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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.2 supl.2 São Paulo dez. 1990

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Concepções etiológicas de pacientes psiquiátricas sobre doença mental

 

Ethiological conceptions of psychiatric patients about mental illness

 

 

Tânia M. J. Aiello TsuI; Valdenir TofoloII

IDepartamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP
IIPsiquiatra da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo; ex-diretor do Hospital Psiquiátrico de Vila Mariana

 

 


RESUMO

Partindo do reconhecimento de que a assistência psiquiátrica pública baseia suas práticas institucionais sobre discurso legitimador de cunho organicista, investiga sua penetração ideológica junto à clientela, através de entrevista individual de 60 mulheres internadas. Constata que é pequena a penetração do discurso competente, predominando, entre os sujeitos, explicações psicossociais.

Descritores: Psicopatologia. Hospitais psiquiátricos. Doença mental (atitudes em relação à).


ABSTRACT

Starting from the acknowledgment that the public psychiatric assistance has its institucional legitimacy based on theoretical model of an organicistic type, the authors investigate the ideological penetration of this model among the patients. Analysing individual interviews of sixty interned women, they conclude that psychosocial explanations are predominant among the individuals.

Index terms: Phychopathology. Psychiatric hospitals. Mental illness (attitudes toward).


 

 

Considera-se, atualmente, que a definição de critérios de saúde e doença, em psicopatologia, é uma questão crucial. Tal fato decorre do reconhecimento de que a doença mental passou a ser diferentemente focalizada a partir do momento em que se percebeu, com clareza, que o saber e a prática psiquiátricas cumprem um certo papel social (Birman, 1982). Esse papel consiste na produção de um discurso competente (Chauí, 1984), em função do qual se fundem e se justificam práticas institucionais no interior de uma sociedade constituída por classes que têm interesses antagônicos. Evidentemente, a desconsideração desse dado fundamental permite a adoção de uma posição que pode pensar a história da psiquiatria como uma ascensão triunfal desde um estado de ignorância para outro de sabedoria científica e sentimento humanitário (Foucault, 1961), o que fundamenta o pensamento de que a concepção da loucura como doença mental corresponde a uma apreensão total de sua verdade. Por outro lado, a nítida colocação da psiquiatria como prática social propicia o desvelamento do discurso psicopatológico, que passa a ser encarado, na qualidade de discurso científico, como inevitavelmente ideológico (Véron, 1970). Dito em outros termos, proposições que se apresentavam como universais e verdadeiras podem ser reconhecidas como estando a serviço de interesses particulares de manutenção da ordem vigente.

A ideologia dominante vende uma determinada imagem da realidade como verdadeira para conseguir a manutenção dos privilégios de classe. Essa imagem deve ser internalizada por todos como universal e inquestionável para garantir sua eficácia. A disseminação da ideologia se faz, evidentemente, através de práticas sociais. Os intelectuais ocupam importante papel na difusão e consolidação da ideologia, na sua qualidade de detentores do saber. Trabalham, basicamente, como "funcionários" da classe dominante (Gramsci, 1982), produzindo discursos e intervenções que, à medida em que apresentam como "científicas", adquirem um grande poder de convencimento.

Na área psiquiátrica, em nosso país, o discurso competente é o médico organicista, pois, apesar da grande penetração cultural do pensamento psicanalítico, é ainda ao redor do primeiro que se organizam práticas assistenciais públicas. O modelo organicista funda-se sobre uma visão elementarista e mecanicista, sendo que sua adoção resulta na concepção da doença mental como fenômeno que ocorre dentro do espaço corporal individual. A subjetividade do indivíduo, assim como sua dimensão social, são descartadas, de modo que se opera uma redução do sujeito à condição de mecanismo danificado sobre o qual se devem proceder certas ações reparadoras. Esse discurso serve tanto à desconsideração de determinantes psicossociais da loucura, como à confecção de uma fachada aparentemente humanitária e terapêutica que encobre o fato de que a assistência psiquiátrica pública cumpre, em última instância, uma função reguladora do espaço social. Evidentemente, quando se desvenda a dimensão ideológica do modelo organicista, não se objetiva negar a existência de um nível orgânico de determinação da doença mental (Bleger, 1977). O que se critica é o uso de uma noção que pretende por si só esgotar a verdade de um fenômeno através de uma manobra reducionista que se fundamenta numa concepção causal característica do materialismo mecanicista. O grave, obviamente, é que tal concepção legitima intervenções concretas sobre seres humanos. A idéia de organicidade, ideologicamente utilizada, não admite a consideração do nível psicossocial, visando, ao contrário, impedir sua emergência e conhecimento. Além disso, toma como certeza estabelecida o que não passam, no atual estágio do conhecimento, de hipóteses, principalmente no que se refere às principais afecções psicopatológicas (Laing, 1964).

Uma vez que o modelo organicista é o predominante em termos de assistência pública, pode-se considerar como importante a seguinte questão: até que ponto a ideologia que o discurso competente veicula é internalizada? Particularmente interessante é a investigação acerca de como o grupo que é objeto das práticas institucionais e sujeitos na experiência da loucura assimila ou não tal ideologia.

