SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.1 número2Wittgenstein ou o fim da filosofia: no primeiro centenário de nascimento de Ludwig Wittgenstein (1889-1951) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.2 supl.2 São Paulo dez. 1990

 

RESENHA

 

A memória e seus conteúdos pessoais

 

Cesar Ades

Depto. de Psicologia Experimental Instituto de Psicologia — USP

 

 

Autobiographical memory, por David C. Rubin, ed. Cambridge, Cambridge University Press, 1988. 298p.

Foi com o uso de sílabas sem sentido e com materiais verbais simples que foi inaugurado por Ebbinghaus, no final do século passado, o estudo científico da memória, com repercussão e o sucesso que se conhecem. A relação entre a tarefa de decorar e recitar listas de itens e a lembrança, tal como se manifesta em circunstâncias corriqueiras — por exemplo, na hora de fazer compras no supermercado ou de lembrar a data de aniversário de alguém — não era tomada como questão epistemológica crucial. Partia-se do pressuposto de que o modelo de laboratório, apesar de sua simplificação, captava o essencial da memória concreta, da memória dos eventos de todos os dias.

O estudo da "memória autobiográfica", uma nova e interessante tendência na área, busca devolver ao fenômeno da memória seu conteúdo pessoal e sua validade ecológica. A lembrança pela qual se interessa não é a dos elementos mínimos constitutivos da associação, sejam eles sílabas com ou sem sentido, mas a experiência adquirida no espontâneo da atividade normal. O que talvez tenha feito recuar a maioria dos estudiosos tradicionais, quando defrontados com a memória vivida, seja seu caráter de história feita de eventos particulares, como uma narrativa. Daí a necessidade que sentiram de, em prol do rigor e da replicabilidade, eliminar tudo o que fosse pessoal ou datado, nos materiais usados como estímulos e nos critérios de resposta. Nos capítulos do livro organizado por Rubin, a ênfase reside exatamente no pessoal e no datado: o desafio consiste em encontrar princípios ao mesmo tempo gerais e representativos da experiência comum.

Uma das indicações mais animadoras de que poderá haver crescimento na área da memória autobiográfica, escreve Rubin, é a disposição dos psicólogos em adiar sua adesão a teorias particulares ou hipóteses detalhadas enquanto os fenômenos merecedores de teoria não tenham sido descritos de modo mais consistente (p. 5).

Há um retorno descritivo, ao fenomenológico, como, há muitos anos, os gestaltistas propuseram que se voltasse ao exame da percepção enquanto experiência espontânea.

Marigold Linton, autora de um dos capítulos do livro, defende, assim, que seja efetuado um "censo" preliminar dos fenômenos de memória, um pouco como os etólogos descrevem os componentes básicos do comportamento de um animal ou os ecólogos arrolam as espécies presentes num determinado habitat. Não é possível, contudo, observar "de fora", plenamente, os fenômenos mnêmicos; é preciso contar com o relato do indivíduo acerca do que lembra e do que não consegue lembrar. A própria Linton tem publicado trabalhos em que relata os resultados de auto-observação: sistematicamente anota eventos de sua própria vida e, de tempos em tempos, verifica sua aptidão em evocá-los. É um estudo com n = 1, exercício a la Ebbinghaus em nova versão. Linton propõe maneiras de se observar o conteúdo da memória: através de um registro sistemático, captando lembranças que ocorrem sem serem suscitadas, usando como dica uma indicação temporal ("Me dê lembranças suas de quando você tinha 15 anos") ou uma categoria geral, etc.

Fiquei surpreso com um dos resultados da auto-exploração da autora, a baixa probabilidade de eventos negativos — brigas com próximos, desentendimentos com colegas, etc. — serem evocados. Apareciam principalmente, em seu memory watching, "conteúdos robustos, coerentes, para a frente, uma visão da vida geralmente integrada e alegre" (p. 60). O próprio princípio de Pollyanna. Em estudo recente (1) foi verificado, contudo, que lembranças autobiográficas desagradáveis tinham a mesma presença, na memória, quanto as agradáveis, sendo apenas efetiva, para favorecer a permanência de uma representação, a intensidade do afeto a ela associado.

A tese de Neisser, exposta num capítulo muito interessante, é que a estrutura da memória se calca sobre a estrutura dos eventos externos. Da mesma maneira como atividades e eventos se encaixam uns nos outros (2) a memória se compõe de traços ordenados hierarquicamente. Estes traços, Neisser não os concebe como simples "cópias" dos fatos, mas como estruturas abstratas que se interligam, não por associação, como propõe a explicação tradicional, mas por um processo de "aninhamento" de cada sub-estrutura na sub-estrutura imediatamente superior, em termos de amplitude.

O estudo de conteúdos autobiográficos reforça a convicção de que lembrar é uma atividade complexa, dotada de guias conceituais, parente do pensar. Isso se evidencia na maneira como alguém recupera uma lembrança específica, no meio das muitas armazenadas. "Pense numa oportunidade em que estava numa loja e não conseguiu pagar pelo que escolheu para comprar" poderíamos perguntar a este alguém. De acordo com Reiser, Black e Kalamarides, que usaram perguntas como esta, a busca na memória se inicia pela tentativa de recuperar o contexto geral no qual o evento que sequer tinha sido registrado e prosseguir pela procura de índices específicos que levam cada vez mais perto do alvo. A pessoa poderia, no nosso exemplo, primeiro pensar em lugares nos quais costuma fazer compras e, depois, tentar localizar o caso em que houve escolha de um produto caro demais. São postas em jogo estratégias em que a comparação, a generalização, a avaliação da plausibilidade e outras operações cognitivas entram como elementos parciais.

