compartilhar sua fé, se para os antigos gregos a estranheza do estrangeiro estava em sua barbárie, para o moderno, os outros definem-se simplesmente por seu "atraso". Isto é, "o Ocidente identificou-se com o tempo e não há outra modernidade senão a do Ocidente. Restam apenas bárbaros, infiéis, gentios, imundos (...) subdesenvolvidos..." (Paz, 1984, p.40). No entanto, designando-se com um adjetivo vazio, a sociedade moderna expõe sua raiz contraditória, pois "se a modernidade é uma simples conseqüência da passagem do tempo, escolher como denominação a palavra moderno é resignar-se a perder de antemão e de repente o seu nome. Como se chamará no futuro a época moderna?" Esta questão sem resposta, formulada por O. Paz (p.39), é básica para a compreensão da sociedade que se pretende e se designa a si mesma moderna, uma vez que diz respeito à sua própria identidade, pela maneira mesma como essa sociedade se relaciona com o tempo. Se, por definição, o futuro é intocável, o homem moderno, no entanto, não mede esforços para atingi-lo — esse desconhecido que está em nós e fora de nós, esse "ímã do presente" e "pedra de toque do passado" (1984, p.51). Como o mundo moderno está condenado a deixar de sê-lo, o homem moderno ao se chamar assim corre o risco de perder o que lhe é próprio. É o que sua história revela, a história de uma separação, uma espécie de suplício, daqueles que só um Dante, ou alguém de mesma índole, poderia imaginar. Escreve O. Paz:

Nos buscamos na alteridade, nela nos encontramos e, depois de confundirmo-nos com esse outro que inventamos e que nada mais é que nosso reflexo, nos apressamos em separar-nos desse fantasma, deixamo-lo para trás e corremos outra vez à procura de nós mesmos, no rastro de nossa sombra. Contínuo ir para além, sempre para além — não sabemos para onde (p.48-49).

Mais precisamente, a busca de coincidência consigo mesmo e a impossibilidade de realizá-la inteiramente são os termos que resumem a aventura do homem moderno; moderno, como assinalamos, porque a época em que vive — esse período claramente consolidado "no século XVIII e que talvez chegue agora ao seu ocaso — é a primeira época que exalta a mudança e a transforma em seu fundamento. Diferença, separação, heterogeneidade, pluralidade, novidade, evolução, desenvolvimento, revolução, história — todos esses nomes condensam-se em um: futuro. Não o passado nem a eternidade, não o tempo que é, mas o tempo que ainda não é, que sempre está a ponto de ser". Ou seja, a época moderna condenou-se a ser sempre outra, a negar-se inteiramente a si própria (passado/presente) para se perpetuar. Mas, nessa medida, perpetuar o quê? Diz O. Paz: "os antigos olhavam o futuro com temor e repetiam vãs fórmulas para conjurá-lo; nós (os modernos?) daríamos a vida para conhecer o seu rosto radioso — um rosto que nunca veremos" (p.35, parêntesis nossos).

Compreendida através do movimento temporal que a funda, a sociedade moderna revela-se, por se dizer moderna, essencialmente voltada para um horizonte de sombras, o que a impede de coincidir consigo mesma e de se cristalizar numa identidade fixa, a não ser através de dispositivos específicos que mais adiante explicitaremos. Por ora, é preciso deixar claro que o moderno qualifica uma sociedade para a qual a própria identidade é uma questão aberta — aberta porque sua determinação está sempre por vir, porque sua configuração depende de um tempo que ainda não é, sendo, nessa medida, não-conhecida e, em certo sentido, oculta e secreta. E graças a essa dinâmica acionada pelo negativo, o que se impõe inicialmente à discussão, nos limites internos da modernidade, é essa questão central na Psicologia Social, pois tanto diz respeito à sociedade como, igualmente, toca o indivíduo: a própria questão da identidade. Modernidade e identidade: será possível aprofundar mais a relação entre esses termos?

No plano da cultura, duas obras do Quattrocento concretizam essa temática e irão nos servir de referência inicial para a análise que começamos a desenvolver. Trata-se das obras Primavera e Nascimento de Vênus, ambas de Botticelli.