Encontram-se, na literatura, alguns trabalhos de pesquisa concernentes às opiniões e concepções de pacientes psiquiátricos sobre doença mental. Muito embora padeçam da falta de reflexão teórica adequada, devem ser considerados em função dos dados que oferecem.

Jones et alii (1963) desenvolveram um questionário de cinqüenta e sete itens a ser respondido através do uso de uma escala de quatro pontos, aplicando-o a sessenta e dois internados que constituíam a totalidade dos pacientes de um hospital escola. Pesquisaram atitudes em relação aos seguintes tópicos: concepções sobre doença mental, estigma, tratamento, internação, profissionais, controle institucional, atividades oferecidas e duração da hospitalização. Especificamente em termos das concepções acerca da doença mental, verificaram que os pacientes pensam-na em termos psicológicos, ou seja, como resultado de experiências de relacionamento interpessoal e como parcialmente devidas ao próprio comportamento. A doença mental é, ainda, vista como intimamente ligada às emoções e aos sentimentos, não sendo considerada de caráter hereditário. Entretanto, os pacientes admitem, contraditoriamente, que cabe ao hospital psiquiátrico tratar de seu sistema nervoso e de seu cérebro, o que leva os autores a destacar a coexistência de um conceito físico-orgânico e de um conceito psicológico. Prosseguindo nessa contradição, os sujeitos declaram que esperam que o psiquiatra lide com sentimentos e emoções de seus pacientes, que conheça detalhadamente sua vida pessoal para melhor tratá-los e que lhes ensine modos de viver melhor. Ou seja, têm expectativas no sentido de que o psiquiatra assuma um papel nitidamente psicoterapêutico. Os autores ainda ressaltam que há concordância entre o ponto de vista dos internados e a orientação psicológica desse hospital universitário onde realizaram sua pesquisa e onde, aliás, encontra-se uma proporção paciente-pessoal particularmente favorável. Suspeitam, assim, que as atitudes dos pacientes possam variar de acordo com a orientação institucional.

Entretanto, trabalhos realizados em outros hospitais, muitos deles estatais, relatam concepções etiológicas de pacientes que coincidem em muitos pontos com as relatadas por Jones e seus colaboradores. Por exemplo, pode-se citar o interessante trabalho de Weinstein & Brill (1971), que compararam concepções etiológicas de pacientes psiquiátricos com concepções de não pacientes. Seus dados permitem concluir que pacientes e normais apresentam diferentes concepções em relação à doença mental. As causas mais citadas pelos pacientes são, ordenadamente, as seguintes: problemas ambientais, desordens emocionais e dificuldades comportamentais e interpessoais. Similarmente, os não-pacientes citam as seguintes causas, pela ordem: fatores hereditários e orgânicos, problemas ambientais e desordens emocionais. Constatam que as diferenças são significantes no sentido de que os normais enfatizam fatores orgânicos e hereditários, enquanto os pacientes apontam, mais frequentemente, relações interpessoais problemáticas. Em seu conjunto, e no que se refere aos normais, tais dados concordam com outros anteriormente encontrados por outros pesquisadores (Branch, 1952; Voillaume, 1960; Rose, 1957; Downey, 1967), onde, como causas mais frequentemente citadas, aparecem a hereditariedade e doenças venéreas, seguidas de problemas familiares, choques emocionais e pobreza material.

É interessante notar, como mostram Weinstein e Brill, que os normais tendem a ver a doença mental como uma qualidade profundamente enraizada, como predisposições de nascença ou anormalidade congênita, e não como fruto de tensão psicológica. Por outro lado, os pacientes interpretam a doença como algo que aconteceu devido a experiências pessoais ou ao seu próprio "nervosismo". A nosso ver, as concepções dos chamados normais envolvem uma tentativa de se defenderem de temores relativos à possibilidade de se tornarem doentes mentais. Por outro lado o paciente, ao ver a loucura como algo meramente acontecido mas de nenhum modo essencial, está obviamente admitindo possibilidades de recuperação. Entretanto, acreditamos que é possível entender o fato de acordo com o qual os não-pacientes aparecem como mais organicistas que os pacientes. Realmente, a visão organicista implica colocar o doente mental em posição de objeto de investigação, pois se baseia em uma operação intelectual a partir do qual o psíquico é considerado como coisa, no sentido cartesiano de res extensa. Tal operação exige, do ponto de vista psicológico, dissociação e distanciamento. A recorrência a tais mecanismos psicológicos é, evidentemente, mais difícil quando o indivíduo conhece a loucura como vivência própria. A experiência pessoal possivelmente facilita o reconhecimento da importância da subjetividade e das relações interpessoais na determinação da doença mental.