O caminho da busca e de reconhecimento da lembrança autobiográfica não está, contudo, isento de erros, como mostra a pesquisa de Barclay, relatada num dos capítulos do livro. Pessoas acreditam ter vivido um certo evento, se a descrição do mesmo for suficientemente próxima da de um evento realmente experienciado. Esta perspectiva pode gerar um pouco de pânico, é claro, todos nós achamos que são verídicas as experiências com as quais compomos nosso passado. Segundo Barclay, a memória autobiográfica é fruto de uma reconstrução, não de uma simples recuperação. Os esquemas conceituais através dos quais efetuamos tal reconstrução são passíveis de imprecisões. Não dizia Maurois, o escritor francês, que a "a memória é uma grande artista. Para cada homem e cada mulher, faz da lembrança de sua vida uma obra de arte e um registro imperfeito"?

O capítulo de Brown, Shevell e Rips, que lida com as "lembranças públicas" (mudanças de governo, início de uma guerra, assassinatos de presidentes e outros eventos do domínio da mídia mais geral), e o de Robinson, que analisa o papel dos quadros temporais na formação da memória, mostram o quanto a história pessoal interage e se mescla com a história do grupo. Nossas lembranças não dependem apenas de um quadro pessoal, que as organiza e põe em seqüência; controlam-se pelo calendário de atividades e festas e feriados que a cultura impõe e através dos quais o tempo se dobra às rotinas sociais. É provável que um estudante tenha como quadro de referência implícito os períodos do ano letivo, por exemplo "antes de julho", "depois de julho", aqui no Brasil. Robinson, que fez sua pesquisa no estado norte-americano de Kentucky, considerou como parte da estrutura temporal relevante, os três períodos escolares de janeiro/maio, junho/agosto (férias) e setembro/dezembro. Verificou-se que esta subdivisão do ano tinha, de fato, o valor de um "esquema" ordenador da informação retida. Pedia aos estudantes que recordassem eventos pessoais do ano anterior, e que indicassem a data de cada um. A proporção de eventos relembrados tinha uma relação regular com as épocas do ano letivo: por exemplo, havia mais lembranças em maio (na véspera das férias) do que em janeiro; mais em dezembro, talvez em função das festas de fim de ano, do que em setembro. As curvas que Robinson incluiu no capítulo sugerem que talvez haja uma relação entre a freqüência das lembranças e a tonalidade afetiva das épocas do ano, tal como julgada pelos estudantes, mas desta hipótese o autor não trata.

Como é que se distribui a memória autobiográfica ao longo da vida? Dois fenômenos curiosos, a reminescência e a amnésia infantil são abordados, mediante uma técnica muito antiga — Galbon a empregou em 1879! — e que consiste, simplesmente, em oferecer ao indivíduio uma lista de palavras-dicas, pedindo que se lembre de um fato ou episódio pessoal para cada uma. Na reminescência, a lembrança de um passado distante é melhor do que a de um passado recente ou melhor do que o nível esperado as partir das curvas de esquecimento. Rubin, Wetzler e Nebes mostram que indivíduos mais velhos, têm reminescências da fase que vai dos 10 aos 30 anos. Wetzler e Sweeney, a partir de uma função matemática que representaria a taxa "normal" de memória, confirmam o esquecimento significativo das vivências dos primeiros anos de vida (amnésia infantil).

Outros capítulos do livro examinam o desenvolvimento da memória autobiográfica (Fitzgerald) e os problemas clínicos que pode apresentar (Badeley e Wilson, Butters e Cermak, Crovitz). O capítulo que menos me pareceu esclarecedor é o de Brewer, justamente aquele que se propõe responder à pergunta "O que é a memória autobiográfica?" O problema é a abordagem "taxonômica" de Brewer, ou seja, sua tentativa de classificar os tipos de memória. Muita gente tenta classificar, é verdade, e algumas classificações, como a que distingue a memória a curto prazo da memória a longo prazo, ou a que Tulving estabelece entre memória semântica e memória episódica, tiveram uma carreira teórica fecunda. Não discuto a necessidade de definir e categorizar as formas que um determinado fenômeno pode assumir, mas a relevância de efetuar esta categorização, quando não se tem uma base suficiente de observações. Brewer questiona a dicotomia semântico/episódica e propõe ser, a memória autobiográfica, toda memória de conteúdos relacionados ao self ou "eu". Distingue, entre formas desta memória em que participam imagens e em que não participam, formas singulares e repetidas. Eu preferiria uma abordagem menos aristotélica, em que as categorias fossem constituídas, progresivamente, a partir da obtenção de mais e mais informações a respeito dos fatores e processos envolvidos, mediante uso flexível e aberto das hipóteses e generalizações teóricas (incluindo a hipótese de que, em alguns aspectos, a memória autobiográfica funciona exatamente como preveriam os modelos clássicos).

O estudo da memória autobiográfica, embora lide com as experiências corriqueiras e com a cognição de todos os dias, traz consigo o frescor do fato novo. O livro que examinei reflete, na diversidade de pontos de vista, na busca de métodos que possam satisfazer ao mesmo tempo uma exigência de rigor e de validade, na própria ambição de explicar, um jeito exploratório, como se fosse um início. Tomara esta exploração ganhe amplitude e segurança.

 

 

(1) Cesar Ades et alii Qualidade e intensidade do afeto como determinantes da memória cotidiana (artigo proposto para publicação).
(2) A palavra "outros" que acabo de escrever, se insere numa frase, a frase na resenha sobre o livro de Rubin, etc.