Em seu ensaio intitulado As Mitologias de Botticelli, o historiador da arte Gombrich (1983) menciona uma carta de Marsílio Ficino, que era médico e sacerdote, para Lorenzo de Medici, onde Ficino afirma estar oferecendo um "imenso presente" ao jovem Medici. A carta diz: "para qualquer pessoa que contemple os céus, nada em que puser os olhos parecerá imenso, a não ser o próprio céu. Se, portanto, eu lhe fizesse presente do próprio céu, quanto valeria isso?" (1983, p.73).

Esse "imenso presente" ou "presente dos céus" fora encomendado por Ficino para dá-lo a um Mediei. No entanto, será que diante da Primavera de Botticelli saberíamos estar contemplando um "presente do próprio céu", isto é, uma pintura no sentido próprio do termo renascentista?

A Primavera é pintura porque é "figura do mundo" (mundi figura), isto é, "um talismã" (Yates, 1987, p.90). A Primavera é uma figura do universo disposta a atrair os planetas favoráveis e a evitar Saturno que é o responsável pela melancolia e a estrela inimiga das forças vitais e da juventude. A fabricação da Primavera destinava-se a oferecer a cura mágica ou a prevenir magicamente o mal maior, a melancolia. A historiadora inglesa Frances Yates (1987, p.76) mostra que através da composição rigorosa dos elementos anti-saturnais — cores, signos, emblemas de Vênus, Sol e Júpiter — a Primavera fora feita com este propósito: imprimir no olho e no espírito os vínculos solares e joviais do mundo. O presente, diz Frances Yates, deveria ser utilizado para reflexão; é pura magia numa forma visual, um complexo talismã, que não se destina a ser apenas contemplado, mas refletido e relembrado no íntimo:

o homem que olha fixamente para a figura do mundo, no teto de seu quarto de dormir, imprimindo-a na memória, e também às cores dominantes dos planetas, ao sair de sua casa, quando vir inúmeras coisas individualmente, é capaz de unificá-las, graças às imagens de uma realidade mais elevada que tem dentro de si (p.89).

Com efeito, essa pintura de Botticelli, no centro da qual figura Vênus, tinha por função atrair para a Terra o espírito da estrela e transmiti-lo a quem meditasse diante de sua linda imagem(1). E, nessa medida, a Primavera de Botticelli é dessas obras que reforçam, ainda hoje, a identificação que se faz entre arte e beleza. Nela o negativo não aparece, nem pode aparecer, uma vez que é para prevenir a sua eclosão que ela fora intencionalmente fabricada. O quadro no seu conjunto transpira ordem e harmonia, conjunção bem modulada de todas as partes no todo, justa proporção de seus elementos na composição global. Em uma palavra: o quadro poderia ser a personificação da categoria sensível da beleza. E, realmente, com pés que tocam levemente a terra, a Vênus representada no reino mesmo da Natureza é uma Vênus terrestre, princípio sensível da beleza e princípio pelo qual se orienta o erotismo na sua dimensão sensível e produtiva, na sua dimensão de fertilidade, de primavera. Nesse quadro de Botticelli, a Beleza se mostra constituída. Será numa segunda obra que o pintor buscará compor a beleza constituinte, em estado nascente. Trata-se do Nascimento de Vênus.