Em estudo posterior, Weinstein (1974) partiu para uma investigação mais pormenorizada das concepções de pacientes psiquiátricos elaborando um questionário que focaliza a relação entre a eclosão da doença e os seguintes tópicos: problemas econômicos, familiares e sociais na infância e na vida adulta. Perguntava-se aos pacientes se já haviam passado por experiências desse tipo e, em caso afirmativo, se acreditavam que tal fato havia contribuído etiologicamente na instalação de seu problema psiquiátrico. Encontrou, como resultados, que os sujeitos frequentemente veem as preocupações, os fracassos, as rejeições e as dificuldades interpessoais em um contexto etiológico. O oposto se passa quanto às privações e dificuldades de ordem material que, mesmo quando vivenciadas, são significativamente menos vistas como fatores etiológicos. Por outro lado, chama a atenção o fato de que os pacientes conferem menor valor etiológico às vivências infantis, em comparação com aquelas ocorridas durante a vida adulta. Essa visão, como sabemos, difere daquilo em que normalmente acreditam os psiquiatras quando atribuem importância a fatores psicológicos na gênese do distúrbio mental.

Existe, ainda, um certo número de pesquisas relativas ao tema que se caracterizam pelo fato de focalizarem a relação existente entre a concepção etiológica do paciente e a pertinência a determinada classe social (Redlich, 1955; Williams, 1957; Myers & Roberts, 1959; Langley, 1963; Grey 1966; Weinstein & Brill, 1971). Alguns desses estudos utilizam técnicas metodológicas indiretas, inferindo as concepções etiológicas através do estudo de queixas, observações clínicas ou da análise de antecedentes pessoais relatados pelos pacientes. Outros valem-se de questionários que tanto podem ser respondidos de forma aberta, como através de respostas sim ou não. Tais estudos, no seu conjunto, demonstram que as concepções etiológicas variam de acordo com a classe social. De modo geral, indivíduos pertencentes às camadas sociais mais baixas atribuem a doença mental mais frequentemente a fatores orgânicos, enquanto pacientes provenientes da classe média enfatizam a importância de fatores emocionais e interpessoais. Possivelmente, esses dados refletem diferenças culturais que chamaríamos ideológicas, já apontadas por outros autores como existentes entre as diferentes classes (Berstein, 1958; Kohn & Schooler, 1969). No contexto de que ora nos ocupamos, pode-se dizer que a ideologia dominante na assistência psiquiátrica pública teria maior penetração junto às camadas mais baixas. Isso coincide com os achados de Kohn e Schooler que, investigando nível educacional e experiência ocupacional, concluem que o indivíduo proveniente das classes privilegiadas tende a valorizar autonomia e autosuficiência, enquanto homens de classe social baixa orientam-se primariamente na direção da adoção de atitudes de conformismo em relação à autoridade externa. Nessa medida, indivíduos pertencentes às camadas mais desfavorecidas seriam mais permeáveis aos efeitos da ideologia organicista, na medida em que se assenta na autoridade dos discurso competente e faz do outro um objeto de certo tipo de atenção e cuidado.

É interessante lembrar, conforme aponta Bernstein (1958), que parecem existir marcadas diferenças na estrutura de linguagem de acordo com a classe social. Assim, na verbalização da classe média se enfatiza a comunicação de estados subjetivos, emoções e sentimentos, enquanto na classe baixa predomina uma linguagem descritiva de modo geral, na qual faltam elementos para uma comunicação mais rica da subjetividade.

Não encontramos, em nosso meio, estudos relativos às concepções etiológicas de pacientes psiquiátricos brasileiros. Como um de nós já teve oportunidade de verificar (Tsu, 1986), frequentemente nem mesmo os familiares têm noção acerca do que pensa o paciente sobre sua condição de doente mental. Entretanto, na medida em que a assistência psiquiátrica, neste país está a reclamar sérias mudanças, parece-nos oportuna a pesquisa das concepções etiológicas dos pacientes.

 

A PESQUISA

Entrevistamos sessenta mulheres que se encontravam internadas no Hospital Psiquiátrico de Vila Mariana e que, no momento, tinham condições de se comunicar verbalmente. O grupo apresenta uma média de idade de trinta e seis anos e um desvio padrão igual a oito. Essas pacientes haviam recebido diagnósticos psiquiátricos segundo a tabela abaixo, o que demonstra que em sua quase totalidade apresentavam sintomas considerados psicóticos.

 

 

Trata-se de um grupo que apresenta baixo nível de escolaridade, na medida em que oitenta por cento das entrevistadas não chegou a cursar o quarto ano primário, e vinte e cinco por cento são analfabetas. Em termos profissionais, encontramos que vinte e sete por cento são donas de casa, trinta e um por cento são empregadas domésticas, vinte por cento não têm ocupação e vinte e dois por cento distribuem-se por profissões tais como vendedora ambulante, operária não-especializada, lavadeira, "catadora de papel", etc. Uma expressiva porcentagem de sessenta e cinco por cento é proveniente de outros Estados, principalmente Minas Gerais e Bahia.

Evidentemente, pode-se concluir, a partir de tal quadro, que é baixo o nível de renda, sendo ainda importante assinalar que nesse grupo não se encontram pacientes beneficiárias da Previdência Social. Isso significa que não são empregadas registradas de acordo com a legislação trabalhista, nem dependem de familiares que gozem de tal condição.

