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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.2 supl.2 São Paulo dez. 1990

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

Imagem corporal: uma revisão seletiva da literatura

 

Body image: a selective review of literature

 

 

Lucy Penna

Psicoterapeuta especializada em Cinesiologia Psicológica

 

 


RESUMO

Esta revisão objetiva destacar o controle dos movimentos no conceito contemporâneo de imagem corporal. A autora ressalta, ainda, que a relação entre variáveis fisiológica, libidinal, sociológica e ecológica passou por diversas etapas, de 1920 a 1980.

Descritores: Imagem corporal. Linguagem corporal. Desenvolvimento motor.


ABSTRACT

The objective of this revision is to point out body movements control regarding the concept of body image. The author also underlines that the relationship among the physiological, sociological and ecological variables has developed through different stages from 1920 to 1980.

Index terms: Body image. Body language. Motor development.


 

 

1. IMAGEM CORPORAL

O conceito de imagem corporal é aplicado a uma série vasta de comportamentos normais e patológicos e as referências à imagem do corpo são freqüentes na literatura neurológica, psiquiátrica, em medicina psicossomática, psicofarmacologia, e em psicoterapia. Porém, raramente o termo tem sido empregado com a precisão adequada. Para o efeito deste trabalho, consideramos a definição de Schilder (1923) para quem a imagem corporal é a representação do corpo na nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós.

Schilder se apresenta como o organizador dos conhecimentos pré-existentes acerca da relação entre psique e soma. Este autor desenvolveu os seus estudos a partir de Head, neurologista que postulava a existência de uma estrutura anatomofisiológica central cuja função seria mediar a relação do sujeito com o seu ambiente. Segundo Head (1), citado por Schilder (1950), uma pessoa constrói com base em suas experiências sensoriais uma estrutura cognitiva que avalia cada estímulo recebido. Assim, qualquer mudança no modelo postural do corpo relacionar-se-ía, automaticamente, aos modelos posturais prévios, entrando na consciência já carregada com os eventos anteriores correspondentes. Sua ênfase nos modelos posturais do corpo, levou-o a postular a existência dos esquemas corporais (body schemata), os quais teriam como função organizar as percepções novas em relação com as experiências passadas, dando como resultado uma consciência do próprio corpo em dado tempo e espaço. Schilder divergiu de Head, especialmente ao integrar o nível psíquico, a personalidade, aos níveis anatomofisiológicos já admitidos. Para Schilder (1950), quando percebemos ou imaginamos um objeto não operamos meramente como agentes perceptivos, mas sim como personalidades em comunicação com o meio ambiente. Sem menosprezar os dados neurológicos que descrevem a ação mecânica das estruturas perceptivas e cognitivas, Schilder postula, apoiando-se na psicanálise, que a percepção é um processo no qual a pessoa está envolvida por inteiro e, assim, cada movimento humano, cada mínima transferência de peso, qualquer gesto simples pode ser "lido" como linguagem do corpo e, portanto, revelar aspectos da vida interior do sujeito.

Até que Schilder apresentasse as suas idéias em inglês, por volta de 1950, as suas pesquisas realizadas na Alemanha eram conhecidas apenas pelos pesquisadores especializados e, principalmente, pelos neurologistas. Para estes, a posição mais freqüentemente assumida era a de uma teoria de controle central na qual o papel das estruturas, ou esquemas sensório-motores, determinava a maior parte das reações de uma pessoa frente aos estímulos ou às situações novas. O esquema corporal era considerado como resultado de toda a organização cognitiva e afetiva do sujeito e como base das suas ações no meio-ambiente. Na verdade, vários pontos não estavam ainda bem esclarecidos e foi somente com o final do período compreendido pelas duas grandes guerras que pesquisadores de diversos campos apresentaram novas contribuições neste sentido. A utilização preferencial do termo imagem corporal, embora sujeita a certas ambigüidades, passou a marcar uma perspectiva integradora do fenômeno do conhecimento que o ser humano possui acerca do seu próprio corpo. Schilder considera que a imagem corporal é constituída por três estruturas em constante intercâmbio: a fisiológica, a libidinal e a sociológica. Esta tríplice perspectiva modificou o enfoque tradicional, abrandou os excessos das hipóteses centralistas e abriu espaço para a consideração do papel do meio-ambiente na transformação contínua dos modelos posturais.