Ora, o que vemos nessa imagem pouco tem a ver com o próprio nascimento de Afrodite, nascimento que é rude, emocionante e comovente. A mutilação de Urano, sua virilidade que é lançada ao mar, todos os antecedentes terríveis na mitologia são omitidos. Da cena sinistra originária em que Cronos corta os genitais paternos, permanece apenas uma alusão de caráter metonímico: a espuma do mar em que se transformou o sêmem de Urano e da qual nasceu Afrodite. O Nascimento de Vênus não é, portanto, um título adequado ao quadro de Boticelli, afirma Kerényi (1980, p.145), uma vez que representa a chegada de Afrodite a Chipre, conforme o hino homérico ou, melhor ainda, a intronização de Afrodite no mundo moderno. Uma Afrodite Moderna, já nascida, como uma pérola em sua concha, marcada pela vergonha da nudez e pronta para ser envolvida pelo manto terrestre que Flora lhe oferece. E, no entanto, é porque a revelação sinistra do ato inaugural foi omitida que, segundo E. Trías (1982, p.59), essa composição é bela, entendendo por beleza a revelação fugidia e instantânea, uma aparência de algo resplandecente que tem por suporte um fundo tenebroso. Em outras palavras, esse quadro de Botticelli permite-nos, a nós modernos, evocar o instante originário em que a deusa emergiu no seio maternal das águas (Kerényi, 1980, p.146). No entanto, introduzida no mundo moderno com signos de vergonha, Afrodite, inteiramente voltada para o futuro, tem sua origem esquecida ou, talvez pudéssemos dizer, deixada na sombra como segredo.

Que significa isso? Que sentido possui esse movimento que ao mesmo tempo em que expõe, oculta?

Logo no início de A vontade de saber, Foucalt mostra a respeito da sexualidade que "sob a capa de uma linguagem que se tem o cuidado de depurar de modo a não mencioná-lo diretamente, o sexo é tomado, e como que encurralado, por um discurso que pretende não lhe permitir obscuridade..." Quer dizer, "o característico das sociedades modernas não é terem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim terem-se dedicado a falar dele ininterruptamente, valorizando-o como o segredo" (1976, p.49).

E, no entanto, aqui cabe a pergunta: há na sociedade que se diz moderna espaço para o segredo?

***

Em várias de suas obras, mas sobretudo em Vigiar e Punir, Foucault (1975) realiza uma análise de componentes essenciais da modernidade, análise que nos pormitirá aprofundar um pouco mais a questão que formulamos.

Na segunda metade do século XVIII, observa Foucalt (1979a, p.216), há um grande medo dos espaços escuros que impedem "a total visibilidade das coisas, das pessoas, das verdades". Que espaços escuros são esses? São os espaços onde se fomentam o arbitrário político, os caprichos da monarquia, dos tiranos e dos padres da Igreja, as ilusões da ignorância, as epidemias, os vícios e a corrupção — tudo aquilo que precisa ser eliminado para que uma nova ordem política e social se instaure. Essa sociedade moderna, que se configura a partir da segunda metade do séc. XVIII, Foucault (1975) designa "sociedade disciplinar", isto é, uma "sociedade de vigilância", de "ortopedia social". E que se caracteriza basicamente como um modo de organizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar e registrar continuamente os homens e sua conduta. Trata-se de um modo de funcionamento que tende a eliminar o oculto, protegido pelas sombras, através da luz e do olhar. Trata-se de uma ordem social na qual "a visibilidade é uma armadilha" (1975, p.202). Trata-se de uma sociedade que dá lugar ao nascimento de determinados saberes onde o modelo prioritário de estabelecimento da verdade é o exame, exame pelo qual se instaura um modo de poder segundo o qual a sujeição não se realiza na forma negativa da repressão, mas no modo sutil da produção positiva de gestos, atitudes e hábitos a definirem o indivíduo ou o que se espera dele segundo a "norma" prescrita. E mais ainda: concomitantemente ao surgimento dos saberes e ao exercício dos poderes disciplinares, instauram-se também certas instituições a eles vinculadas. E, como se sabe, Foucault (1975, p.197 e segs.) encontra como modelo prenunciador dessas instituições um projeto de arquitetura elaborado pelo jurista inglês J. Bentham. Trata-se do "Panopticon", uma tecnologia de poder própria para resolver os problemas de vigilância, para extrair dos indivíduos um saber, um saber sobre esses indivíduos submetidos ao olhar e controlados por ele. Trata-se, portanto, de um saber sobre os indivíduos que nasce da sua observação, da sua classificação, da análise de seus comportamentos, da sua comparação, etc. O exame transforma cada indivíduo num caso e, portanto, num objeto de conhecimento. Ou seja, o exame opera uma transformação no modo de manifestação do poder. Como mostram Dreyfus & Rabinow (1984, p.229 e segs.), nas formas tradicionais do poder em que há relação de soberania, o próprio poder se fazia luminosamente visível nas vestes reais, nas cerimônias e rituais. Os indivíduos permaneciam na sombra, indiferenciados no coletivo. O poder disciplinar inverte essas relações. É ele que busca inicialmente a invisibilidade, impondo a seus objetos o máximo de visibilidade, visibilidade que é correlata à vigilância. Mas logo, diante dos objetos disciplinados ele próprio virá a se mostrar através de seus dispositivos. O assustador nas sociedades mosdernas é que esses dispositivos disciplinares não são resguardados como objetos secretos. Ao contrário, o que se verifica, como afirma Arlindo Machado num trabalho recente, é que eles "se esparramam pela paisagem vigiada, oferecendo-se como espetáculo aos seus próprios protagonistas, para que o olho público assuma ele próprio a tarefa da vigilância" (1990, p.28) — olhar público, entretanto, que para si mesmo é invisível.