As entrevistas foram realizadas individualmente e conduzidas de forma a obter das pacientes explicações causais que atribuem, não à loucura genericamente considerada, e sim, ao seu próprio problema psiquiátrico.

Observamos que quatro pacientes alegaram desconhecer os motivos pelos quais apresentavam seus sintomas, embora admitissem claramente a existência dos mesmos. Dado o fato de que se trata de pacientes psiquiatricamente consideradas como psicóticas, em sua maioria, podemos afirmar que é relativamente pequeno o número de internas que forneceu este tipo de resposta.

Cerca de quinze pacientes, vale dizer um quarto do grupo, não se considera portador de problema psiquiátrico. Essas pacientes, via de regra, atribuem o fato de terem sido internadas ou consideradas "loucas" ou "nervosas" a mal-entendidos, desavenças ou perseguições. Fundamentalmente, veem-se como vítimas de atos alheios que, bem ou mal intencionados, resultam sempre em injustiças. Seguem alguns exemplos:

Meu caso não é para médico. Eu trabalho de empregada na pensão do meu pai, ele não me pagou o ordenado, fui dar queixa na polícia e o delegado me mandou para cá. Se aqui não tem polícia meu caso não é aqui não.

Não sou doente, minha mãe que é louca me interna sem motivo.

Dizem que sou louca, mas eu não sou não, eu não tenho nada, meus parentes é que querem que eu fique internada porque eles pensam que eu sou louca, deviam cuidar da vida deles em vez de ficar mexendo comigo.

Estou aqui sem motivo nenhum, não tenho sistema nervoso, minha mãe é que é louca e me interna aqui.

Dizem que eu tava biruta da cabeça porque eu ouvia vozes, só que as vozes que eu ouvia eram normais, de pessoas...

Outro grupo, numericamente bastante expressivo na medida em que corresponde a quarenta e cinco por cento do total das mulheres entrevistadas, caracteriza-se pelo fato de se admitir como portadora de problema psiquiátrico que atribuem a dificuldades de relacionamento interpessoal.

Estou internada porque estava desorientada e fora de si, estava na rua e a polícia me trouxe, fiquei nervosa porque não tenho onde morar, meus pais brigaram comigo, me expulsaram de casa, eu só fiquei andando na rua, perdida, sem ter para onde ir. Não me querem porque eu estou desempregada, não ganho nada e eles não querem gastar comigo. Acham que eu sou vagabunda, não ajudo nas despesas de casa, eles são pobres, fiquei nervosa.

Por causa que eu saio na rua, fico gritando, tiro a roupa, a causa é que eu fico desesperada porque larguei do meu marido e fui morar na rua, ele bebia muita pinga e matou os meus quatro filhos.

Acho que vem da infância, meu pai tirou a minha virgindade quando eu tinha sete ou oito anos, fez muitas coisas comigo. Eles se separaram, fui obrigada a morar com ele e a minha madrasta, minha mãe não queria saber de mim e minha madrasta me batia muito, fiquei com muito problema de cabeça.

Fiquei fraca da mentalidade porque as crianças me atentam, me xingam, jogam pedras em mim.

Fiquei louca porque foi uma mulher lá em casa, mais louca do que eu, me atasanar, porque achava que eu queria o marido dela. Ela falou tanto na minha cabeça que me perturbou.

Assim, pode-se dizer que tanto aquelas pacientes que não se consideram portadoras de problemas psiquiátricos, e sim vítimas de ações alheias, como esse último grupo, que se reconhece como pertubado, atribuem sua condição atual a fatores decorrentes de seus relacionamentos interpessoais, especialmente familiares. A soma do número de membros de cada um desses grupos, perfaz setenta por cento do total das entrevistadas.

Sete pacientes consideram que se encontram propriamente doentes, na medida em que interpretam seus sintomas como organicamente causados. Entretanto, dessas, apenas duas se referem tão somente a causas orgânicas. As demais inserem os problemas orgânicos no contexto de relacionamentos humanos problemáticos. O caso mais comum é o de traumatismo craniano decorrente de agressão. Em outros casos, uma situação humana tensa acentua uma fragilidade orgânica.

Fiquei doente da cabeça porque fui assaltada por cinco ou seis homens que me bateram muito na cabeça com um revólver e até cortou fundo.

Sou alvoroçada do juízo porque quando eu era pequena meu pai batia muito na minha cabeça e depois eu me casei e meu marido batia na minha cabeça também. Agora tenho que tomar sempre o remédio direito.

Devo ter algum problema mental, mas não sei qual é, acho que trauma de infância não é. Uma vez uns doutores me disseram que era disritmia cerebral. É um nervo no cérebro que desliga, acho que desliga porque eu passo muito nervoso. Passo muito nervoso por causa das crianças do meu irmão que eu cuido. Eles são órfãos, são revoltados, não obedecem e eu é que tenho que cuidar deles e da casa. Acho que não é só por causa deles, fiquei nervosa porque meu marido arranjou outra mulher, pôs dentro de casa, me expulsou, ficou com meus filhos, e eu tive que ir morar com meu irmão.