Merece destaque nesta fase de ampliação teórica, o papel que foi desempenhado pelos trabalhos de Werner & Wapner (1949, 1952). Através de um enfoque experimental, estes autores demonstraram que o organismo deve ser estudado em seu contexto ambiental. Tanto para o estudo da percepção de objetos como da percepção do próprio corpo, deve-se ter em conta uma unidade: a relação organismo-ambiente. É curioso notar como estes autores se colocam próximos da chamada abordagem ecológica do controle motor, a qual foi desenvolvida mais tarde por Turvey, Fitch e Tuller (1982) com base nos pressupostos de Bernstein (1967) e Gibson (1966). Deixaremos para mais adiante a análise das similaridades entre as idéias propostas por estes grupos de pesquisadores, bastando-nos, no momento a afirmação de Werner & Wapner de que não existe a percepção de objetos exteriores sem uma referência corporal. E, inversamente, não pode haver percepção do corpo como objeto sem um marco de referência ambiental.

Em uma série de experimentos, aqueles autores, demonstraram que tanto o comprimento de um membro, como a largura da cabeça se superestimam se estão colocadas em um espaço aberto. Encontrou-se, ainda, que estas ilusões diminuem com a idade. Estes autores demonstraram, ainda, que o membro estendido na obscuridade até um objeto luminoso se percebe como mais largo do que outro. Em resumo, na percepção do membro, supõe-se uma relação causal entre a visão e o sentido tátil-cinestésico, dado que também foi analisado por Schilder.

 

2. A ESTRUTURA FISIOLÓGICA DA IMAGEM CORPORAL

Não podemos negar que uma compreensão mais profunda da imagem corporal deve levar a uma nova concepção das ações humanas. Os estudos de Liepmann (2) com apraxias, realizados entre 1900 e 1920 e que são citados por Schilder (1950), trouxeram uma visão mais clara desta síndrome, especialmente quanto ao alcance das suas descobertas sobre o plano antecipatório das ações humanas. Ele mostrou que qualquer ação se baseia em um plano antecipatório, o qual contém em si o objetivo final e, também, a antecipação das ações parciais que são necessárias para a realização do ato motor total. Liepmann se refere às imagens de objetivos parciais, que tem que ser realizados para que haja um desempenho final da ação. Este plano geral e cada um dos seus detalhes, têm que ser transpostos para os canais nervosos e para as junções neuro-musculares.

Lidamos com a apraxia quando uma pessoa é capaz de realizar o plano geral do movimento, mas é incapaz de transformá-lo em ação. Quando há uma desordem no desempenho deste plano geral, lidamos com uma apraxia de idéias, na qual a ordem das ações parciais fica prejudicada. Quando o distúrbio está mais próximo da execução motora, o desempenho das ações parciais fica alterado e temos o quadro da apraxia motora.

O ponto crucial destas investigações é a definição deste plano. Para Liepmamnn há o plano ideatório e os traços orgânicos, que talvez possam ser vistos como parte de uma "memória muscular", algo fora do nível consciente do sujeito. SCHILDER (1950) concorda em que o plano existe, mas ressalta que ele não é dado em representações e em imagens claras. Quando queremos mover o braço, pegar uma bola ou acender um fósforo, não há dúvida de que muito pouco dos movimentos parciais que realizamos, assim como das inervações envolvidas nestes atos se encontra em nossa mente. O plano para o movimento se apresentaria como um germe, como uma tendência para a ação, relativamente independente dos elementos sensoriais.

Visto de outro modo, o plano do ato motor seria comparável a um campo de tensões psíquicas, a uma configuração que se apresenta num dado momento na esfera psíquica, envolvendo os níveis centrais e periféricos, com a participação maior ou menor da mente consciente. Não há dúvida, porém, de que o germe do plano para um movimento só encontra o seu pleno desenvolvimento durante a realização da ação, e que as sensações provenientes desta ação terão uma influência reguladora no desenvolvimento do plano.

O início do movimento depende do modelo de corpo que temos. Sabemos que estamos agindo com o próprio corpo e que partes dele terão que ser mobilizadas para alcançar o objetivo desejado. O objetivo pode ser tocado, pode ser visto, ou pode mesmo aparecer em imagens de memória. De acordo com Liepmann (1920) os sentidos isolados não existem, mas as diferentes fontes de informação do corpo e do meio ambiente são, ao menos em certo grau, substituíveis umas pelas outras.

