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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.2 supl.2 São Paulo dez. 1990

 

PONTO DE VISTA

 

Wittgenstein ou o fim da filosofia (no primeiro centenário de nascimento de Ludwig Wittgenstein (1889-1951))

 

 

Haulf Hübner

Presidente da Osterreichische Ludwig Wittgenstein Gesellschaft

 

 

"Sobre aquilo de que não se pode falar melhor é silenciar".

A famosa "doutrina do silêncio", a proposição final do Tractatus logico-philosophicus, de Ludwig Wittgenstein, tem sido tantas vezes citada como mal entendida. Ludwig Wittgenstein, uma das grandes figuras da filosofia do século XX, põe em causa a filosofia tradicional no seu conjunto. Com ele começa a era da filosofia analítica, uma forma de pensamento que não pretendo dizer mais do que aquilo que é demonstrável.

Como no Tratado, Wittgenstein seguiu também na vida um ideal ascético de simplicidade e redução ao essencial, tal como igualmente uma escrupulosa probidade, que não se curvava perante quaisquer convenções. " Gostaria mais de ter como irmão um homem feliz do que um santo infeliz", assim o caracterizou uma vez sua irmã Hermine. Durante toda a vida, que decorreu entre a riqueza e a ascese, Wittgenstein publicou apenas duas obras de reduzida dimensão: o Tratado (1922), em que se fundamenta a sua fama, e o Dicionário para as escolas primárias (1926). Já a sua obra tinha alcançado reputação internacional e infuenciado toda uma geração de pensadores, cientistas e artistas, especialmente nos países anglo-saxônicos e nórdicos, e ainda ele continuava a ser um desconhecido na sua pátria.

 

Os anos da juventude no fin de siècle

Ludwig Wittgenstein, nascido em Viena a 26 de abril de 1889, era o mais jovem de oitos filhos do magnata do aço Karl Wittgenstein. O pai era uma eminente personalidade da indústria siderúrgica austro-húngara, comparável a Krupp na Alemanha e Carnegie nos Estados Unidos. A essa vigorosa personalidade do período do ecletismo, que, para manter o equilíbrio, cultivava a música com paixão, opunha-se a segunda geração, os filhos, que, à medida que iam crescendo, revelavam um temperamento requintado e sensível em alto grau, como personagens de um drama de Arthur Schnitzler ou Hugo von Hofmannsthal. O pai não encontrou em nenhum dos filhos um sucessor para o seu império empresarial, embora Ludwig fosse ainda assim aquele que mostrava mais pendor para a técnica. Dois deles, Rudolf e Kurt, suicidaram-se, o mesmo se supondo que terá feito Hans, cuja morte prematura ficou por esclarecer. E Ludwig teve também de lutar com tendências suicidas durante a vida inteira. Os filhos da família foram educados por preceptores até os 14 anos de idade e ainda cedo começou a subjugá-los o feitiço da atmosfera musical da casa paterna, em que um dos convidados habituais era, por exemplo, Johannes Brahms. Após o termo do ensino privado, Ludwig foi enviado por alguns anos para a Staatsoberrealschule (escola secundária de ensino público) de Linz, a que se seguiu a freqüência a um curso de construção de máquinas em Berlim-Charlottenburg. Em 1908 foi para a Inglaterra, onde trabalhou no desenvolvimento de planadores, hélices e motores de propulsão para aeroplanos. Levado para a lógica através do estudo da matemática, Ludwig iniciou em Cambridge, no Trinity College, com Bertrand Russel, o estudo da filosofia, que constituiu a viragem decisiva na sua vida.

Em 1913 morreu Karl Wittgenstein, deixando uma fortuna enorme. Ludwig Wittgenstein fez um donativo anônimo de 100.000 coroas, segundo o valor atual mais de 1,5 milhões de xelins, para artistas sem recursos, entre os quais se encontravam o arquiteto Adolf Loos, os poetas Georg Trakl, Rainer Maria Rilke e Else Lasker-Schüler e o pintor Oskar Kokoschka. Ao eclodir a Primeira Guerra Mundial, Wittgenstein alistou-se voluntariamente para ir para a frente de batalha. Fisicamente saiu ileso dos quatro anos de guerra e dos nove meses em que a seguir esteve prisioneiro na Itália. Durante o período tumultuoso em que andou na frente de combate encontrou um dia, por acaso, numa pequena loja de Varsóvia, a Breve descrição do Evangelho, de Tolstoi, da qual afirmou, mais tarde, ter-lhe salvo a vida.

 

Tractatus logico-philosophicus

Dois meses antes do término da guerra, Wittgenstein concluiu o seu Ensaio lógico-fílosófico, que, no entanto, só em 1922 pôde ser publicado numa edição normal. A conselho de G. E. Moore, em Cambridge, foi finalmente escolhido para a obra o título de Tratáctus logico-philosophicus.