Percebe-se, então, que a organicidade é francamente articulada com problemas de relacionamento interpessoal. Aqui vai um exemplo de organicidade em que a paciente se atém a um nível puramente orgânico:

Tô aqui internada porque sou doente, tenho congestão, às vêzes eu caía e ficava batendo. Foi porque eu comia comida muito quente e gostava de tomar água gelada por cima, faz mal.

Há, ainda, mais dois grupos: o de pacientes que atribuem seu problema ao álcool e o daquelas que o atribuem a ação de entidades espirituais.

No que se refere às pacientes que se reconhecem como alcoólatras, observamos que articulam a necessidade de ingestão de bebida a problemas de relacionamento interpessoal:

Meu problema dos nervos é por causa da bebida. Penso que comecei a beber muito porque eu me separei do meu marido.

Fico nervosa porque bebo muito pinga. Bebo muito de desgosto e revolta, porque meu finado pai batia muito na minha mãe.

Meu problema é que eu não como nada e bebo muito. Não sei porque não como, comida tem, eu é que não tenho fome. Bebo muito porque as vizinhas e o meu marido oferecem caipirinha o dia inteiro. Às vezes acho que eu bebo muito porque fico muito sozinha. Não tenho com quem conversar, meu marido sai para trabalhar, minha filha vai brincar na rua, com as vizinhas não tem papo...

Finalmente, observamos quatro casos que atribuem a doença mental a ação de espíritos, o que equivale a menos de sete por cento das mulheres entrevistadas.

Me deu a crise. É uma doença espiritual, não é carnal. Onde eu moro é muito carregado, mas acho que foi o meu ex-marido que fez trabalho para eu voltar porque estou amigada com um homem bom.

Tinha muito peso e encosto nas costas, não podia nem levantar. Acho que é porque sou vidente. Sou católica mas frequento o Bezerra de Menezes. Todo problema é porque eu não sei receber os espíritos.

Entre tais casos, três consistem na explicação de que a mediunidade mal desenvolvida pode ser causa de doença mental. O outro articula a explicação religiosa às dificuldades de relacionamento pessoal. Ao nosso ver, dado o ambiente religioso-cultural brasileiro, pode-se dizer que é relativamente baixo o número de pacientes que invoca explicações de cunho religioso.

Resumindo esses resultados, percebe-se que, partindo da análise de conteúdo temático manifesto, chega-se à conceituação de seis categorias empíricas, conforme a tabela abaixo:

 

 

Entretanto, apesar da possibilidade de diferenciação dessas seis categorias, percebemos que praticamente a totalidade das entrevistadas incluindo até aquelas que não se consideram portadoras de problema psiquiátrico, atribuem a sua condição atual a problemas de relacionamento interpessoal. Uma análise de conteúdo das respostas relativas a esse tema, por outro lado, revela duas fontes de angústia referentes aos vínculos problemáticos: a agressividade alheia, em geral expressa em termos de violência física, e o abandono. Aliás, na maior parte dos casos, esses dois temas encontram-se intimamente interligados.

Tal resultado é bastante interessante porque demonstra, de início, que a ideologia veiculada pelo discurso organicista penetra menos do que sua dominância podia fazer supor. Ou seja, malgrado organizar as práticas que constituem a assistência psiquiátrica pública, não é maciçamente assimilada pela população atendida. Parece, ao contrário, que as pacientes pensam sua própria condição como decorrente de acontecimentos humanos, de acidentes que têm sua origem em vicissitudes próprias das relações humanas. Operam, assim, em um nível de explicação que Bleger (1977) denomina nível humano de integração.

Assim, podemos afirmar que nossos resultados coincidem com aqueles relatados em literatura por Jones et alii (1963) e Weinstein & Brill (1971), que indicam que pacientes psiquiátricos preferem uma linha de explicação de cunho mais psicogênico para a doença mental. De outro lado, pesquisando pacientes de origem social bastante desfavorecida, não encontramos, como mais frequentes, as explicações apontadas pelos autores como características da classe baixa, quais sejam as explicações organicistas.

Em termos de discussão, surge-nos, então, a necessidade de levantar hipóteses explicativas da razão da não penetração mais expressiva da ideologia médico-organicista junto à clientela e do porque os sujeitos estudados, apesar de oriundos de classe social baixa, pensam o problema psiquiátrico em termos usualmente encontrados, de acordo com a literatura, em membros da classe média.

 

A IDEOLOGIA DAS PACIENTES E A COMPREENSIBILIDADE DA CONDUTA

Nossos resultados indicam que predomina, entre as pacientes estudadas, uma ideologia de acordo com a qual se mantém a possibilidade de compreender a loucura como fenômeno relacional e humano. Assim, mesmo quando se autodenominam como "loucas" ou "nervosas", permanecem ao nível de uma consideração dramática, vale dizer, propriamente psicológica, de sua conduta, na medida em que a veem como decorrente de fatores psicossociais.