A nossa experiência do corpo é baseada, principalmente em impressões visuais e táteiscinestésicas. Pelas lesões corticais, em especial aquelas da área parieto-occipitais, todo o conjunto de modelos posturais é prejudicado e o controle do ato motor está impedido ou dificultado. No entanto, as lesões periféricas também alteram o conhecimento do corpo e induzem a erros na realização do movimento. É especialmente o tono dos reflexos posturais e de endireitamento que distorce o modelo postural do corpo. Além destes, o tono vestibular, o tono cerebelar de desvio e tono cerebelar de hiperflexão são importantes na imagem que formanos do corpo no espaço.

Em resumo, admite-se que exista uma experiência imediata de algo que chamamos corpo, ou imagem corporal, mas esta primeira experiência é vaga e incompleta e somente o contato com a realidade externa a desenvolve. Movimento e ação serão necessários para este desenvolvimento. Na imagem do corpo serão empregadas não apenas as experiências atuais, mas também as passadas, e a função da memória é fornecer o material para as novas organizações. A memória, a aprendizagem e a experiência presente se integram, demonstrando que o passado não desaparece, mas que é utilizado na adaptação ao presente em vista de atingir o objetivo futuro.

Acredito — e este é um comentário estritamente pessoal — que as abordagens recentemente desenvolvidas sobre o controle do ato motor ampliaram e aprofundaram algumas das idéias expostas por Liepmann e Schilder. A teoria do controle aberto do ato motor prevê que o movimento seja iniciado por um programa o qual independe do retorno sensorial feedback para a sua realização. Esta proposta parece ter apanhado um dos aspectos do plano para o movimento estudado principalmente pelos neurologistas e desenvolvido uma hipótese centralista, em detrimento e variáveis periféricas. Outros autores também investigaram a possível existência de um esquema para o movimento, mas foram mais abertos ao integrar as informações periféricas e apontaram o papel das organizações da memória na realização do ato motor. Schmidt (1975), propôs a existênca de Esquemas, que deveriam ser vistos como programas generalizados de movimentos, como regras complexas, que poderiam ser executadas de diferentes maneiras para fazer surgir diferentes respostas. O programa motor generalizado de Schmidt governaria uma dada classe de respostas motoras, classe esta definida por traços invariantes, dos quais os mais investigados são: a força relativa e o phasing. Segundo este autor, um programa motor generalizado dispõe sobre as forças relativas que são usadas nos vários músculos que participam de uma ação. Esta força seria, assim, um padrão invariável no programa que leva à realização de um grupo de movimentos, semelhantes entre si quanto a este traço. Por outro lado, haveria uma periodicidade relativa na liberação das contrações musculares (ou phasing) dentro de uma dada classe de movimentos.

Considerando-se as recentes investigações sobre o papel dos fusos musculares no controle do ato motor, observa-se que há uma correspondência entre os conceitos de phasing e de força relativa propostos por Schmdit e a função atribuída às estruturas intrafusais. Estas são apresentadas por Gardner & O'Connel (1972) como realizando, juntamente com os órgãos tendinosos de Golgi, uma facilitação, um reforçamento ou uma inibição da contração muscular em quase todos os movimentos. Estes autores admitem, ainda, que há diferentes níveis de controle do movimento, desde cortical, subcorticais e medulares e, possivelmente, um nível mais específico nas fibras musculares intrafusais. Eles arguem que os fusos e os órgão tendinosos determinam a velocidade e a extensão da contração muscular e que a sua ação começa antes da contração muscular propriamente dita. Quando a ordem voluntária é dada, os impulsos descendo pelas vias medulares são adicionados a este background e a freqüência do impulso aumenta dando como resultado uma forte contração. Esta função preparatória dos órgãos proprioceptivos mencionados se realiza independentemente da vontade do sujeito, parece ser dependente de aprendizagem e organizada por um traço de memória, talvez comparável ao que Schmidt chamou de esquema de relembrar, que seria responsável pela especificação da resposta a ser executada.

