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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.2 supl.2 São Paulo dez. 1990

 

RESENHA

 

 

Geraldo José de Paiva

Deptº de Psicologia Social e do Trabalho — Instituto de Psicologia — USP

 

 

The notebooks: Methods, principles and philosophy of Science, por Fritz Heider. Edição de Marijana Benesh-Weiner. Apresentação de Dorwin P. Cartwright & Harold H. Kelley. Introdução de Marijana Benesh-Weiner. Müchen-Weinheim: Psychologie Verlags Union, 1987. vol. 1 xxxix, 631 p.

"Embora eu sinta alegria em lecionar, fico feliz por dispor de tempo para dar atenção a novas idéias que me ocorrem. Ao longo de todos esses anos andei tomando notas a respeito de problemas em que procuro refletir. Tenho sempre comigo uma pequena tira de papel e uma ponta de lápis, no bolso durante o dia, à noite ao lado da cama, de modo a poder anotar sem demora esses pensamentos que, senão, freqüentemente se esvaem e se perdem. Uma vez registrados, estão a salvo, e eu os devolvo, classifico até certo ponto e copio em cadernos {notebooks). Na verdade, o livro sobre as relações interpessoais (The Psychology of Interpersonal Relations, N. R.) tomou corpo a partir de notas que eu tinha tomado dessa forma e que acabei encontrando tempo e ajuda para reunir de maneira apropriada. Completado o trabalho, comecei uma nova coleção. Algumas dessas anotações apareceram em escritos que publiquei nos anos seguintes, e muitas outras descansam em talvez quinze grandes fichários, guardados numa estante em meu escritório, em Lawrence" (Heider, 1983 p. 183).

Esses cadernos eram de há muito assunto de comentários e alusões entre os psicólogos sociais (p. xxiv). Formalmente deles se tinha notícia publicada desde 1976, quando Harvey et al. (1976) a eles se referiram na Introdução à parte histórica de New Directions in Attribution Research.

São aquelas "muitas outras" anotações que vêm a lume num ambicioso projeto de publicação, iniciado em 1978, sob a coordenação de Marijana Benesh-Weiner, com o auxílio do "Grupo de Heider", em Berlim e de numerosos acadêmicos norte-americanos (p. xxvii).

Em 1987 saiu o primeiro volume, objeto desta resenha. Cinco outros, de igual porte, estão em pauta, organizados segundo os títulos de Percepção, Relações Interpessoais, Equilíbrio, Avaliação Interpessoal (que inclui Atribuição), Unidades e Unidades Coincidentes. Os seis volumes correspondem aos catorze "Livros" em que o próprio Heider dividira suas anotações ao longo do tempo.

Imagina-se, pois, que precioso instrumento de trabalho, histórico e teórico, está sendo colocado ao alcance dos estudiosos de um dos mais influentes psicólogos sociais desta segunda metade do século, que recentemente dizia que de sua obra se tomava o conteúdo (v.g., equilíbrio, atribuição), mas não o método, analítico e conceituai, sua mais original contribuição (p. 369, § 189).

As anotações cobrem o período de 1958 até 1983 quando, com 87 anos, Heider deixou de fazer anotações (p. xxxi). Dispostas sob curtas epígrafes, da lavra do próprio Heider, as notas seguem, no geral, a ordem cronológica. Isso explica a maior incidência de palavras ou frases em alemão (devidamente traduzidas em especial apêndice) das anotações mais antigas. Benesh-Weiner chama a atenção para o elevado domínio do inglês que Heider adquirira (Heider declara que tinha cada vez maior dificuldade em pensar e em escrever em alemão: 1983, p. 180), de modo que o emprego, em épocas mais recentes, de palavra ou frase em alemão faz supor, nesses casos, a menor propriedade da versão inglesa (p. xxx). (Exemplos posteriores a 1978: p. 41, § 130; p. 77, § 238; p. 81, § 259; p. 215, § 643, etc).