Conforme já referimos, ao comentar os resultados de Weinstein e Brill (1971), pode-se pensar que explicações de tipo psicossocial sejam comuns entre pacientes por permitirem ao sujeito ver sua condição como resultado de algo que simplesmente "aconteceu", e que, de uma certa forma, poderia acontecer a qualquer um que se visse em semelhantes circunstâncias. Tal posicionamento, evidentemente, pode tornar o problema pessoal mais leve e suportável. De outro lado, as concepções organicistas podem ser menos comuns porque, na área mental, estão normalmente associadas às idéias de hereditariedade e defeito. Assim, conotam sempre a idéia de que a loucura é um atributo profundamente enraizado, praticamente essencial. É óbvio, portanto, que a primeira concepção deixa maiores possibilidades ao indivíduo de nutrir esperanças de saída de sua condição atual.

É claro, portanto, que a ideologia das pacientes considera que suas condutas são sempre compreensíveis em função da situação de vida em que se encontram, de forma que podemos concluir que não partilham de concepções segundo as quais existe um limite na possibilidade de compreensão do comportamento humano. Pelo menos no que se refere ao próprio comportamento, esse ponto de vista não é adotado pelos sujeitos.

Entretanto, quando, em seu uso corrente, empregam-se expressões tais como "louco" ou " loucura", percebemos, sob as variadas acepções do termo, que somos sempre remetidos a uma dimensão de incompreensibilidade da conduta que, interessantemente, não é encontrada no discurso das próprias pacientes.

De fato, parece que a questão dos limites da compreensibilidade do comportamento humano é uma questão fundamental em psicopatologia, do mesmo modo em que a negação desses limites desperta a atenção no que refere às concepções etiológicas das pacientes.

É forçoso concordar com Paz (1976) quando diz que toda investigação e reflexão psicopatológica tem início quando aparecem condutas "novas", mudanças ou rupturas no comportamento pré-existente, o que, evidentemente, exige a interpolação de um sistema explicativo. Discutível é o tipo de sistema a ser interpolado. Para os organicistas, o sistema não pode ter caráter psicológico, sendo imperativo operar um reducionismo biológico. Por outro lado, é possível conceber a interpolação de outras explicações. Uma das possibilidades, que encontramos em algumas pacientes, é a invocação de entidades espirituais, cuja ação interferiria na conduta humana. Outra possibilidade é manter uma compreensão estritamente psicológica da conduta, mesmo quando disruptiva, a partir do uso de ferramentas conceituais específicas tais como os conceitos de inconscientes e regressão. Dessa forma, toda conduta pode ser abordada como acontecimento vital que se articula compreensivamente com a biografia do sujeito.

Percebe-se, então, que, em termos das duas posições que possuem status científico, qual seja o modelo orgânico e o modelo psicossocial, detectam-se diferenças que nos remetem a um antigo questionamento do campo psicopatológico: existem limites para a compreensibilidade da conduta humana?

Basicamente, encontramos, entre os autores, dois tipos de posicionamento em relação a esta questão. De um lado estão aqueles que acreditam que a conduta humana é sempre compreensível, tais como Paz (1976) e Bleger (1977), enquanto de outros, estão aqueles que acreditam na existência de limites para a compreensibilidade do comportamento humano, como Schneider (1951) e Jaspers (1955).

Jaspers abordou extensamente o problema, chegando a colocar de forma precisa quais seriam, a seu ver, tais limites. Vale a pena citá-lo:

A investigação do acontecer biológico básico e do desenvolvimento histórico vital compreensivo culmina em uma diferenciação das espécies de bios, a do desenvolvimento unitário da personalidade, sobre a base de um curso biológico normal das idades e das fases eventuais, do caráter não unitário de uma vida que se descompõe por uma ruptura, em duas partes, porque no acontecer biológico, em determinado momento, se iniciou um processo que, com a interrupção do curso biológico da vida, altera a vida psíquica de modo incurável, irreversivelmente. (1955, p. 23)

Assim, o autor lança bases para diferenciar nitidamente os conceitos de desenvolvimento e processo. Prossegue, então: "Falamos em mudança no desenvolvimento de uma personalidade quando podemos compreender no conjunto das categorias histórico-vitais, o que está acontecendo, sob a pressuposição do acontecer biológico fundamental." (p. 23)

Desta forma, ainda que dê origem a sintomas psicóticos, tais como delírios de ciúme ou desenvolvimentos paranóides, Jaspers considera que, quando se está diante de um "desenvolvimento" ainda se pode compreender o fenômeno psicopatológico em termos estritamente biográficos. Outra coisa acontece quando ocorre um processo. Em última instância, como destaca Paz (1976), o processual é, rigorosamente falando, correspondente ao surgimento do "Outro", do que antes não era mas agora é, sendo esse novo sempre a irrupção do corporal, do biológico e a supressão do especificamente humano.