Toda a questão sobre o papel das informações exteroceptivas e proprioceptivas foi ampliado recentemente, em particular através das investigações que consideram o corpo em relação estreita com o meio ambiete, tal como já haviam assinalado anteriormente autores como Werner & Wapner (1949,1952). O aspecto da influência visual no planejamento da ação recebeu a atenção de Gibson (1966) que formulou o conceito do arranjo óptico (optic array) para explicar como a recepção da luz é variável de acordo com o ponto de observação, ou seja, segundo a posição do observador no espaço. Admite o autor que haveria, deste modo, a recepção das informações não somente do reflexo da luz sobre a superfície dos objetos, mas também, sobre o ambiente em relação ao sujeito. Este último tipo de informação poderia ser Exproprioceptiva (Lee (3) citado por Gibson, 1979), em comparação com a informação proprioceptiva (das partes corporais) e exteroceptivas (do ambiente externo).

Fitch, Tuller & Turvey, (1982) desenvolveram a idéia de Fukuda (4) segundo a qual os sistemas musculares controlam-se entre si produzindo uma espécie de sintonia. Deste modo, o nível de organização medular teria um papel mais destacado na organização dos movimentos do que fôra anteriormente suposto. Finalmente, Turvey, Fitch e Tuller (1982) postulam que os movimentos do corpo podem ser apreciados em relação à sintonia ou à sincronização de dois sistemas amplos: o sistema de preservação da postura e o de locomoção. O primeiro define a classe de movimentos que são responsáveis pela manutenção da postura ereta. Superpostos a estes movimentos posturais estão os movimentos do corpo todo ou de partes deste com relação ao ambiente (sistema de transporte ou de locomoção). Qualquer ação seria realizada em termos destas duas classes de movimentos e a cada locomoção rompe-se a postura ereta, exigindo novo movimento de busca do equilíbrio. Por outro lado, os movimentos de transporte são precedidos por diversos ajustamentos posturais, exatamente aqueles necessários para permitir a locomoção equilibrada do corpo no espaço, em uma velocidade determinada.

É possível, então que estes estudos e pesquisas, aparentemente isolados tanto no tempo, quanto nas linhas teóricas a que se filiam, estejam desembocando em um único estuário, aquele que admite a unidade entre a percepção e a ação, ao menos no nível humano. O ser humano possui um conhecimento do próprio corpo que não encontra paralelo nas outras espécies, é óbvio que este fato pode trazer implicações particulares à análise da ação humana. Assim, o controle do ato motor passa, inevitavelmente, pela percepção, mais ou menos consciente, discriminada, clara ou distinta, do próprio corpo. Neste sentido me parece importante considerar os elementos da dimensão libidinal e sociológica na imagem do corpo, porque trazem informações de natureza especificamente humana à compreensão do movimento.

 

3. AS ESTRUTURAS LIBIDINAL E SOCIOLÓGICA

A estrutura libidinal considera o corpo tal como ele é vivido ou experienciado pelas pessoas, dando destaque aos seus aspectos afetivos, emocionais, cognitivos e eróticos. Já vimos que os sentidos influenciam a mobilidade, e que esta também influencia aquilo que é percebido; entretanto, a origem psicológica do movimento são as pulsões, as tendências e os desejos expressos nas tensões corporais e revelados na linguagem dos gestos e dos sons humanos.

A libido é um quantum de energia mobilizado por um impulso ou desejo. Freud (1925) distingue entre libido narcisista e libido objetai considerando a primeira como típica dos primeiros anos do desenvolvimento e tendo como objeto primário a imagem do corpo. A constituição do ego está intimamente associada à imagem do corpo, ao modo como vão se organizando as experiências infantis acerca das zonas erógenas, da dor e da capacidade de movimentação livre e relaxada. Em uma etapa mais avançada na vida da criança, ela se torna capaz de projetar a sua libido sobre uma outra pessoa ou objeto e realmente amar alguém. A importância desta organização psico-afetiva do corpo é reconhecida por vários autores psicanalistas, como Ajuriaguerra (1976), que a utiliza como referência para descrever a relação entre a mãe e o filho. Apontando o papel do diálogo tônico na imagem do corpo, este autor admite que o contato do corpo da mãe com o seu filho seja a primeira matriz da assimilação, pela criança, dos conceitos de proteção e cuidado, por oposição a rejeição e abandono. A criança recém-nascida está apta para perceber o tono muscular dos braços de sua mãe e a decodificar esta informação em termos de amor ou rejeição. Este diálogo tônico atua, ainda, sobre as duas funções principais à sobrevida de um bebê, a respiratória e a oral. Ajuriaguerra explica através desta hipótese como se desenvolvem as tensões no tórax que dão origem às disfunções cardio-respiratórias infantis e, ainda, ao aparecimento da intolerância alimentar, com respostas reflexas de vômito, dificuldade de sucção, deglutição, etc. Demonstra, também, que a movimentação espontânea do bebê será alterada pelo nível do tono motor de sua mãe, podendo chegar a um aumento de tensão postural que impeça a aquisição dos padrões motores normais. Baseando-se em observações clínicas e experimentais, Ajuriaguerra & Cahen (1964) propuseram um método de recondicionamento da tonicidade em crianças, através de movimentos e de massagens que visam promover a regulação do tono psicomotor.