Com o Tratado, Wittgenstein conseguiu sair de uma profunda crise existencial. No prefácio afirmou altivamente ser de opinião que "... tinha resolvido definitivamente os problemas no seu aspecto essencial" Com efeito, o Tratado, partindo de uma crítica da lógica de Gottlob Frege e Bertrand Russel, constituiu uma chave para o pensamento moderno, na medida em que constata que as questões mais importantes da vida humana se encontram fora do alcance da linguagem. A proposição final, tantas vezes mal entendida, a quinta-essência do Tratado, "Sobre aquilo de que não se pode falar não se deve dizer nada ", faz a distinção entre o mundo da razão e das ciências naturais e o daquilo que não pode ser entendido de forma racional, incluindo a ética, a estética e a religião. Este segundo mundo, o único que toca os verdadeiros problemas da vida humana, é inexprimível e deve ser apresentado na arte e no modo de viver.

Allan Janik e Stephen Toulmin apontam no seu livro Wittgenstein's Vienna (Londres, 1973) a relação entre a filosofia de Wittegenstein, dirigida para a pureza, e uma vasta reforma "puritana" no pensamento de jovens intelectuais dessa época. Estes contrapunham a sua auto-disciplina e uma nova austeridade no vestuário, maneiras, gosto e estilo a uma sociedade fin de siècle em declínio, que produziu, na exaltação de Makart e na Arte Nova que se lhe seguiu, uma grande riqueza de ornamentos. Tal como Wittgenstein na filosofia, também o crítico da linguagem Karl Kraus, o arquiteto Adolf Loos e o compositor Arnold Schönberg empreenderam uma cruzada contra a decoração que nada exprimia e o exagero ornamental. Para os jovens intelectuais da moribunda monarquia dos Habsburgos, a rejeição definitiva pelo Tratado de qualquer superstição, no mais lato sentido da palavra, devia ter produzido o efeito de uma fresca brisa.

Wittgenstein, ele próprio a afirmar ter sido influenciado de maneira decisiva por Karl Kraus e Adolf Loos, conseguiu realizar também no domínio da arquitetura a sua idéia de concentração no essencial e a sua defesa de uma lógica severa, tendo projetado no princípio dos anos vinte, para sua irmã Margarete Stonborough, que ficou na história da arte devido ao retrato que dela pintou Gustav Klimt, um palácio cujas claras proporções e sobriedade de estilo não podem negar a relação tanto com o Tratado como também com as idéias de Adolf Loos. O próprio Wittgenstein, porém, classificou mais tarde o edifício da Parkgasse n° 3, no terceiro bairro de Viena, edifício que pertence hoje à Embaixada da Bulgária, como uma "planta de estufa", a que falta a "vida selvagem".

 

Os limites da linguagem são os limites do mundo

O fulcro da filosofia de Wittgenstein é constituído pela linguagem, que reflete a sobriedade do seu modo de pensar. A teoria lingüística do Tratado, embora não se aplique à linguagem quotidiana, tornou Wittgenstein um dos pais espirituais do computador. Além disso, impulsionou o desenvolvimento da moderna teoria da ciência e exerceu uma grande influência na lingüística, particularmente na semântica.

No prefácio do Tratado, Wittgenstein escreve:

O livro trata dos problemas filosóficos e mostra, segundo creio, que a formulação desses problemas se baseia na incompreensão da lógica da nossa linguagem. Poder-se-ia resumir todo o sentido do livro, por exemplo, nestas palavras: O que realmente se pode dizer, pode dizer-se com clareza; e sobre aquilo de que não se pode falar melhor é silenciar.

A finalidade da filosofia é — invertendo a tradição do idealismo alemão — não a elaboração de doutrinas filosóficas, mas o aclarar de proposições. As primeiras são de reduzido valor e "absurdas", na medida em que pretendem apresentar uma explicação do mundo que vai para além da experiência.

Os limites da linguagem constituem os limites do mundo. Segundo Wittgenstein, não se podem inferir da estrutura da linguagem a estrutura do mundo. Neste ponto a sua opinião afastou-se também do ponto de vista do seu antigo professor Russel, que o acusou de "traição à filosofia".

Adquirindo uma noção do funcionamento da linguagem pode-se conseguir, porém, uma elucidação dos pensamentos, o que constitui para Wittgenstein o verdadeiro objetivo da filosofia. Com a sua vontade de tomar a linguagem a sério e a sua opinião de que a cultura é sobretudo cultura lingüística, o autor do Tractatus logico-philosophicus exerceu também grande influência sobre a moderna literatura austríaca, em especial sobre Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard e Peter Handke.