Vemos, então, que para Jaspers existe um limite de compreensão precisamente localizado no ponto de emergência do corporal. Nesse ponto, há que operar um reducionismo biológico, e então o fenômeno psicopatológico deixa de poder ser abordado como acontecimento humano, ao nível humano de integração fenomênica (Bleger, 1977).

Outro autor bastante representativo é Kurt Schneider (1951), que aborda a questão com muita clareza e atualidade:

Não conhecemos os processos mórbidos que se encontram na base da ciclotimia e da esquizofrenia. Que se achem fundamentadas sobre enfermidades constitui uma conjectura que goza de sólido apoio. A herança freqüente, as vinculações com processos genéticos e as alterações somáticas gerais que muitas vezes se encontram presentes não são tão importantes como os seguintes fatos psicopatológicos: que apareçam, entre outros, sintomas tais que não guardam analogia alguma com a vida psíquica normal e com suas variantes anormais. Na grande maioria dos casos não se podem referir estas psicoses a vivências, não se acham motivados por estas. Não são influídas de modo apreciável por meio de tratamentos psíquicos e sim por somáticos. Mas, antes de tudo, quebram as leis e normas que regem a continuidade de desenvolvimento vital.

E depois:

A interpretação especulativa que os considera como reações de conflito mascaradas (neurose) é absolutamente inadmissível. É possível conceber que 'a alma' possa se transformar por si mesma de um modo tão grotesco sem que isso seja causado por uma enfermidade do corpo? Muito se fala hoje da origem psíquica das enfermidades, de sua psicogênese. A esse respeito diremos o seguinte: a enfermidade possui, como todas as coisas, não somente uma, mas, de fato, infinitas condições determinantes. Aquele fator, conhecido ou desconhecido, do eixo causal, sem o qual a enfermidade não poderia acontecer, não é, jamais, de natureza psíquica, (p. 23)

A clareza de Schneider praticamente dispensa comentários. É suficiente ressaltar que nas suas citações fica bastante claro que a adoção do modelo organicista é antes um imperativo emocional, advindo da concepção de ser humano na qual acredita, do que produto de um trabalho de investigação imparcial da realidade.

Bleger é um autor que desenvolve de modo interessante posição diametralmente oposta à de Schneider. Desde cedo, Bleger percebeu que a psicanálise é uma psicologia, preocupando-se em lançar fundamentos epistemológicos que dessem conta desse fato. Baseou-se em Politzer (1976) que, em sua Crítica dos Fundamentos da Psicologia, havia assinalado com grande rigor que o revolucionário e fundamental da contribuição freudiana à psicologia é a descoberta de que fenômenos psicológicos aparentemente desprovidos de sentido, como o sonhar, têm sempre um significado. Ou seja, remetem-nos sempre à vida do sonhador, à sua biografia. O importante, então, é ressaltar o seguinte: o determinismo se expressa, no âmbito da psicologia, como motivação. Todo ato é motivado e, portanto, tem significado humano. No momento em que refletia sobre a leitura de Freud realizada por Politzer, Bleger (1958) escreveu artigos que acabou compilando em um livro intitulado Psicanálise e Dialética Materialista. Aí conceituou que o objeto de estudo da psicologia é a dramática. Criticando a teorização psicanalitica acerca dos instintos, que reduz os dados clínicos a entidades metafísicas que se encontram fora do campo operacional do psicanalista, propõe uma volta à compreensão propriamente clínica da história vital do paciente, ou seja, ao estudo da dramática. Vale a pena reproduzir suas colocações:

Ao querer estudar a conduta de uma pessoa, a primeira aproximação da psicologia foi totalmente formal, classificando as características da atenção, memória, juízo, vontade, etc, mas com isso se reduz o fenômeno psicológico a seus elementos formais e se descarna a conduta de seus elementos vitais humanos, como parte do decurso de uma vida. Freud se coloca desde o começo de maneira totalmente diferente porque estuda o sintoma em relação com a vida do paciente. A informação vinda de fora dos acontecimentos da vida não dão totalmente o sentido e a compreensão do sintoma. Só se consegue isso quando o sintoma é relacionado com os fatos tal como foram subjetivamente vividos, vivenciados pelo paciente, e o sintoma fica assim explicado em função e como parte da conduta humana. É a isso que chamamos dramática que é, em última instância, a descrição, compreensão e explicação da conduta em função da vida do paciente, em função de toda a sua história. No estudo sobre Gradiva diz Freud — ...' todo aquele que quiser interpretar o sonhado por outra pessoa, não pode menos que ocupar-se com o maior detalhe possível dos acontecimentos vividos pela mesma, tanto em sua vida interior como na relação social'. (Bleger, 1958, p. 112-13).