Diversas investigações e experiências mostraram que as diferenças na estrutura libidinal do corpo se refletem nos padrões aprendidos de equilíbrio e de locomoção. O modo como uma pessoa sente e vive o mundo à sua volta dependerá em grande parte, de como ela se considere "forte", "bonita", "flexível", "alta" e estas avaliações são aprendidas através do contato com outros corpos. Schilder (1950) admite que a constituição da imagem do nosso corpo é realizada através da incorporação de partes do corpo de outras pessoas (seus gestos, atitudes, posturas) e, ainda, depende do modo como estas outras pessoas tratam do nosso corpo. Ao longo dos anos de vida, uma pessoa terá oportunidade de criar, destruir e constantemente reorganizar a própria imagem corporal, a partir da imitação e da observação de outras pessoas. Neste contato interpessoal, as zonas mais sensíveis ou erógenas estão em primeiro plano, porque é através delas que se efetuam as trocas mais intensas entre o sujeito e o seu ambiente, especialmente as trocas interpessoais. Através dos orifícios do corpo, por exemplo, ingerimos o ar, alimento, ejetamos os produtos sólidos, líquidos e gasosos e realizamos os contatos mais íntimos. O desejo se manifesta corporalmente pelas sensações e tensões que procuram o objeto de sua satisfação. O corpo é o campo de expresão do desejo (Sapir, 1964), mas o estado da tensão muscular pode bloquear ou dificultar a resposta que levaria ao objetivo do desejo.

Uma pessoa não tem uma percepção sempre igual de seu corpo, dos seus membros e de seus órgãos internos. Temos uma ligeira sensação difusa da totalidade do corpo, como um pano de fundo, de onde sobressaem determinadas partes, como figurantes em um palco. Por exemplo, enquanto escrevo, tenho a percepção das minhas mãos em primeiro plano, das minhas costas que começam a doer e de que me apoio no assento da cadeira. As outras partes do meu corpo estão, momentaneamente, ausentes do meu campo consciente. Em um indivíduo no qual a fome está aumentada, o estômago estará no centro da sua imagem corporal naquele momento, e talvez a sua boca, garganta seca e assim por diante. É como se a energia libidinal focalizasse como um holofote em um palco as cenas e os figurantes que importa receber em um dado instante. Sendo que a escolha é ditada pelo desejo e pelas necessidades, nem sempre conscientes. Nesta seqüência de percepções, a dor opera uma transformação formidável, porque ela focaliza com urgência uma área corporal, transforma o comportamento geral da pessoa, mobiliza gestos, desequilibra os movimentos e exige uma recuperação, um alívio.

Quando sofremos uma dor, a estrutura libidinal do corpo se modifica imediatamente. Segundo Ferenczi (1919), neste momento todas as energias fluem para o órgão doente, a mão procura repetidamente o local dolorido, as posturas de equilíbrio são reativadas e a movimentação se limita para não provocar maior dano. Na estória de vida de uma pessoa, as doenças, os traumatismos, as dores sofridas tornam-se um centro de ronovadas experiências e experimentações com o próprio corpo e, não raramente, determinam traços relevantes na motricidade mesmo depois de muito tempo.