Foucault (1979b, p.89) demonstra a amplitude econômica e demográfica desse fonômeno, o Panópticon, a ponto de não ser possível falar dele como de uma espécie de utopia. Ao contrário, projeto plenamente realizado sob várias formas institucionais, já no começo do século XIX — na forma fabril ("as fábricas-prisões"), nas formas pedagógicas, correcionais e terapêuticas — dá a medida de sua importância, sobretudo política. E Arlindo Machado (p.32) justamente tematiza a realidade cruel desse mundo "que toma para si o destino do Panóptico", analisando o que denomina "máquinas de vigiar". Considerando os mais variados contextos — aeroportos, estações de trem e metrô, trânsito nas ruas, supermercados, bancos, lojas, escolas, fábricas, motéis, além das chamadas instituições totais — o autor denuncia a presença de sistemas eletrônicos de vigilância que se multiplicam pelas várias regiões do globo. A descrição impressiona porque confirma as previsões de Bentham, porque nos apresenta um quadro no qual o Panoptismo se encontra universalizado e plenamente realizado; através de máquinas sofisticadíssimas o cotidiano moderno de um indivíduo qualquer pode ser concretamente vasculhado de modo invisível e indolor. Exemplo: na cidade de Hamburgo, o departamento municipal de trânsito possui controles através dos quais "pode-se dar um close-up sobre qualquer transeunte que circula pelas calçadas, segui-lo secretamente até seu destino, 'cortando' de uma câmera para outra, penetrar em sua intimidade e desvendar seus segredos" (Machado, 1990, p.24). Mas, das inúmeras situações analisadas, essa é das mais simples. Com os progressos da chamada Inteligência Artificial, por exemplo, a presença de um vigilante tende a ser totalmente suprimida. Trata-se da automação da percepção, de uma " 'Visão sem olhar' ", através da qual delega

se à máquina a função disciplinar, despersonalizando, conseqüentemente e "em definitivo, o exercício do poder" (Machado, p.26).

Ora, como também já havia sido observado por Foucalt (1975, p.203), Machado assinala que mais do que a vigilância real, que pode ser descontínua ou até inexistente, na modernidade o que importa é a "sujeição real" decorrente de uma "relação imaginária". Isto é, "a vigilância torna-se função representativa de um código disciplinar, cujos designantes simbólicos são os olhos técnicos espalhados na paisagem" (p.26). Mas haja ou não um vigia real, o resultado é sempre "a perda progressiva da privacidade do cidadão" (p.28). Este, na medida em que retoma por sua própria conta as coerções do poder anônimo que se exerce sobre ele, acaba por se tornar "o princípio de sua própria sujeição", para concluir com as palavras de Foucalt (1975, p.204). E de um modo gradual e sinistro, pode vir a ser alguém que se impede o direito a qualquer segredo, tendendo a perder qualquer transcendência, a ver-se como superfície lisa e fria, sem profundidade alguma, um fantasma visível para si mesmo e para os outros.