A seqüência histórica, no entanto, não é necessariamente linear, mas antes denota fluxos e refluxos na reflexão do pensador, "tendem antes para a tentativa do que para a conclusão" (p. xix). Uma razão para essa ondulação seria o amplíssimo horizonte de leituras de Heider, que pode ser recuperado, parcialmente (porque há autores apenas citados no corpo das anotações), nas referências que se estendem da p. 577 à p. 594. Da mesma forma, a extensão do tratamento não indica, sem mais, avanço teórico. De outro lado, anotações curtas, elípticas, aparentemente des-contextualizadas, produzem no leitor, além da sensação de ininteligibilidade, um quê de desafio frente a um enigma. Um exemplo ao acaso: p. 212, § 629: "Organization: do not forget Proust case of waking up in unusual place." Ou p. 309, § 889: "Sex object" general, not individual effect. Mit diesem Trank in Leibe siehst du Helene in jedem Weibe!" O próprio Heider está cônscio da ausência de contexto para o leitor. Escrevendo para a Organizadora de seus escritos confessa:

"até hoje (essas entradas) eram para mim cismas pessoais; de repente elas me fitam nos olhos. São alguma coisa de direito próprio, fora de mim. (...)De cada uma eu digo de mim para mim: 'Sim, sim, é verdade!', e tenho uma vaga idéia, não formulada, do que poderia ser feito com isso. (...)Contudo, ainda assim, será que outros psicólogos sentirão o mesmo a respeito delas? Para eles todos esses exemplos podem ter um outro sentido. Pode ser que eles as vejam como outros tantos aforismos (...) Será que alguém que não viveu com elas (...) poderá considerá-las seriamente como pertencendo à ciência?" (p. xxv).

Do ponto de vista gráfico, uma feição interessante da publicação é ter mantido o texto intocado, inclusive com suas correções, rejeições, lacunas, ilustrações, ilegibilidades e até um comovedor acréscimo, à mão, em grego: "proteron hemas vs proteron physei" (p. 155, § 443), vertido para o inglês apenas no primeiro elemento da antítese near to us, que deve ser completado por "perto da natureza". Exemplo de lacuna ou, antes, de ilegibilidade, é o que consta na p. 181, § 543:" [palavra ilegível. F. H. (Fritz Heider, N. R.) não conseguiu lê-la; G. H. (Grace Heider, sua mulher, N. R.) sugere Thing"].

Às hesitações do autor, reconhecidas nas correções e rejeições do texto, que nos foram poupadas, junta-se outra indicação interessante do caminhamento de Heider: o tom dubitativo-interrogativo de muitas notas, como se o pensador quisesse registrar uma questão a ser retomada com o tempo.

Embora vários tópicos importantes do corpus heideriano estejam prometidos para os próximos volumes — conferindo-lhes, mesmo, o título —, reconhecemos a presença preponderante dos temas que, desenvolvidos em The Psychology of Interpersonal Relations, não deixaram inerte a mente do autor ou, para usar uma de suas categorias preferidas, continham em sua elaboração equilibrada um desequilíbrio latente, tendente a uma resolução superior.

Dentre esses temas apontaríamos os de ação, atribuição, equilíbrio, comportamento, crença, estrutura causal, causalidade, causa/efeito, cognição, unidades coincidentes, conceito, condição, núcleo/periféricos, profundidade, distal/proximal, ecologia/ambiente, egocentrismo, emoção, experimento, foco, interpessoal, invariância, níveis, lógica, sentido, método, modelo, molar, psicologia ingênua, psicologia (científica), organização, percepção, personalidade, realidade, redundância, representação, esquema, ciência, sexo, psicologia social, teoria, coisa/meio, unidade, linguagem, violência, valores.

A simples enumeração sugere a permanência dos temas tratados em The Psychology of Interpersonal Relations, o que explica sua reimpressão em 1983.