A resultante ampla destas relações é que percebemos o corpo de maneira semelhante àquela que todos percebem, mas, ao mesmo tempo, de um modo totalmente individualizado. Como temos estórias individuais, compartilhamos apenas parcialmente as nossas imagens corporais. Uma mulher tem pontos em comum com todos os outros, porém mais análogos às outras mulheres da mesma faixa etária, nível sócio-cultural e com a mesma profissão, do que com os homens em geral. Por outro lado, as pessoas de ambos os sexos compartilham de experiências análogas, valorizando determinadas atividades, posturas, gestos e sensações que vão se refletir em similaridades quanto às suas imagens corporais. Os estudos que focalizam as variáveis psicossociais na formação da imagem corporal complementam a perspectiva libidinal e concorrem para a idéia de que o ser humano constitui uma autêntica anatomia fantasmática ou imaginária (Lacan, 1966) a partir dos seus interrelacionamentos. Com esta proposição, o autor põe em destaque a diferença entre o corpo biológico e o corpo vivenciado, tal como se dá a experiência subjetiva. Conhecendo a força da imitação, dos condicionamentos e das experiências interpessoais, é fácil concluir que a imagem corporal de uma pessoa adulta será organizada de partes em relevo — seja porque está satisfeita com elas, ou porque se preocupa com elas — e de zonas corporais obscurecidas, negligenciadas, esquecidas. O movimento revela nitidamente, por exemplo, como o ego consciente considera a zona inferior do corpo, versus a zona superior. O andar, mecanicamente idêntico para todos os adultos normais, possui sempre algo que é muito peculiar para cada um, seja porque se trata de uma locomoção equilibrada, leve, bonita ou desengonçada, dura, feia. É que toda a personalidade está envolvida no ato simples de andar, assim como no de comer, correr, falar, etc. É claro que certos atos motores são tão automatizados que o próprio indivíduo dificilmente se reconhecerá neles. Mas, basta filmar uma pessoa andando entre as outras, sentando, descansando, jogando ou nadando, que os traços típicos de seus padrões motores estarão mais evidentes. E, caso a própria pessoa esteja se analisando, podemos aguardar pelas suas expressões emocionadas e excitadas ao se ver e reconhecer em movimento.

Finalmente, é interessante notar que o estudo da movimentação típica de grupos ou de classes sociais leva às considerações do papel da comunicação não-verbal entre as pessoas. Neste sentido, o jovem adota o jeans não somente porque é mais prático, mas também, porque este tipo de roupa — assim como certos gestos e posturas — indicam uma partilha de idéias, de tendências, como a descontração, a esportividade, a simplicidade, o anticonvencionalismo; valores são adotados pela faixa de pessoas jovens (de qualquer idade) no mundo ocidental de hoje. Da mesma forma, as mulheres adotam os sapatos de saltos mais baixos ou os sapatos esportivos, quando passam a realizar movimentos que exigem o melhor equilíbrio do corpo e, paralelamente, desvalorizam o tipo de andar rebolado que é causado pelo salto alto.

 

4. SÍNTESE

Vale considerar, como Merleau Ponty (1971) que nós temos um corpo e que, ao mesmo tempo, somos um corpo. Esta situação coloca o ser humano em posição singular na ciência e pode condicionar certas dificuldades no conhecimento do movimento e da sensibilidade. Considero que a análise mecânica do movimento é uma necessidade; mas que deve ser complementada pela compreensão do movimento experienciado, pela ciência do corpo tal como ele é vivido e percebido pelo próprio sujeito. No atual estágio de conhecimento, a compreensão do corpo-objeto levanta dúvidas que somente podem ser estudadas no contexto do corpo-sujeito em ação. Quando consideramos a percepção e a ação como uma unidade, admitindo-se que o organismo e o seu meio constituem uma organização dinâmica singular, tal como as múltiplas partes de um átomo, as contribuições podem ser mais fecundas, renovadoras e criadoras. Possivelmente, esta será a perspectiva futura que focalizará a ação humana-em-contexto, esclarecendo determinados aspectos até então obscuros da relação do ser humano com este espaço que nos circunda. Somos o que somos porque entre outras coisas, evoluímos na Terra onde a força de gravidade ao mesmo tempo que nos atrai para baixo, nos sustenta. Toda a biomecânica, suas leis e explicações, assim como todas as habilidades desenvolvidas pelos homens e mulheres serão testadas quando pudermos sobreviver (?) fora do ambiente terrestre, longe do alcance da força gravitacional. Em outro espaço e em outro tempo, certas coordenadas básicas do controle motor terão mudado. Sabe-se que as naves estão usando animais em suas viagens para estudar o efeito anti-gravidade sobre os padrões motores inatos. As aranhas, por exemplo, constróem suas teias de uma maneira totalmente diferente, e, aparentemente, caótica.

O que será preciso para aprender a jogar bola fora da Terra?

 

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