Wittgenstein parte do princípio de que as proposições formais da lógica não dizem nada sobre o mundo real. Proposição 6.52 do seu Tratado:

Sentimos que, mesmo quando se tenha respondido a todas as possíveis questões científicas, não se tocou de maneira nenhuma nos problemas da nossa vida. É claro que nessa altura não resta mais nenhuma questão; e é essa justamente a resposta. (grifo do autor)

Proposição 6.53:

O verdadeiro método da filosofia seria na verdade o de: não dizer senão o que se pode dizer, portanto proposições das ciências naturais — isto é, algo que nada tenha a ver com a filosofia — e depois, sempre que uma outra pessoa quisesse dizer algo de metafísico, provar-lhe que a certos símbolos das suas proposições ela não tinha atribuído significado nenhum. Daqui se conclui, em última análise, a "doutrina do silêncio".

 

Um filósofo quer viver a sua doutrina

Com a conclusão do Tratado, Wittgenstein achava ter dito tudo o que era essencial e abandonou a filosofia, para dar à sua vida um conteúdo que se aproximasse o mais possível daqueles de que "não se pode falar". Renunciou à sua parte da herança em favor dos irmãos e trabalhou primeiro como ajudante de jardineiro em Klosterneuburg. Em seguida tirou o curso de professor primário e foi inicialmente ensinar em Trattenbach, nessa altura uma pobre aldeia rural na fronteira da Baixa Áustria com a Estíria, que correspondia às suas idéias de uma vida ascética. Wittgenstein, em breve conhecido como um indivíduo excêntrico, ajudava crianças dotadas, mas descarregava também muitas vezes a sua impaciência sobre os alunos. Em 1926, após ter tido dificuldades com os pais e as autoridades escolares, abandonou o ensino e regressou acabrunhado a Viena. Aí o projeto do palácio para sua irmã Margarete Stonborough proporcionou-lhe uma nova ocuapção.

Devido aos seus contatos com Moritz Schlick, a principal cabeça dos positivistas de Viena, assassinado em 1936, Wittgenstein encontrou de novo o caminho da filosofia. O Tratado tinha fornecido sugestões de importância decisiva aos positivistas, que, no entanto, as interpretaram de forma contrária ao ponto de vista do autor.

 

Os anos passados em Cambridge

Em 1929, Wittgenstein regressou a Cambridge, onde trabalhou primeiro como fellow e em 1939 sucedeu a G. E. Moore na cátedra de filosofia que este ocupara. O título de doutor fora-lhe conferido dentro de pouco tempo, em virtude do seu Tratado. As visitas à Áustria reduziram-se aos períodos de férias, que costumava passar na quinta de Hochreith, pertencente à sua família e situada no Sul da Baixa Áustria, ou em Gmunden, em casa de sua irmã Margarete, quando não preferia retirar-se para o isolamento da casa de madeira que possuía num fiorde norueguês. Em 1939 adquiriu a nacionalidade britânica.

Não foi, porém, sem hesitação que aceitou o convite para professor em Cambridge, pois sempre tinha defendido o princípio de que "a filosofia não é uma doutrina, mas sim uma atividade". Mesmo na vasta obra filosófica da sua última fase, Wittgenstein permanece fiel à proposição do seu Tratado segundo a qual toda a filosofia é crítica da linguagem, mas verifica-se uma alteração de certos aspectos fundamentais. Assim, a lógica rigorosamente formal do Tratado passa para segundo plano e a filosofia torna-se para ele uma terapêutica, que visa desmascarar os problemas filosóficos como pseudoproblemas. Na sua concepção a linguagem não é uma criação do homem, mas sim parte integrante da forma de vida humana, que "existe como a própria vida". Desenvolveu então a sua idéia dos "jogos de linguagem", alguns dos quais se substituem continuamente uns aos outros, enquanto outros permanecem nos seus traços fundamentais como elementos básicos da forma de vida humana. Este pensamento inicial, que aponta para a lingüística, foi expresso nas Philosophische Untersuchungen ("Pesquisas filosóficas"), publicadas postumamente.

Wittgenstein proferiu a sua última lição na primavera de 1947, levando depois uma vida muito retirada, sobretudo na Irlanda. Por motivo de uma doença cancerosa regressou a Cambridge, onde faleceu a 29 de abril de 1951, com 62 anos de idade.

 

Simpósios de Wittgenstein

Em 1974, quando Ludwig Wittgenstein, apesar de sua reputação mundial, era ainda pouco conhecido na Áustria, foi fundada a Sociedade Austríaca de Ludwig Wittgenstein, que desde 1976 organiza todos os anos em Kirchberg am Wechsel (Baixa Áustria), próximo de Trattenbach e Otterthal, as localidades onde Wittgenstein foi professor primário, os Simpósios Internacionais de Wittgenstein, com a participação de centenas de filósofos e cientistas de todo o mundo. A Sociedade de Wittgenstein mantém também em Kirchberg uma documentação que pode ser consultada por toda a gente.