Particularmente quanto à Psicologia Social, que tem sido a área de maior influência de Heider (vejam-se recentes artigos em European Journal of Social Psychology e os trabalhos de Leyens, de Wagner & Vallacher e de Beauvois relativos à psicologia social ingênua), não só parece ter ficado de pé a convicção de que o estudo aprofundado das relações entre poucas pessoas pode conduzir a melhor compreensão do grupo (ficando outras dimensões, também importantes, para a Sociologia, a Antropologia, a Política), como parece ter recebido nova confirmação, contrária à posição histórico-relativista de Gergen (1973), a consciência de que "há conceitos ou leis que permanecem invariantes, especialmente nas relações interpessoais. Prova: o fato de que somos capazes de entender muito bem as literaturas dos povos com instituições sociais muito diferentes, como as dos antigos hebreus, dos gregos, dos romanos, e todas as literaturas clássicas" (p. 321 § 24, acrescentado após 1978).

Uma entrada nova e relativamente abundante nos Notebooks é a referente a Sexo. Nos escritos anteriores, e, em particular, em The Psychology of Interpersonal Relations, a entrada, como tal, não aparece. No volume 1, há 55 entradas, da p. 295 à p. 310, sendo 14 posteriores a 1978.

Analogamente, a entrada Violência cobre seis páginas do Volume, estendendo-se por 22 anotações, das quais 9 posteriores a 1978. Outras entradas que mereceram referências copiosas são as de Linguagem e a de Ambiente/Ecologia, bastante discretas na obra de 1958 e, no presente Volume, explicitamente conexas com Sexo e Violência. Esses são tópicos de grande atualidade psi-cossocial. Interessado na psicologia social da religião, fiquei insatisfeito com a ausência de entrada aparentada ao assunto e com o caráter tangencial com que o tópico é referido em outros temas. Na p. 34, § 102, religion é abrigado dubitativamente sob cognition; na p. 519, § 584, Heider certamente faz aflorar um conteúdo antigo de sua formação religiosa: "Wer hat, dem wird gegeben também funciona cognitivamente: quanto mais alguém conhece, tanto maior sua massa aperceptiva, tanto mais vai aprender de uma nova experiência". Finalmente, considero um pouco desorientador o título oficial do Volume: Methods, Principles and Philosophy of Science. Esse título corresponde muito bem ao título que Heider conferiu ao Livro 1. O Livro 2, que corresponde à metade do volume, foi intitulado pelo autor Social Psychology, Phenomenology and Cognition. Embora os próximos volumes lidem com temas eminentemente psicossociais, acredito que ficaria bem que o título do volume introdutório deixasse explícita a vinculação da Psicologia Social à epistemologia científica geral de Heider.

Está, pois, de parabéns o Instituto de Psicologia com a aquisição dos Notebooks. Neles ó pesquisador poderá entrar, por assim dizer, nas entranhas do pensamento de Heider, cujo método produziu duradoura inflexão nos estudos da Psicologia Social, que lhe valeu da American Psychological Association o mais alto reconhecimento, o Distinguished Scientific Award Acredito que, entre nós, quem se sentiria feliz por compulsar, por freqüentar os Notebooks, seria o saudoso professor Dante Moreira Leite que, ouvinte de Heider, introduziu-o em nossos cursos de pós-graduação, traduziu-lhe a obra capital, apresentou-o como promissora alternativa em Congressos de Psicologia e aplicou-lhe as sugestões conceituais e metodológicas na análise da ficção e dos fatos da vida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GERGEN, K. Social psychology as history. Journal of Personality and Social Psychology, 26(2): 309-320,1973.         [ Links ]

HARVEY, J. H., ICKES, W. J. & KIDD, R. F. New directions in attribution research. Hillsdale, N. J., Lawrence Erlbaum, 1976.         [ Links ]

HEIDER, F. Psicologia das relações interpessoais. [The psychology of interpersonal relations]. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo, Pioneira, 1970.         [ Links ]

HEIDER, F. The life of a psychologist: an autobiography. Lawrence: University Press of Kansas, 1983.        [ Links ]