Não queremos dizer com isso, entretanto, que o sujeito fica destituído de qualquer pensamento. Uma das metas da ordem disciplinar que, no limite, tende a fazer do homem um robô, é impossibilitar ou, pelo menos, tornar sem objeto e sem prazer qualquer pensamento secreto:

só com essa condição os sujeitos poderiam se curvar à ordem de um tudo dizer tornando aceitável por ter como pressuposto a substituição de uma simples atividade de repetição e de memorização automática àquilo que era atividade de pensar e criação de idéias (Aulagnier, 1976a, p.142).

Seria ingênuo imaginar que a disciplinarização impede o pensamento. Ao contrário, lembra-nos a psicanalista Piera Aulagnier (p.151), "ter que pensar", "ter que duvidar", "ter que verificar os pensamentos" são "exigências às quais o Eu não pode se esquivar, o preço pelo qual paga seu direito de cidadania no campo social e sua participação na aventura cultural". No entanto, o que a ordem disciplinar tende a interditar ao indivíduo é o encontro de

momentos nos quais possa gozar um puro prazer ligado à presença de um pensamento que não tenha outra finalidade que não seja refletir-se sobre si mesmo, que não tenha a ver com a dúvida e com a verificação porque não se dirige a nenhum destinatário exterior, um pensamento que não tenha outra meta que não seja a de garantir ao sujeito a existência de um ganho de prazer ligado à atividade de pensar em si mesma (Aulagnier, 1976a, p.151).

E isto significa que o indivíduo moderno, disciplinado, é um indivíduo que, em princípio, não tem direito a nenhum segredo. Ou, mais exatamente, se o indivíduo for portador de algum, o zelo se mostrará necessário, pois, como alerta Deleuze, (1988, p.63), na modernidade "o segredo só existe para ser traído, trair-se a si mesmo". Ora, que implicações decorrem dessa condição para o próprio indivíduo, além do risco da robotização?

***

Procurando circunscrever a problemática noção de identidade segundo a teoria psicanalítica, Jurandir Freire Costa (1986, p.86) faz uma série de apontamentos dos quais destaco o seguinte: "No ensaio 'As Teorias Sexuais Infantis', Freud valoriza de modo inequívoco, se bem que implícito, o papel do segredo na constituição psíquica da criança". E, na verdade, apenas dois, entre alguns outros poucos autores, chegaram a tematizar diretamente essa questão: Gerald Margolis (1976) e Piera Aulagnier (1976a).

Comentando as idéias desses autores, Freire Costa (p.84) mostra como Margolis parte de Erikson mas ultrapassa-o na descrição da identidade. Se, para Erikson, a identidade "é o sentimento experimentado pelo sujeito de que sua existência apresenta uma constância e continuidade perceptíveis internamente por ele próprio e, externamente, pelos outros", Margolis vai além dessa caracterização: a identidade é descrita do ponto de vista do "sentimento de ser a parte, de ser diferente dos outros", sentimento primordialmente derivado da experiência sensível da alteridade física do outro, mas, sobretudo, da criação, no sujeito, de "segredos pessoais". Diz Margolis (p.132) "é somente quando a criança começa a dar-se conta de que existem coisas sobre si mesma que ela sabe e outros não (os segredos) que pode sentir-se separada e independente e ser um indivíduo (pelo menos nestes domínios secretos). Nesses domínios secretos, ela é um ser à parte e independente daqueles que não estão à par de seus segredos".

Num trabalho em que realiza a análise etimológica e semântica da palavra "segredo", Arnaud Lévy (1976) mostra que o termo articula todo um conjunto de significados ambivalentes, correspondentes a um momento do desenvolvimento infantil em que a criança se confronta com sua identidade de sujeito. Nesse momento, o segredo é basicamente um "saber-que-se-esconde-do-outro". E, com efeito, como G. Margolis (1976, p.132-3) demonstra, a criação dos segredos prende-se à uma exigência, psiquicamente vital para o sujeito, de lidar com certas situações interpessoais, justamente na posição de quem possui um saber sobre algo que o parceiro da relação desconhece.