Posteriormente, Bleger deixou de lado o conceito de dramática como objeto de estudo da psicologia, integrando-o na noção mais ampla de conduta molar, que desenvolve adequadamente na obra Psicologia de la Conducta (1977). Passa, então, a considerar que a conduta humana é o objeto de várias ciências, que a abordam de modos diferentes. Esboça dois esquemas explicativos. No primeiro deles diz que a conduta pode ser estudada por diferentes ciências que operariam em diferentes níveis de integração, entendendo que de nível para nível se observaria uma crescente complexidade na organização, estruturação e função dos fenômenos, sendo que a complexificação acarretaria o aparecimento de qualidades fenomênicas que não existiam nos níveis anteriores. O exemplo que dá é o do movimento muscular que pode ser estudado fisicamente, quimicamente, biologicamente, psicologicamente, antropologicamente, etc. Coloca, assim, uma espécie de hierarquia dos níveis: mais abaixo o nível físico-químico, em seguida o biológico, mais acima o psicossocial e por último o nível axiológico. Resolve, dessa forma, a questão da organogênese versus a psicogênese, superando-a:

É, entretanto, bastante freqüente encontrar que se discuta se uma conduta, um sintoma, é psicológico ou orgânico; não pode deixar de ser as duas coisas ao mesmo tempo, porque tudo o que se manifesta no homem não pode deixar de ser psicológico e porque esse nível de integração não pode dar-se jamais sem os níveis precedentes. (Bleger, 1977, p. 81).

Posteriormente, Bleger introduz algumas correções nesse modelo, que publica em apêndice a partir da terceira edição da obra. Concebe, então, como nível inferior o físico-químico, que se segue, mais acima, do nível biológico que, por último se vê acrescentado do nível humano. Esse último, por sua vez, comporta diferentes segmentos, cuja totalidade o configura. A cada segmento corresponderia uma perspectiva da apreensão do fenômeno humano: a psicologia, a sociologia, a antropologia, a economia, a biologia humana, sendo tais divisões decorrentes da impossibilidade humana de abarcar toda a complexidade do real. Importante notar que o autor diferencia aqui o nível biológico, que é aquele em que se estuda a organização do real segundo leis que são universais para todos os seres vivos, incluindo os humanos, da biologia humana, que já não seria um nível e sim um segmento ao nível humano de integração.

Ao nível humano, o segmento psicológico estuda a conduta segundo uma perspectiva própria. Pode, então, dizer que a conduta é uma totalidade organizada de manifestações que se dá com uma unidade motivacional, funcional, objetai, significativa e estrutural. A conduta psicológica tem, portanto, as seguintes características: é sempre motivada, possui um objeto (que é sempre um vínculo, real ou virtual), possui um sentido que a inscreve compreensivamente como acontecer humano na situação em que emerge e tem uma estrutura, que implica um padrão específico de relação. O central para a nossa questão dos limites da compreensibilidade é o seguinte: a conduta humana pode ser compreendida sempre, tem sempre um significado humano.

À luz das colocações de Bleger, pode-se dizer que o modelo organicista, que se funda na crença de que existem limites de compreensibilidade, opera ao nível biológico de integração e estruturação fenomênica. Ora, esse nível, ao referir-se a uma forma de organização dos fenômenos menos complexa do que a encontrada no nível humano, corresponde a um maior distanciamento do concreto. Ou seja, exige um grau maior de abstração. Dito em outros termos, o trabalho intelectual ao nível da explicação biológica demanda ao estudioso uma abstração maior no sentido de um maior distanciamento do real, do vivido, da experiência humana. Assim, o objeto de estudo, ao nível biológico de integração, é o ser vivo enquanto um Outro não assimilável à minha própria experiência de sujeito humano. O corpo biológico é o organismo na melhor hipótese, e uma máquina na pior, mas nunca o corpo vivido.

Sabemos que o biólogo necessita fazer tal abstração para captar leis que explicam o funcionamento dos seres vivos. Paga o preço do distanciamento do real, da alienação, que poderá vir a ser superada através da compreensão de que esse nível faz parte de um real fenomênico infinitamente mais complexo. Tal distanciamento, entretanto, se necessário à aquisição do saber biológico, não concorre, muito ao contrário, para o alcance da compreensão psicológica.

A abordagem da loucura ao nível biológico se dá através de abstração e distanciamento que resultam na concepção de que é algo que só pode ocorrer ao outro. Assim, o modelo organicista pode servir ideologicamente ao normal no sentido de lhe possibilitar encarar a loucura como assunto alheio. Contrariamente, à abordagem da loucura ao nível humano implica, ideologicamente, a consideração de que a loucura é assunto próprio, assunto humano, conduzindo cada qual a uma posição menos confortável mas bastante mais comprometida.

Finalizando, os resultados encontrados nas entrevistas obrigam a formulação de uma pergunta: a adesão a uma ideologia psicossocial significará que estamos diante de uma prova da existência de um núcleo não-alienado, que emerge no momento da entrevista? A resposta é afirmativa. Paradoxalmente, ao perder-se na experiência da loucura, o paciente parece obrigado a recuperar a sua condição de sujeito, ainda que momentaneamente, ao ser interpelado como sujeito. Nesse momento pode viver sua vida como dramática que o entrelaça, inapelavelmente, às vidas de outras pessoas. Recupera-se, paradoxalmente, como ser social.

 

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