Piera Aulagnier (1976a) vai radicalizar essas idéias. Sem dúvida o segredo é psiquicamente vital para o sujeito, porém, porque é a condição mesma de possibilidade do pensamento exercer-se. E mais do que isso, é a condição de exercer-se com prazer, prazer que não é dado pelo conteúdo (p.ex: fantasias eróticas), mas pela própria atividade de pensar. Assim, dirá Freire Costa (1986, p.87): "prazer de pensar e liberdade de pensar em segredo são sinônimos mentais e condição sem a qual torna-se impossível ao sujeito constituir sua identidade, diferenciando-se do outro".

Para Piera Aulagnier, é necessário que o enunciado do outro possa ser posto em dúvida para que o Eu conquiste sua autonomia. Escreve essa psicanalista:

o primeiro testemunho desta autonomia será a possibilidade de pensar secretamente" (1979, p.38). E mais: "Poder exercer um direito de prazer sobre sua própria atividade de pensar, reconhecer o direito de pensar que o outro não pensa e não sabe o que pensamos é uma condição necessária ao funcionamento do Eu. Mas o acesso a este direito pressupõe o abandono da crença no todo saber do porta-voz, a renúncia a encontrar na cena do real uma voz que garanta o verdadeiro e o falso, (...). Isto é possível quando a criança descobre que o discurso do porta voz diz a verdade, mas também pode mentir (...) A descoberta que o discurso pode conter a verdade ou a mentira é, para a criança, tão fundamental quanto a descoberta da diferença dos sexos. Poder duvidar do que é ouvido é tão indispensável quanto poder duvidar da realidade de uma construção que se revela sob a égide da fantasia (...) Será só a esse preço que o sujeito poderá questionar o Outro — e se questionar — a respeito de quem é o Eu, a respeito da definição que o discurso fornece da realidade, e da intenção que motiva o discurso do Outro e dos outros (1976b, 425).

Ora, se por uma lado, vimos que a sociedade disciplinar não se define pelos espaços secretos (objetos de vigilância), a condição vital para o funcionamento do Eu, psicanaliticamente, repousa nas possibilidades e no direito do sujeito criar pensamentos, de escolher os pensamentos que comunica e os que guarda secretamente. "A perda do direito ao segredo, diz Aulagnier (1976a, p.143), leva junto com um a mais para ser reprimido, um a menos a ser pensado: duas eventualidades que levam ao risco de tornar impossível a atividade de pensar e a própria existência do Eu".

É esta perda, sentencia a psicanalista, que está na base da psicose. E é a possibilidade dessa perda que ameaça a identidade do indivíduo nas sociedade disciplinares.

Quanto a isso, é preciso lembrar que justamente Foucault (1979a, p.225) quem nos fala de formas de resistência ao poder Panóptico. Numa entrevista de 77, aborda as revoltas contra o olhar verificadas no séc. XIX e enumera exemplos.

Mais recentemente, Cenise Monte Vicente, que trabalhou durante alguns anos no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, relata num texto impressionante formas de revolta contra o olhar vigilante que observou nas práticas de perfuração de olhos — dos outros e de si mesmos — efetuados pelos pacientes internados.

E Amina Maggi, psicanalista de inesquecível estilo de interpretação, numa análise da obra de Bertolucci O Último Tango em Paris, ressalta as constantes alusões às áreas secretas de pessoas e de situações humanas configuradas no filme.

É um filme que mostra tudo, excessivamente', comentavam alguns expectadores ao sair da sala de projeção. E realmente em termos físicos a visão é completa. A posse entre os amantes é total, com penetraçõs mútuas de vários tipos, em entrelaçamentos plásticos de braços e de pernas nos quais se torna sempre mais completo, pelos cinco sentidos, o conhecimento recíproco no plano sexual.
Mas... porém a não ser esta verdade parcial e momentânea, todo o restante fica excluído do contato, nos primeiros encontros. Quem é o parceiro? Que idade tem? De onde vem? Quais seus pensamentos? O que realmente falta? Para onde irá? Estas e muitas outras perguntas ficam sem resposta ou mesmo permenecem sem serem formuladas. Até o nome dos dois parceiros deve ficar desconhecido, para que nada da verdadeira identidade escape, e o anonimato proteja do perigo de ser invadido nos meandros da própria personalidade, ou de entrar nos da outra. Neste terreno de reserva, incógnitas, pudor íntimo, é que proponho a existência de "áreas secretas" como algo que as pessoas querem preservar dentro de si, mesmo nos momentos de aparente total entrega a outro ser, e a revelia das possíveis tentativas alheias em invadir tais segredos (1980, p.34).

Nesse filme de Bertolucci tem-se um exemplo do ponto limite de relação com o sinistro que, ao invés de permanecer oculto e secreto como em Botticelli, se revelou, se fez presente aos nossos olhos. E, no entanto, nas últimas cenas, o amante, antes um rígido defensor do apartamento secreto e das "áreas secretas", torna-se para sua parceira um violentador delas. "Quero saber o seu nome" — é o último pedido dele. E a resposta é um disparo mortal.

A personagem feminina, cúmplice do outro no anonimato, é alguém que num ato de preservação final de sua intimidade, de uma área absolutamente não penetrável, significada pelo nome, seu nome próprio, mata o amante, e, no mesmo instante do assassinato, inventa novos segredos para quem lhe perguntar sobre o ocorrido — "Não sei quem é. Não sei como se chama, qual o seu nome. Não sei quem é. Quis, entretanto, violentar-me". E, "com essas palavras, que tentam deturpar os fatos, de certa forma a moça diz simbolicamente verdades, pois alude à violência de pretender invadir áreas secretas... e à loucura de entregá-las indevidamente" (Maggi, p.30). E é essa uma questão básica com a qual se defronta o indivíduo moderno.

Lendo Jurandir Freire Costa (1986, p.169) aprendemos que se o indivíduo moderno é alguém cuja identidade é qualificada pelo narcisismo, é porque se trata de um indivíduo violentado antes de ser narcisista. Ou seja, é a violência cotidiana a que está submetido que explica seu narcisismo e qualquer aparência patológica que ele pode vir a assumir. É uma violência, escreve A. Maggi (p.45), que "se exerce contra o próprio Eu e tem como finalidade destruí-lo", trata-se da apropriação por um outro de um "direito de existir que se manifestará de maneira evidente na vivência psicótica". Em suma, trata-se de uma operação que expressa o receio do Outro de ter que lidar com uma personalidade pouco transparente. Nessa medida, o "direito ao segredo" pode-se concluir, é não só um direito, mas uma condição fundamental da singularidade, pois "se o direito de dizer tudo, como tão bem escreve Blanchot, é a própria forma da liberdade humana, a ordem de tudo dizer implicaria, para o sujeito ao qual fosse imposta, um estado de escravidão absoluto..." (Aulagnier, 1976a, p.141). Tão fundamental quanto o sonho para a atividade psíquica é um ato de liberdade, às vezes obtido com muita dificuldade e ações de contra-violência, é o que Piera Aulagnier (p.151) designa "o preservar-se o direito de gozar momentos de prazer 'solitário' que não caiam sob o golpe da interdição do erro, da culpa". Na sociedade moderna, uma sociedade atravessada por dispositivos que almejam perversamente a transparência de todos os recantos da vida social, dispositivos ordenados por um princípio contra-segredo, todo esforço de preservação daquele direito significa um ato micro-político — louco, dirão alguns — de resistência não programada à opressão disciplinar.

 

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À memória de Amina Maggi
* Este texto possui uma pequena história. Foi inicialmente elaborado por ocasião de una das provas a aula — do concurso de efetivação, realizado no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho em Março de 1989. Passado um ano, ligeiramente ampliado, foi apresentado na mesa redonda "Indivíduo e Sociedade: a Visão Atual nas Ciências Sociais", durante o 17º Encontro Nacional de Estudos Rurais e Urbanos, promovido pelo CERU — Departamento de Sociologia da FFLCH-USP, em maio de 1990. A versão aqui apresentada é mais ampla que as anteriores e elabora a noção de "sociedade contra-segredo".
(1) Com grande poder de síntese, F. Yates expõe a magia de Ficino baseada numa teoria do spiritus, no cap. IV da obra citada.